A taberna tinha as paredes forradas com pequenas tábuas
obliquas. De nome completo Jorge Libério Tadeu, como gostava de dizer sempre
que alguém o chamava sem algum dos outros dois, estava paralelo às “tabuinhas”
da parede e obliquamente encostado ao balcão.
Jorge Libério Tadeu, nem baixo nem alto, era muito mais magro
do que a maioria e tinha um farto cabelo despenteado. Na rotina dos dias
caminhava sempre de costas encurvadas e com passo acelerado e nervoso até parar
frente à porta da taberna da rua empedrada.
As calças de ganga largas eram curtas e deixavam ver as
raquetas bordadas nas meias, e não dispensava uma das suas camisolas de cavas
brancas, mesmo em pleno Inverno, de forma a exibir uma tatuagem imperceptível
feita a tinta-da-china.
Tinha o braço direito engessado há três anos, mas como era
destro só conseguia levar o copo de tinto à boca com a mão direita. A cada
“penalti” tirava o gesso do braço direito, despejava o copo de vinho
directamente para o estômago sem tocar no interior da boca ornamentada dente-sim-dente-não.
Claro está, o braço direito há três anos que não via luz do
sol e estava mais branco do que o gesso que o tapava, era o reflexo perfeito
das sete cores do espectro visível. Era mais branco do que qualquer objecto
branco que um dia tenhamos visto na vida e contrastava com o escuro braço
esquerdo, negro, queimado por dias inteiros exposto ao sol em mangas cavas.
– Oh Jolita! - como todos na vila o chamavam - Vai mais um?
Para o caminho!
– Espera. Estás a ver? Esta é a minha filha.
Num gesto repetido diariamente, retirava do bolso de trás das
calças a carteira preta deserta, abria-a e exibia com ar orgulhoso o recorte
de uma revista da socialite, gasto pelo passar dos dedos, onde se via
uma criança que não teria mais do que 6 anos.
– Esta é a minha filha! - repetia todos os dias - A Luísa é a
melhor aluna da escola. Quer ser médica quando crescer. Vai ser médica quando
crescer!
Jolita era um filho da vila e todos o conheciam, mas ninguém
lhe conhecia qualquer família, ninguém alguma vez tinha visto a sua filha ou
sabia se teria sido alguma vez casado. É verdade que aos 18 anos cumpriu o
serviço militar em Mafra e depois emigrou.
Regressou à vila 20 anos depois de partir, com apenas um
lençol às costas onde, presos com um nó cego, embrulhou todos os seus
pertences: três pares de calças de ganga, dez camisolas de cavas brancas e
cinco dezenas de revistas cor-de-rosa de diferentes décadas.
Na carteira preta trazia sempre um recorte de uma das
revistas que fazia questão mostrar a todos que acabassem, mais ou menos
interessados, por parar ao seu lado, mesmo que por breves instantes.
Quando regressou à vila a Beatriz era um bebé de olhos azuis
de uma revista de 1974 e disse a primeira palavra; dois anos depois chamava-se
Ana, tinha caracóis, corria e saltava, não parava; aos três anos a Teresa, uma
menina morena de olhos rasgados, vestia um tutu branco e queria ser bailarina.
Estava um frio invernal no Outono de Novembro, num pequeno
barril que serve de banco estava o barbeiro Justino Correcto, com longa barba,
óculos aviador escuros e bata vestida, que quando não estava a barbear estava a
alcovitar:
– Aí vem o Jolita. Quem será a filha hoje? Dizem na vila que
a mulher fugiu com a filha por causa da bebida. Ele não sabe onde elas estão.
Não faz a mínima ideia. Parece que ela até mudou de nome e também mudou o nome
da filha. Ele nem sabe como elas se chamam. Pelas minhas contas a filha já deve
ser uma mulher.
Manel Paulo Anca, sapateiro de profissão, sentado de pernas
cruzadas mostrava o buraco na sola do sapato esquerdo. As calças, de
imperceptível cor, são as mesmas que usou em Janeiro, depois das primeiras
gotas de chuva que lhe deram o último banho.
– Qual quê! Já não
posso ouvir o Jolita e as histórias da filha que não existe. O excesso de
“jolas” fritaram-lhe os miolos é o que é. Que mulher iria querer ter um filho
com aquela triste figura? Com aquele bêbado? É um pobre diabo que inventa estas
histórias para não se sentir sozinho. Eu já nem o oiço.
Luís Lentinho, conhecido por Sôr Professor por andar sempre
com livros debaixo do braço, que na verdade nunca ninguém o viu algum dia
realmente ler, levantou-se bamboliante, tentou coloquialmente colocar a voz,
mas acabou a discursar numa linguagem que só os que beberam os mesmos litros
entenderiam:
– O Jorge nem sempre foi assim. Nem sempre foi assim. É uma
história muito triste. Triste. A filha do Jolita é um anjinho no céu. Ouviram!
Respeitinho! Ouviram! Morreu à nascença. Coitadinha. Está enterrada num
cemitério em Genève. No túmulo não há fotografia. Nenhuma fotografia.
Mas o Jolita mandou escrever. Está escrito lá:
“Beatriz, Ana, Luísa, Teresa, Maria. És a minha filha.
Presente do verbo ser. Para sempre e enquanto eu pisar o chão deste inferno
estarei ao teu lado a ver-te crescer.”
Os anos passaram, o recorte de revista mudou na mesma
carteira preta, a criança cresceu e ficou menina e depois ficou mulher.
– Viva pessoal! A minha Maria vai casar! Vai dar-me netinhos.
Vou tatuar o nome deles neste braço.
De sorriso rasgado rodopiou em torno de si mesmo exibindo um
recorte de um catálogo de vestidos de noiva.
– Parabéns Jolita! Vai um para festejar?
– Enche.
Bebeu num trago. Depois do último de muitos Jorge Libério
Tadeu seguiu feliz para casa.