sábado, 24 de julho de 2010

Sílabas

(estava a arrumar a 'casa' e reencontrei este texto já com 4 anos, mas como continua a ser um dos meus favoritos, aqui vai uma 'reedição'. Hope you like it!)



Que mundo mesquinho. Estou farta de os aturar...

Sirvo-os à mesa, todos os dias, neste café de beira de estrada, farto de brutos e ‘meninas da vida’, de penduras, pelintras e pedintes, de cretinos, descrentes e credores em viagem. E cabe-me a mim, no meio deste inferno, aturar toda esta canalha. Dar-lhes de beber, de comer, e se eu os deixasse, de f.....

Ninguém diz nada que valha a escuta, que preencha o vazio, que alegre o dia, que me eleve a alma, que me conforte a dor, que me faça sentir humana, pessoa, útil, amada! Nada, apenas a rudeza dos gestos e o lixo da palavra de rua, suja e bruta como todos são, do patrão à colega mais nova, da velha da caixa ao puto do posto de serviço, do miúdo que me olha para o decote com vergonha ao porco do Mercedes que devora o rabo com os olhos e saliva nos cantos da boca.

Não consigo ser mãe, mulher, esposa, prazer, nem delito nem deleite, sou apenas a ‘tipa’ do café da beira da estrada, aqui para vos servir, aqui ontem, aqui hoje, ... e amanhã?....

Não oiço uma única expressão que mereça ser ouvida, vivo dentro de um mundo onde não se usam palavras com mais de três sílabas. Ninguém as usa, ninguém as diz. Três sílabas, é o limite do meu espaço, do meu ser, da gentalha que se move entre as mesas já gastas pelos anos, gastas pelo meu esfregar constante do pano húmido e fedendo a pop limão. Não usam mais de três sílabas para escrever nas portas da retrete: “faço bicos”, “vivó benfica”, “jovem solteiro”, “no cagar é que está o ganho”, e são essas merdas que eu tenho que aturar quando me calha a vez de limpar...

Uma. Duas. Três. É o máximo. Não existem palavras com mais de três silabas no meu mundo. Não tenho mais letras para o horror e depressão em que vivo. Não conheço fim deste limite para descrever os dias que passo entre os pedidos de hamburgers, de coca colas, de batatas fritas, de massa com molho de tomate, de carne de porco frita, de rissóis, empadas, sopas, cafés, bagaços, tabaco, trocos para a máquina de jogos, mais água por favor, traga o ketchup, a pimenta, azeite, vinagre, sal. Todo o sal que me resta está nestas lágrimas que me escorrem da face, que deslizam para a minha boca, que sorvo com tremuras, que uso como tempero de mim própria, como final amargor da minha vida vazia por entre as mesas e o balcão, por entre as mãos sujas que me deixam meia dúzia de trocos e os olhos vazios de quem não me vê nem nunca verá...


Hoje mudo tudo.

Ergo-me ainda mais cedo e vou até à cozinha. Hoje aumento os limites do meu mundo, uma nova dimensão, a quatro sílabas. No vinho a granel, no azeite de prato e no café moído está o meu tributo para todos vós.

Cianeto.

3 comentários:

  1. O estilo de escrita que brevemente vai ser oficializado e todos o vão querer aprender :)Perfeitas sí-la-bas...

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  2. perfeito!! tens Dom Nuno Oliveira!gostei!!gostei muitooooooo

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  3. Algumas passagens lembram-me um bocadinho o Saramago, o estilo de quem está a escrever para ser ouvido e não lido... o que é perfeito para um grito de revolta. E mais uma daquelas personagens femininas....
    Esse último parágrafo está incrível. A publicar em livro, definitivamente...

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