sexta-feira, 30 de julho de 2010
O homem descarnado
Perdeu-se no deserto e apareceram miragens dele, primeiro era só um depois dezenas dele e centenas e milhares dele todos com a mesma cara e todo o corpo igual ao dele e aproximavam-se dele e rodeavam-no até taparem o sol. Afastavam-se todos em sintonia como uma orquestra desaparecendo em nuvens brancas e brilhantes, restavam o silêncio da noite gelada, das estrelas puras e da mansidão de dunas paradas e de horizontes invisíveis, era à noite que tinha forças para rastejar, quem sabe alguém me descobre, no deserto passam caravanas de beduínos e berberes. Segundo sei o Atlas fica próximo mas não tenho a certeza por isso vou rastejando na noite à procura do Eden, ou de outro sítio onde possa viver, foi por isso que me meti nesta aventura, vim procurar o Eden fora de mim, todos os meus companheiros desistiram, vi os seus corpos enterrados com as bocas cheias de areia e os olhos em forma de cacto, e depois foram-se enterrando ainda mais, só um pé ficou de fora, arranquei-o e comi-o todo, chupei os ossos dos dedos, procurei os sacos de água, resta-me um que vou bebendo com sabor a conhaque, só às vezes, está menos de meio, ao longe o fogo aproxima-se, não sei o que são dias ou noites.
Aparecem todos, eles que sou eu, riem-se de mim e fazem caretas como palhaços, estão vestidos com o meu fato de executivo numa empresa de sucesso e grito-lhes, e peço-lhes que desistam, que vistam a minha roupa, levem-me daqui mas eu não faço nada, quer dizer eles não fazem nada e desisti de os olhar nos olhos brilhantes que ferem os meus, já não tenho água, o sol, o sol, neste deserto, neste deserto, rastejo de mãos enclavinhadas de sangue o tronco move-se como um lagarto moribundo.
Quem sou eu? Lembro-me vagamente do perfume, dos restaurantes, da casa confortável, de caras, sorrisos, pessoas apertando-me a mão, vagamente, e o sol, o sol o sol martela, não há água, a boca é um buraco pequeno lambendo areia, o Eden? Será uma ficção? O Eden, deve existir, força, anda, rasteja, procura, eles vêm aí, iguais a mim, são cruéis, maus, rodeiam-me, vão-se, noite, noite gelada e o sol ardente, ardente, come-me as entranhas, água, água, sou um tronco de ossos descarnado, sinto um som profundo é o fogo a comer-me, a sugar-me, um raio de sol zumbe como um enxame de abelhas entrando nos ouvidos, está cá dentro o sol, rebolo no sol, a duna desliza sobre mim, mais além vejo finalmente o Eden e ergo finalmente os ossos dos braços quando me aparece a luz suave que me leva e me liberta.
“Foram encontrados no deserto os restos mortais do famoso empresário X que empreendeu com um reduzido grupo de amigos uma viagem a Nenhures, ignorando-se as causas exactas da morte. Os restantes elementos encontram-se bem, manifestando-se estupefactos com o acontecimento, para o qual não encontram qualquer justificação”.
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Saudades de ver e ler lazuli por aqui :)
ResponderEliminarO que é afinal a libertação? Gostei muitooo desta viagem, não a "Nenhures", mas sim a "Algures" :)
Uma vez, há muitos anos atrás, li um conto chamado "O homem que engoliu a sua própria alma", nem me lembro do autor, mas lembro-me desta frase:
ResponderEliminar"no fundo da minha memória estava eu, soterrado pelos meus medos e anseios, para sempre perdido em mim, só, em frente à multidão"
o teu texto provocou-me exactamente a mesma angústia...
Asfixiante, disperso, dilacerante, numa demanda de fim indefinido... é o caminho de muitos homens... e a maioria ainda nem o sabe. Gostei muito. Bjs
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