quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Os velhos


De certeza que foi um velho que me pegou isto. É por isso que não gosto de sair de casa… sei que me vou cruzar com os velhos do 1º direito.

Há dois dias comecei a usar fralda, a não controlar essas vontades básicas. Se antes não era assim, de certeza que foram os velhos, só de respirar o mesmo ar, o mesmo espaço.

Depois reparei em como está diferente a minha mobilidade, a minha quase-praticamente independência de movimento. Agora sou uma alface, flácida, que só mexe os membros por pequenos impulsos. Fazem-me tudo, inválido, eu. Sim, eu.

E alguém percebe o que digo? Escapam-me sons estranhos aos dos mortais não doentes, letras soltas, sons ocos, guincharia… e tudo isto acompanhado de muita baba a escorrer pelo canto da boca.  

(Acabou de sair-me um cocó agora)

Ainda hoje queria apanhar um bocadinho de sol, isso a que chamam passeio, e tive que ir numa cadeira de rodas. A empurrarem-me, a depender da misericórdia de alguém que faz um frete e assim conquista o seu lugar no céu.

Porquê a mim? (cliché, cliché, je sais!) Mas nunca precisei disto, tanta gente que se cruza com os velhos e não os vejo a ficar assim. O meu sistema imunitário deve ser muito fraquinho… ou começou a ser. Claro, claríssimo e mais uma vez a causa deve ser o contágio. 

(Se não berrar agora, fico com o rabo todo vermelho, já sinto a pastosidade a subir-me pelas costas, a transbordar a fralda de velhos. Berrar! Porque nem cú consigo dizer).

E o comer, custa-me engolir. Só líquidos e mesmo assim engasgo-me, fico roxo e dão-me palmadinhas nas costas. “Tão? Já passou? Ai, ai, o glutão!”

Devo morrer em breve e choro a noite toda por isso. Espero conseguir ir à minha primeira consulta de saúde-infantil. Talvez isto tenha cura, se os meus pais pagarem a um bom pediatra, talvez ele me cure.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Pétalas de mármore






são lírios do campo estas letras com que te espero sentada na penumbra do teu canto bordado a línguas de fogo com que me gravas claves de sol nas noites de lua cheia de ti e das saudades que desprezas mesmo quando a fruta se espalha sobre a mesa num quadro recorrente de incompreensões sem data.

são rosas meu amor, de espinhos cravados nos dedos quando te sei rei, dum condado inventado pela memória com que construímos o passado num amanhã debruado a ouro sobre o azul do teu olhar.

são cravos de paixão pela liberdade que  conquistamos cada vez que respiramos num assombro de dança, tango em ri(s)os virgens de flores decapitadas.
são pétalas de mármore, cristalizadas pelo suor do teu corpo no meu, quando ainda não éramos nós...

Somos nós, para sempre.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Cieiro



Depois de pôr o batom do cieiro nos lábios, a menina com chuva olhou-se ao espelho.

Deitou um pacote de açúcar na cama e despejou-se em cima. Hoje não tem vontade de sentir-se bem.

Chama-se menina com chuva àquela que por coincidência ou super poder leva chuva para onde vai. Certa terra em dia de Verão leva com chuva se essa menina para lá for. Certa terra em dia de Inverno fica sem chuva se essa menina de lá partir.

Levantou-se pegajosa, vestiu-se e foi correr. Os poros vomitavam suor salgado que nauseadamente escoriam no meio de tanto doce. Olhou para o céu… “se ao menos a água que cai fosse exsudado das lesões por humidade que as nuvens têm.” Chorou. Muito.
Já em casa e de olhos inchados, usou bolinhas de algodão embebidas em lixívia e passou suavemente pelas pálpebras. Aclarar as ideias. Sentou-se no sofá e esperou pelo sol. Esperou e quando chegou ao “u” fartou-se e foi fazer bolachinhas. Amassou, enformou e pôs canela por cima. Esperou pelo tempo com mais paciência, tirou as bolachas do forno e comeu quantas o estômago permitiu para que depois as pudesse obrigar a sair pelo caminho inverso.

A campainha tocou e a menina com chuva não ouviu.

Tinha acabado de entalar um dedo na porta do armário e olhava a unha estalada. Fez o curativo com álcool (na verdade foram 20 minutos com o dedo mergulhado).
À noite jantou cubos e gelo. Guardou os bocadinhos de dentes que cederam dentro do saleiro e pensou ir deitar-se. Pegou no saco do lixo, encheu-o até metade com água da chuva. Já no interior da arca frigorífica, meteu-se dentro do saco. Em posição quase fetal e só com um braço de fora, esticou-o e com a ponta dos dedos conseguiu fechar a arca.

Adormeceu com alguma facilidade. Ainda bem. 

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...