domingo, 4 de julho de 2010

A rapariga que não sangrava




Paradoxalmente, começou com o anúncio final. Inexplicáveis corpos celestes em rota de colisão com a Terra, um planeta a preparar-se para morrer. E realmente alguns embateram e muitas vidas ficaram por viver, mas a maior parte das rochas vermelhas ficou suspensa na atmosfera, pairando, contrariando as leis da física.

As pedras, afinal organismos vivos, torturadas pelo cheiro do medo e pelo silêncio da dor e do arrependimento, tinham-se condoído com as súplicas. E, quais divindades, por lá ficaram a escutar o nosso sentir mais íntimo e a interferir nos nossos destinos.

E, debaixo daquele céu coberto de ilhas escarlate filtrando suavemente a luz do Sol, calaram-se os cientistas e levantaram-se os profetas. As rochas tornaram-se um símbolo de redenção e uma nova doutrina nasceu. Os sábios de ocasião, únicos capazes de ouvir o cântico das pedras, ordenavam que o tempo parasse e decretavam o fim da mudança, da evolução, da revolução, do devir... Perante a crença colectiva no presente perpétuo, as rochas interromperam o fluir das eras. Os seres nasciam, cumpriam o seu fado e morriam, afogados naquele limbo perene.

Foi nesse mundo estagnado que nasceu aquela rapariga estranha. Como sempre, os sacerdotes deram aos pais a hipótese de escolher entre dois nomes, um teste que determinava a sobrevivência do recém-nascido. Entre “aquela com dois corações” e “ aquela que não sangra”, a mãe optou pelo último. Mais seguro. Ao pronunciar aquela frase decretou para a sua filha uma existência sem medo, sem coragem, sem alegria, sem tristeza, sem amor, sem ódio.... sem o pulsar da vida. E trazia a sua condição estampada no rosto plano e no pescoço fino, onde a pele aberta mostrava uma jugular cortada a atrofiar.

A rapariga que não sangrava foi escrevendo o seu tépido poema sem um verso lírico. E naquele mundo sem tempo, a sua era a mais negra das canções. Todos viam-na passar com uma faixa à volta do peito a segurar o coração inútil e os compridos cabelos a arrastar pelo chão.

Foi por isso que o povo emudeceu quando um dia parou no meio do templo e levantou a voz. Enquanto olhava os rochedos suspensos, imaginava um rio vermelho a galgar margens, sentia um calor húmido a escorrer-lhe pelo corpo até aos tornozelos, ouvia pela primeira e última vez o som do seu coração e partia suavemente, depois de ver concedido o seu único desejo.

E enquanto todos olhavam para aquele cadáver esperando que a abundante nascente de sangue secasse, uma a uma as pedras começaram a subir nos céus.



3 comentários:

  1. Uma "fonte" que desespera por transbordar, sem medos, só com esse desejo. Gosto muito desta rapariga. Cinco corações* para este texto e sangue para os alimentar :)

    ResponderEliminar
  2. uma sci-fi lullaby, com toques de episódio da twilight zone. Um dia, tudo poderá tornar-se real

    fantástico conto

    ResponderEliminar
  3. Rapariga estranha mas com alma! e quando ela chama com uma força tão grande só nos resta largar tudo...e subir com as pedras ate ao ceu... fantastico!!

    ResponderEliminar

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...