sábado, 3 de julho de 2010

A Rapariga que não sangrava... (Parte III de IV)

Cena 3. Verão


Lucia era uma menina vulgar, uma entre tantas, centenas, que vagueavam pela cidade negra, entre mourisqueiros e bugios, crentes e gentios, uma chama entre sombras, uma sombra entre homens que a ignoravam, invisível, indizível, insensível a todo o fel que escorria dos muros da cidade e onde, em azáfama e frenesim, os insectos se banhavam e alimentavam.

Mas da lama do mais fétido pântano podem nascer flores belas e luminosas, com perfumes doces e nunca antes apreciados. Assim era Lucia, doce, luminosa, bela, a vaguear pelo mundo fétido dos homens ignorantes, invisíveis e insensíveis. E foi numa noite de Verão que esta flor exalou o mais cândido aroma que aquela cidade alguma vez iria sentir, ao derramar sobre nós todo o que de precioso pulsava em seu coração.

Entre os anciãos, há muito que se falava da lenda da ‘menina da luz’, um ente que um dia viria dos céus para nos salvar a todos e mostrar o caminho para um admirável mundo onde não haveria mais medo, pestilência, fome ou guerra. Ela traria em seu coração a semente da esperança e em sua voz a canção da harmonia entre os povos. Mas há já muitos séculos que ela era aguardada e, há medida que as gerações passavam, a lenda passou a memória débil na ponta da conversa circunstancial de velhos entregues à miséria que usavam estas memórias para conseguir que algum cobre caísse sobre o seu prato da sopa vazio.

Num dia de estio severo em que a canícula fazia definhar qualquer pego que ainda subsistisse no rio que saciava a cidade, aconteceu algo que nos deixou a todos atónitos. Uma menina, franzina, leve como uma pena, subiu às escadas da catedral da cidade. Do alto das escadas tinha-se a melhor vista para a praça que, se algum pássaro a descrevesse quando a vê do alto do céu, diria ser uma mancha branca rectangular ladeada de infinitos riscos negros entre tons de cinzento, pois assim eram as ruas da cidade, negras e assim eram seus edifícios, de um monótono e indiferente cinzento, de madeira e alvenaria.

“Mas o que faz ela ali?”
“Quem é ela, de onde apareceu”
“Mas o que pensa aquela rata de esgoto que é, para se por à vista de todos, nas escadas da catedral?”
“O que é aquilo ali, ninguém chama a guarda?”

Pacientes, calorosas e amistosas, como sempre, as pessoas da cidade indignaram-se com a presença de uma subcriatura, uma dessas muitas crianças sujas que vagueiam pela cidade, sem eira nem beira mas que aos poderosos e abastados tanto aborrecem. O que era aquela afronta, porque é que uma ‘ninguém’ decidira desafiá-los e impor a sua presença sobre eles, sobre nós?

Lucia permaneceu imóvel por uns minutos, como que vigilante, contemplativa até, olhos postos sobre a cidade e os seus homens-insectos, sobre a praça alabastrina ladeada de negras áspides que se imiscuíam por entre os seios da cidade. A rapariga que ninguém conhecia e a quem eu haveria de escrever infinitas cartas de amor era agora uma espécie de inquisitora-mor, a vigilante, quase uma visão. O tempo passava e nada acontecia. Ali estávamos todos, estáticos, extáticos de ansiedade, ansiosos por saber o que se poderia estar afinal a passar.

Num gesto lento, Lucia meteu a mão no espartano alforge que trazia dependurado e sacou um punhal de lâmina fina e cabo cilíndrico. Ergue-o no ar e proferiu as seguintes palavras:

“Por todos vós que olham, mas nada vêem, tocam, mas nada sentem, falam e nada me dizem. Por todos aqueles que sentem, mas nada mudam, dizem e não acontecem, vêem e desviam o olhar. Por tudo aquilo que eu sinto quando vejo que, por muito que vos queira falar, não posso mudar. O meu coração é vosso. Espero que em vosso coração o sangue corra vivo e que vivos se consigam sentir. Este é o meu altar. Por vós, derramo o meu sangue, para que possa fluir em vossos corações que nada vêem, sentem ou dizem. Por tudo o que vive, para que tudo viva, eu vos ofereço o meu coração e o que nele existe. Por vós, transbordo.”

Num gesto rápido, Lucia espetou o punhal que trazia consigo directamente no coração. Com a lâmina enterrada em seu peito, sorriu, de olhos fechados e murmurou. Ninguém sabe o que ela murmurou, ou porque o fez, mas quando em serena violência puxou a sinistra adaga de dentro de si deu-se uma explosão, não de sangue mas de luz, de mil milhões de pequenas centelhas coloridas e esvoaçantes, que jorravam infindáveis de dentro de tão pequena pregadora, como se ela, leve e bela, fosse a caixa de ressonância do Universo que, numa derradeira tentativa, quisesse trazer até aos homens e mulheres da cidade, do Mundo, um tributo para comprar um novo sonho, uma vida menos vil e esquecida de sentimento.

Quando o clarão terminou, nada restava da franzina Lucia, nem da miríade de centelhas. Mas na face e mente das testemunhas o sucedido fora gravado a fogo. E desse fogo haveria de nascer um novo sentimento: o anseio convicto de que dias melhores estariam por vir.

E em êxtase, as pessoas trocaram abraços emocionados, correram pelas ruelas frescas onde o impiedoso Sol de Verão não chegava e contavam a sua versão do acontecido a quem não estava na plateia durante o primeiro e derradeiro acto de Lucia, a filha da Luz. Era a profecia.

Foram semanas de felicidade, esperança e real vontade de mudar. Em louvor, o povo ergueu uma estátua em memória da sua Salvadora. Devotos, muitos visitavam a estátua e lhe deixavam flores, ex-votos e até cartas de amor. Mas no calor da ilusão, aos poucos, com o cansaço dos dias, desvaneceu-se a mensagem. Lucia poderia ter trazido uma nova visão, mas a única coisa que as pessoas agora se lembravam era de uma nova ilusão. Trocaram as trevas por religião, o desespero por fé, a ignorância por dogma. Estava dado um novo passo na espiral, chegávamos ao ponto paralelo à partida.

O Verão anunciou o seu fim com as mudanças bruscas de temperatura. A chuva fria e cadenciada da madrugada adivinhava a queda das folhas. A floresta parecia em chamas, pintada de tons laranjas, amarelos, vermelhos. Na praça da cidade, entre o branco das lajes, erguia-se imóvel e contemplativa a estátua de Lucia, a rapariga que não sangrava, mas a todos nos trouxera uma centelha de luz. Com o aproximar do Outono chegava o bramir dos trovões, ao fim da tarde. O calor dava lugar à friagem da noite e, pela manhã, faziam-se anunciar para breve as primeiras geadas. Gelava o nevoeiro nos campos, gelava o coração e a memória dos homens e mulheres da cidade…

Parte IV (final): http://aitd-text.blogspot.com/2010/07/rapariga-que-nao-sangrava-parte-iv-de.html

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