quarta-feira, 21 de março de 2018

NOCTURNO

Apartemo-nos, pois não andamos mais que a fingir passos em frente, olhando de lado em espelhos baços, apartemo-nos pois aqui não mora o desassossego.
Desconjunta-me, necessito de fontes mais precisas de prazer, a languidez do teu corpo já não oferece o tal abrigo merecido. Deixa-me. Prescindo do teu brilhante intelecto para me dedicar ao estudo das coisas mundanas.
Fingimento. É este o constrangimento que me faz neste momento avançar para a dissolução. Prefiro dissolver-nos do que ver-me diluído na pasmaceira dos dias. Não sou poeta, não faço rimas, não ouço a lua, faço da noite apenas uma passagem, como se fosse um túnel para reencontrar de novo o sol.
Fazes-me lembrar a noite, por isso desdenho continuar a alimentar a tua deslumbrante beleza lunar.
Passo a vida embriagado por palavras. Perdido no emaranhado de abraços em que me teimas prender. Quero ser livre. Quero ser Ícaro e se necessário voar direito ao sol. Se for esse o preço, fá-lo-ei. Não duvides! A minha existência já meio amadurecida está para além de quaisquer dúvidas ou incertezas.
Ris.
Eu sei que te ris aí ao fundo no escuro, no teu nicho de prazer, brincas neste momento com as tuas mãos, sinto-o.
Ris porque sabes o destino de Ícaro. Ris porque a noite volta sempre. E eu como a maré, volto ao mar, ao teu mar.
Sorris pacientemente porque sabes que volto. Permites-me estes assomos de rebeldia, jogas com tudo isto para aumentares o teu jogo de prazer, sei-o bem, demasiado bem para a minha própria sanidade.
Tens razão.
Sempre a maldita razão, volto ao teu conforto lunar, à tua poesia erótica, ao teu romantismo obscuro. Volto porque sei-me feito da mesma massa embora iludido que poderia ser de outra, mais solar, mais brilhante.
Não nos apartemos mais então, que termine esta farsa. Entrega-me o teu corpo para dele fazer vaso da minha paixão. Isso. Liberta-me dos sonhos pois deles não preciso. Liberta-me da ilusão pois ela sempre me traiu.
Sim, é o teu corpo que desejo, os teus braços lunares e os teus olhos de inocência.
Julgava eu não ter em mim a poesia, a rima certa que compõe o soneto, enganado de novo pelo sufoco de querer ser diferente.
Amordaça-me com o teu fogo, prende-me aos grilhões e dá-me prazer, lê-me Sade pois a noite é ainda apenas uma criança inocente.
Continuamos a olhar de lado em espelhos baços certos que deles nada vislumbramos. É melhor assim, dar passos falsos em frente do que morrer parado entre a noite e a madrugada.


Bruno:Carvalho

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

"Ânsia de Partir"

A falsa imortalidade da alma
Falsos discursos, palavras apagadas pelo tempo
Amores destroçados pela minha incerteza
Quero apagar-me deste discernimento incoerente
A falsa verdade do amor
Quero distanciar-me desta dor inane
Este desejo que me estremece
Esta ânsia de partir, como se ao partir pudesse esquecer
Algures por entre a primeira e a segunda hora
Por entre a escuridão que escarnece da minha bravura
O meu reflexo esconde-se por entre espelhos partidos
Quero arrancar de mim este torpor, este medo obscuro
A falsa moralidade do desejo
Quero esquecer-te mesmo que deseje lembrar-te
Afogar por fim estas mágoas, estas saudades
Quero enterrar-te por fim no passado

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Desafio: Reminiscência rasgada



A taberna tinha as paredes forradas com pequenas tábuas obliquas. De nome completo Jorge Libério Tadeu, como gostava de dizer sempre que alguém o chamava sem algum dos outros dois, estava paralelo às “tabuinhas” da parede e obliquamente encostado ao balcão.

Jorge Libério Tadeu, nem baixo nem alto, era muito mais magro do que a maioria e tinha um farto cabelo despenteado. Na rotina dos dias caminhava sempre de costas encurvadas e com passo acelerado e nervoso até parar frente à porta da taberna da rua empedrada.
As calças de ganga largas eram curtas e deixavam ver as raquetas bordadas nas meias, e não dispensava uma das suas camisolas de cavas brancas, mesmo em pleno Inverno, de forma a exibir uma tatuagem imperceptível feita a tinta-da-china.
Tinha o braço direito engessado há três anos, mas como era destro só conseguia levar o copo de tinto à boca com a mão direita. A cada “penalti” tirava o gesso do braço direito, despejava o copo de vinho directamente para o estômago sem tocar no interior da boca ornamentada dente-sim-dente-não.
Claro está, o braço direito há três anos que não via luz do sol e estava mais branco do que o gesso que o tapava, era o reflexo perfeito das sete cores do espectro visível. Era mais branco do que qualquer objecto branco que um dia tenhamos visto na vida e contrastava com o escuro braço esquerdo, negro, queimado por dias inteiros exposto ao sol em mangas cavas.

– Oh Jolita! - como todos na vila o chamavam - Vai mais um? Para o caminho!
– Espera. Estás a ver? Esta é a minha filha.

Num gesto repetido diariamente, retirava do bolso de trás das calças a carteira preta deserta, abria-a e exibia com ar orgulhoso o recorte de uma revista da socialite, gasto pelo passar dos dedos, onde se via uma criança que não teria mais do que 6 anos.

– Esta é a minha filha! - repetia todos os dias - A Luísa é a melhor aluna da escola. Quer ser médica quando crescer. Vai ser médica quando crescer!

Jolita era um filho da vila e todos o conheciam, mas ninguém lhe conhecia qualquer família, ninguém alguma vez tinha visto a sua filha ou sabia se teria sido alguma vez casado. É verdade que aos 18 anos cumpriu o serviço militar em Mafra e depois emigrou.
Regressou à vila 20 anos depois de partir, com apenas um lençol às costas onde, presos com um nó cego, embrulhou todos os seus pertences: três pares de calças de ganga, dez camisolas de cavas brancas e cinco dezenas de revistas cor-de-rosa de diferentes décadas.
Na carteira preta trazia sempre um recorte de uma das revistas que fazia questão mostrar a todos que acabassem, mais ou menos interessados, por parar ao seu lado, mesmo que por breves instantes.
Quando regressou à vila a Beatriz era um bebé de olhos azuis de uma revista de 1974 e disse a primeira palavra; dois anos depois chamava-se Ana, tinha caracóis, corria e saltava, não parava; aos três anos a Teresa, uma menina morena de olhos rasgados, vestia um tutu branco e queria ser bailarina.

Estava um frio invernal no Outono de Novembro, num pequeno barril que serve de banco estava o barbeiro Justino Correcto, com longa barba, óculos aviador escuros e bata vestida, que quando não estava a barbear estava a alcovitar:

– Aí vem o Jolita. Quem será a filha hoje? Dizem na vila que a mulher fugiu com a filha por causa da bebida. Ele não sabe onde elas estão. Não faz a mínima ideia. Parece que ela até mudou de nome e também mudou o nome da filha. Ele nem sabe como elas se chamam. Pelas minhas contas a filha já deve ser uma mulher.

Manel Paulo Anca, sapateiro de profissão, sentado de pernas cruzadas mostrava o buraco na sola do sapato esquerdo. As calças, de imperceptível cor, são as mesmas que usou em Janeiro, depois das primeiras gotas de chuva que lhe deram o último banho.

  Qual quê! Já não posso ouvir o Jolita e as histórias da filha que não existe. O excesso de “jolas” fritaram-lhe os miolos é o que é. Que mulher iria querer ter um filho com aquela triste figura? Com aquele bêbado? É um pobre diabo que inventa estas histórias para não se sentir sozinho. Eu já nem o oiço.

Luís Lentinho, conhecido por Sôr Professor por andar sempre com livros debaixo do braço, que na verdade nunca ninguém o viu algum dia realmente ler, levantou-se bamboliante, tentou coloquialmente colocar a voz, mas acabou a discursar numa linguagem que só os que beberam os mesmos litros entenderiam:

– O Jorge nem sempre foi assim. Nem sempre foi assim. É uma história muito triste. Triste. A filha do Jolita é um anjinho no céu. Ouviram! Respeitinho! Ouviram! Morreu à nascença. Coitadinha. Está enterrada num cemitério em Genève. No túmulo não há fotografia. Nenhuma fotografia. Mas o Jolita mandou escrever. Está escrito lá:
“Beatriz, Ana, Luísa, Teresa, Maria. És a minha filha. Presente do verbo ser. Para sempre e enquanto eu pisar o chão deste inferno estarei ao teu lado a ver-te crescer.”

Os anos passaram, o recorte de revista mudou na mesma carteira preta, a criança cresceu e ficou menina e depois ficou mulher.

– Viva pessoal! A minha Maria vai casar! Vai dar-me netinhos. Vou tatuar o nome deles neste braço.

De sorriso rasgado rodopiou em torno de si mesmo exibindo um recorte de um catálogo de vestidos de noiva.

– Parabéns Jolita! Vai um para festejar?
– Enche.

Bebeu num trago. Depois do último de muitos Jorge Libério Tadeu seguiu feliz para casa.



Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...