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domingo, 4 de julho de 2010

A Rapariga que não sangrava... (Parte IV de IV)

Cena 4 (final). Outono.


“Apanha-me se puderes
Faz como o gato matreiro
Esconde-te atrás da árvore mais alta
E quando eu passar…. Salta!
Vira vira, não me apanhas
Eu sou gato e tu és cão
Tu polícia e eu ladrão”

As crianças brincam com alegria à apanhada, entoando rimas antigas que desde cedo as ajudam a compreender o quão complexa é a teia que a todos nos prende. Vivas, de olhos cintilantes, saltitando nas poças rasas que se espalham pela grande praça da cidade. O céu está fabuloso, como se o Sol tivesse explodido em chamas, com imensas labaredas espraiadas por entre os véus da manhã. Por todo o lado a luz, clara e fria, como são as manhãs de outono na cidade. Mas como será no resto do mundo?...

Para além das poças onde a alegria se passeia sob a forma de pequenos e esvoaçantes corpos infantis, há um muro enorme que se levanta, estampado na face dura e vazia dos habitantes da cidade. Há muito que a esperança e alegria se desvaneceu, foi-se apagando, tal como o brilho da velha estátua que, aprisionada entre grades e choupos, se ergue no centro da praça. Passados mais de dois séculos, ainda há quem diga que foi verdade, que a menina da estátua existiu mesmo, que foi um anjo mensageiro que veio trazer o desafio da vida em tempos duros de miséria e violência. A cidade sempre fora um bastião inexpugnável mas, lá fora, milhares morriam na guerra e de fome, ansiosos por abrigo e protecção proporcionada pelos muros altos e insondáveis da cidade. Mas os muros eram tão altos para os que queriam entrar como para os que sonhavam em sair. Em cada coração dos que viviam na cidade havia o sonho de liberdade, abafado pelos duros muros de pedra e ferro que esmagavam os habitantes com as suas pesadas sombras. Como insectos atarantados, os habitantes da cidade viraram-se para si próprios, inquietos e sombrios, construíram uma sociedade alienada e esquizóide, negra como as sombras que os esmagavam, onde esperança era sinónimo de desespero.

Não há nada pior do que saber que nada há a fazer, dai a narcose colectiva, a entrega à rotina, a morte do pensamento, o abraço venenoso da religião e ordem social. Quem poderia acalentar a esperança neste cenário? Seria suicídio, por certo! E as pessoas na cidade temiam a morte, pois sem esperança, pensavam que até a sua alma seria prisioneira da cidade, para todo o sempre, presa, manietada por pesadas sombras que a devorariam, lentamente, até à sua aniquilação final. Assim sendo, não havia lugar para a centelha de esperança que Lucia ofertara, de peito aberto…



No meio da brincadeira descontrolada, há uma menina que é empurrada para cima do gradeamento que cerca a estátua velha e decadente que apodrece lentamente no coração da praça da cidade, onde tudo começou. Aqui estou eu, sentado num banco de tábuas largas que rangem a cada movimento do meu pesado e cansado corpo. Atento, reparo que a menina se magoa na sua pequenina mão de criança e verte uma gota de sangue sobre o pavimento alvo e polido da praça...

A rapariga que não sangrava




Paradoxalmente, começou com o anúncio final. Inexplicáveis corpos celestes em rota de colisão com a Terra, um planeta a preparar-se para morrer. E realmente alguns embateram e muitas vidas ficaram por viver, mas a maior parte das rochas vermelhas ficou suspensa na atmosfera, pairando, contrariando as leis da física.

As pedras, afinal organismos vivos, torturadas pelo cheiro do medo e pelo silêncio da dor e do arrependimento, tinham-se condoído com as súplicas. E, quais divindades, por lá ficaram a escutar o nosso sentir mais íntimo e a interferir nos nossos destinos.

E, debaixo daquele céu coberto de ilhas escarlate filtrando suavemente a luz do Sol, calaram-se os cientistas e levantaram-se os profetas. As rochas tornaram-se um símbolo de redenção e uma nova doutrina nasceu. Os sábios de ocasião, únicos capazes de ouvir o cântico das pedras, ordenavam que o tempo parasse e decretavam o fim da mudança, da evolução, da revolução, do devir... Perante a crença colectiva no presente perpétuo, as rochas interromperam o fluir das eras. Os seres nasciam, cumpriam o seu fado e morriam, afogados naquele limbo perene.

Foi nesse mundo estagnado que nasceu aquela rapariga estranha. Como sempre, os sacerdotes deram aos pais a hipótese de escolher entre dois nomes, um teste que determinava a sobrevivência do recém-nascido. Entre “aquela com dois corações” e “ aquela que não sangra”, a mãe optou pelo último. Mais seguro. Ao pronunciar aquela frase decretou para a sua filha uma existência sem medo, sem coragem, sem alegria, sem tristeza, sem amor, sem ódio.... sem o pulsar da vida. E trazia a sua condição estampada no rosto plano e no pescoço fino, onde a pele aberta mostrava uma jugular cortada a atrofiar.

A rapariga que não sangrava foi escrevendo o seu tépido poema sem um verso lírico. E naquele mundo sem tempo, a sua era a mais negra das canções. Todos viam-na passar com uma faixa à volta do peito a segurar o coração inútil e os compridos cabelos a arrastar pelo chão.

Foi por isso que o povo emudeceu quando um dia parou no meio do templo e levantou a voz. Enquanto olhava os rochedos suspensos, imaginava um rio vermelho a galgar margens, sentia um calor húmido a escorrer-lhe pelo corpo até aos tornozelos, ouvia pela primeira e última vez o som do seu coração e partia suavemente, depois de ver concedido o seu único desejo.

E enquanto todos olhavam para aquele cadáver esperando que a abundante nascente de sangue secasse, uma a uma as pedras começaram a subir nos céus.



sábado, 3 de julho de 2010

A Rapariga que não sangrava... (Parte III de IV)

Cena 3. Verão


Lucia era uma menina vulgar, uma entre tantas, centenas, que vagueavam pela cidade negra, entre mourisqueiros e bugios, crentes e gentios, uma chama entre sombras, uma sombra entre homens que a ignoravam, invisível, indizível, insensível a todo o fel que escorria dos muros da cidade e onde, em azáfama e frenesim, os insectos se banhavam e alimentavam.

Mas da lama do mais fétido pântano podem nascer flores belas e luminosas, com perfumes doces e nunca antes apreciados. Assim era Lucia, doce, luminosa, bela, a vaguear pelo mundo fétido dos homens ignorantes, invisíveis e insensíveis. E foi numa noite de Verão que esta flor exalou o mais cândido aroma que aquela cidade alguma vez iria sentir, ao derramar sobre nós todo o que de precioso pulsava em seu coração.

Entre os anciãos, há muito que se falava da lenda da ‘menina da luz’, um ente que um dia viria dos céus para nos salvar a todos e mostrar o caminho para um admirável mundo onde não haveria mais medo, pestilência, fome ou guerra. Ela traria em seu coração a semente da esperança e em sua voz a canção da harmonia entre os povos. Mas há já muitos séculos que ela era aguardada e, há medida que as gerações passavam, a lenda passou a memória débil na ponta da conversa circunstancial de velhos entregues à miséria que usavam estas memórias para conseguir que algum cobre caísse sobre o seu prato da sopa vazio.

Num dia de estio severo em que a canícula fazia definhar qualquer pego que ainda subsistisse no rio que saciava a cidade, aconteceu algo que nos deixou a todos atónitos. Uma menina, franzina, leve como uma pena, subiu às escadas da catedral da cidade. Do alto das escadas tinha-se a melhor vista para a praça que, se algum pássaro a descrevesse quando a vê do alto do céu, diria ser uma mancha branca rectangular ladeada de infinitos riscos negros entre tons de cinzento, pois assim eram as ruas da cidade, negras e assim eram seus edifícios, de um monótono e indiferente cinzento, de madeira e alvenaria.

“Mas o que faz ela ali?”
“Quem é ela, de onde apareceu”
“Mas o que pensa aquela rata de esgoto que é, para se por à vista de todos, nas escadas da catedral?”
“O que é aquilo ali, ninguém chama a guarda?”

Pacientes, calorosas e amistosas, como sempre, as pessoas da cidade indignaram-se com a presença de uma subcriatura, uma dessas muitas crianças sujas que vagueiam pela cidade, sem eira nem beira mas que aos poderosos e abastados tanto aborrecem. O que era aquela afronta, porque é que uma ‘ninguém’ decidira desafiá-los e impor a sua presença sobre eles, sobre nós?

Lucia permaneceu imóvel por uns minutos, como que vigilante, contemplativa até, olhos postos sobre a cidade e os seus homens-insectos, sobre a praça alabastrina ladeada de negras áspides que se imiscuíam por entre os seios da cidade. A rapariga que ninguém conhecia e a quem eu haveria de escrever infinitas cartas de amor era agora uma espécie de inquisitora-mor, a vigilante, quase uma visão. O tempo passava e nada acontecia. Ali estávamos todos, estáticos, extáticos de ansiedade, ansiosos por saber o que se poderia estar afinal a passar.

Num gesto lento, Lucia meteu a mão no espartano alforge que trazia dependurado e sacou um punhal de lâmina fina e cabo cilíndrico. Ergue-o no ar e proferiu as seguintes palavras:

“Por todos vós que olham, mas nada vêem, tocam, mas nada sentem, falam e nada me dizem. Por todos aqueles que sentem, mas nada mudam, dizem e não acontecem, vêem e desviam o olhar. Por tudo aquilo que eu sinto quando vejo que, por muito que vos queira falar, não posso mudar. O meu coração é vosso. Espero que em vosso coração o sangue corra vivo e que vivos se consigam sentir. Este é o meu altar. Por vós, derramo o meu sangue, para que possa fluir em vossos corações que nada vêem, sentem ou dizem. Por tudo o que vive, para que tudo viva, eu vos ofereço o meu coração e o que nele existe. Por vós, transbordo.”

Num gesto rápido, Lucia espetou o punhal que trazia consigo directamente no coração. Com a lâmina enterrada em seu peito, sorriu, de olhos fechados e murmurou. Ninguém sabe o que ela murmurou, ou porque o fez, mas quando em serena violência puxou a sinistra adaga de dentro de si deu-se uma explosão, não de sangue mas de luz, de mil milhões de pequenas centelhas coloridas e esvoaçantes, que jorravam infindáveis de dentro de tão pequena pregadora, como se ela, leve e bela, fosse a caixa de ressonância do Universo que, numa derradeira tentativa, quisesse trazer até aos homens e mulheres da cidade, do Mundo, um tributo para comprar um novo sonho, uma vida menos vil e esquecida de sentimento.

Quando o clarão terminou, nada restava da franzina Lucia, nem da miríade de centelhas. Mas na face e mente das testemunhas o sucedido fora gravado a fogo. E desse fogo haveria de nascer um novo sentimento: o anseio convicto de que dias melhores estariam por vir.

E em êxtase, as pessoas trocaram abraços emocionados, correram pelas ruelas frescas onde o impiedoso Sol de Verão não chegava e contavam a sua versão do acontecido a quem não estava na plateia durante o primeiro e derradeiro acto de Lucia, a filha da Luz. Era a profecia.

Foram semanas de felicidade, esperança e real vontade de mudar. Em louvor, o povo ergueu uma estátua em memória da sua Salvadora. Devotos, muitos visitavam a estátua e lhe deixavam flores, ex-votos e até cartas de amor. Mas no calor da ilusão, aos poucos, com o cansaço dos dias, desvaneceu-se a mensagem. Lucia poderia ter trazido uma nova visão, mas a única coisa que as pessoas agora se lembravam era de uma nova ilusão. Trocaram as trevas por religião, o desespero por fé, a ignorância por dogma. Estava dado um novo passo na espiral, chegávamos ao ponto paralelo à partida.

O Verão anunciou o seu fim com as mudanças bruscas de temperatura. A chuva fria e cadenciada da madrugada adivinhava a queda das folhas. A floresta parecia em chamas, pintada de tons laranjas, amarelos, vermelhos. Na praça da cidade, entre o branco das lajes, erguia-se imóvel e contemplativa a estátua de Lucia, a rapariga que não sangrava, mas a todos nos trouxera uma centelha de luz. Com o aproximar do Outono chegava o bramir dos trovões, ao fim da tarde. O calor dava lugar à friagem da noite e, pela manhã, faziam-se anunciar para breve as primeiras geadas. Gelava o nevoeiro nos campos, gelava o coração e a memória dos homens e mulheres da cidade…

Parte IV (final): http://aitd-text.blogspot.com/2010/07/rapariga-que-nao-sangrava-parte-iv-de.html

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A Rapariga que não sangrava... (Parte II de IV)

Cena 2. Primavera


Houve tempos em que me era fácil escrever-lhe cartas de amor, tempos de inocência e paixão pueril, tempos de sonho e fantasia romântica, tempos em que eu ainda não sabia o que era realmente o amor.

Lá estava ela, perfeita e inatingível, a cidade a seus pés. Lucia era a inspiração dos fracos e inocentes que se ajoelhavam perante ela em suplício, arrastando-se até ela, só para lhe tocar nos pés, pois não ousavam sequer sonhar em estar mais além do que isso, ao nível dos seus pés, dos passos que estes simbolizavam, da memória que estes tinham arrastado atrás de cada passo marcado, vincado na memória que perante aqueles pés se estendia, fria e escura como uma manhã precoce de Primavera, ainda por vestir de Sol e flores. E a seus pés, rezavam que ela os abençoasse, lhes concedesse uma palavra de mérito perante o guardião dos céus, lhes aprouvesse bonança e expectativas de bons augúrios para os dias que haverão de chegar, tal como chegam as andorinhas nesta altura e com elas as papoilas e o som da água em fúria a escorrer pelas vertentes, depois de ter sido desperta do seu casulo de inverno, resguardado no ventre gélido da pedra da montanha. Dias que haveriam de chegar, carregados de pólen e cantos de aves, sons de insectos laboriosos e absortos de quanta beleza os rodeia, tal como os habitantes desta cidade suja e ruidosa.

A memória perdurará para sempre e, para sempre, Lucia será sinónimo de esperança, pois foi em nome da esperança, não sua, mas de todos nós, que Lucia se tornaria ícone, totem e tabu. Para sempre.

Em mim, despertava o amor, por tão fácil que era amar tão soberba e leve criatura, fiquei preso em seus cabelos que nunca toquei e sem fôlego por sua boca que nunca beijei. Escrevia então cartas, muitas cartas, de amor insano e adolescente, das quais nunca nenhuma por seus olhos foi lida. Em seu corpo nunca toquei, mas, por seu corpo, morreria. Apenas por uma centelha de luz, acolheria em meu peito a morte com doçura.

Sobra a brisa suave, aumentam os dias e mirra a noite. O Verão está a chegar.

Parte III: http://aitd-text.blogspot.com/2010/07/rapariga-que-nao-sangrava-parte-iii-de.html

Deixem sangrar



E vinham multidões de todo o lado para ouvir a profeta a rapariga que não sangrava.

E ela falava do que estava por vir e na dor tormentosa que lhe ia no coração e no seu corpo seco.

- Não será um penso a tapar uma ferida mas uma pálpebra que protege os olhos.

-Vocês não querem ver porque aquilo que vos existe de infinito habita no castelo celeste , cuja porta é bruma da manhã e cujas janelas são canções e os silêncios da noite.

-E cantaremos uma canção e se o meu coração seco se encontrar noutro sonho construiremos uma torre até ao infinito .

- Agradeço ,a alma irmã
-Fazendo -me canal mesmo singelo
-De assistência e alivio aos semelhantes!
-Por tudo o que me foi tirado
-Por tudo o que me foi dado
-Repito-te no amor que a palavra não diz:
-Deixem -me sangrar...

E quando ficava sozinha sobre si mesma apenas num instante de repouso sobre o vento...

Pedia, leva -me faz me sangrar

E outra mulher me dará a Luz....

quarta-feira, 30 de junho de 2010

A Rapariga que não sangrava... (Parte I de IV)

Nesta praça, onde tudo começou, irei contar-vos a história de Lucia.

Cena 1. Inverno


O céu abate-se sobre a cidade e desfaz-se em pungentes gotas gélidas que trespassam o incauto e devoram o fumo esparso que se esgueira por entre os cones aprumados das chaminés das casas de madeira e alvenaria. Gigantes e prenhes de negritude, as plúmbeas naves de gelo fustigam a metrópole adormecida por um inverno sem fim.

Está entregue a si própria, a derradeira espectadora deste teatro grisalho e soturno. Nós, estamos perante os tempos que nos atam as pontas soltas do pensamento, como é apanágio do comum mortal, que se intriga perante a morte mas que, torpe, desperdiça a dádiva da vida. Corremos para dentro do covil ao menor estrépito, de olhos cerrados aguardamos que o terror passe, acocorados a um canto sombrio, titubeantes e apavorados, perto da flama que afasta as bestas, entoando as palavras solenes dos rituais antigos que visavam apaziguar os eternos guardiões do mundo superior. Somos os restos que tombaram da mesa do grande devorador, ínfimos e mesquinhos, patéticas sombras entre sombras, tendemos a desaparecer, por entre a chuva e o afã do quotidiano, reféns de toda a religião que nos atordoa o pensamento livre, em eterna penitência por falhas que não sabemos como controlar, prisioneiros amarrados ao temor do invisível e impiedoso, implorando perdão por simplesmente existir e desejar, assustados e manipulados, neste Inferno sem fim.

O céu envolve-nos e acarinha a néscia dependência que todos temos do Protector, lavador de pecados, do pastor que embala seu rebanho em suave estultícia e, irrelutante, as conduz ao algoz. Gigantes perante os insectos que nos infestam as vestes, agitamo-nos em desdém pelos seres menores que se apressam a sair debaixo dos nossos pés, correndo lestos para os seus covis onde, em pânico, irão aguardar até que venha Morfeu e nos embale entre anjos que tangem lamentos em melopeia, rumo ao universo oculto da noite. Ai, em solene procissão, alinharemos nossos corpos em sinal de fé, para sobreviver a mais um dia que se avizinha. Nesse momento em que nos ausentamos da segurança da claridade, voltam os insectos e despertam Incubi e Succubi, para nosso tormento e luxúria. Envoltos na espiral de desejos e medo, tendemos a desaparecer, por entre as trevas e a apatia da narcolépsia, neste Inverno, por fim.

Ela mantem-se atenta, em serena vigília. Contudo, é impotente perante tamanha violência deste mundo e chora, à medida que o céu se abate sobre a cidade e sente a esperança a gelar e a desfazer-se em esparsas manchas de fumo sem forma. Entregue a si própria, adormece e afasta-se do afã dos insectos que empestam a cidade e aguarda pelos primeiros sinais da Primavera.

Parte II: http://aitd-text.blogspot.com/2010/07/rapariga-que-nao-sangrava-parte-ii-de.html

quarta-feira, 23 de junho de 2010

A saudade



Esta é a história do vaso sanguíneo que sofre por já não recordar o que é ter o amor do líquido quente. Sofre desde o dia em que este lhe foi totalmente raspado com uma espátula de metal. Esse dia ficou conhecido por “coagulação final” e foi-lhe dado como justificação “teve de ser, estavas entupido de amor”.
O amor… o vaso não acredita que o amor tenha coagulado o líquido. Ele corria, ele não estava estagnado, ele estava vivo, tinha cor, tinha cheiro, tinha tacto, tinha tudo aquilo a que um líquido tem direito: espaço, porque as paredes eram elásticas; protecção, porque um dos maiores medos dos líquidos é transbordar; caminho certo, porque o vaso fazia questão de se posicionar para os melhores destinos (o seu preferido era o coração, era mágico ver o líquido a atravessar o coração) e sorrisos, porque o que faz os líquidos correrem são aqueles sorrisos tímidos, que aparecem e desaparecem num segundo, mas ficam eternamente guardados nos olhos de quem os presenciou.

Hoje, de cada vez que chove, o vaso abre-se e armazena gotas de água dentro dele. São frias, são transparentes, mas mesmo assim, conseguem matar algumas saudades. Fazem-no recordar a sensação de sentir algo líquido a massajar-lhe as paredes. Depois, a água evapora e a sede volta. “Tenho saudades tuas, sou um vaso de estômago vazio”.

Hoje, o líquido quente, mora dentro daquelas palhinhas coloridas, são frias e sem vida, mas mesmo assim, conseguem simular o aconchego de um lar. O líquido ainda tem as marcas do ferro que o trespassou e despedaçou. Conta-se por entre artérias e veias que ele morreu de desgosto e dissipou-se. “Tenho saudades tuas, sou um líquido com um pulmão em vácuo”.

És um líquido? Não… Hoje és um coágulo.

Apresento-vos a rapariga coágulo, sonha voltar ao estado líquido. Sonha voltar a percorrer o interior do vaso. Sonha com o dia em que o amor a vai fazer sangrar até à morte.

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...