hoje senti saudades tuas.
a chuva subiu pelas narinas provocando geada nos pés. encolhidos os dedos, a chuva continuou agora neve, nos cabelos curtos e mais ralos de ferrugem onde a fuligem dos comboios a vapor pincela telas de luz morta, ou apenas moribunda, dependendo da gravidade da água que agora desce para voltar a subir pelas pernas escolhidas pelos dedos encolhidos.
o senhor da farmácia fez uma careta à ingestão dos dois comprimidos, para que a dor parasse. a dor amenizou o corpo que buscava descanso e nem sequer toldou o pensamento, apenas fez esquecer a dor e é tão bom parar a dor, que do seu esquecimento apenas fica um suave mau-estar sem odor, porque se a dor fosse perfumada, nem morta me esquecia dela.
por vezes tenho saudades dos dias em que me passeavas, sem dores, pelos jardins da minha infância e da tua maturidade de homem imponente pela altura e pelo carácter.
a minha mão na tua, esmagada pelo anel de ouro com uma pedra azul. e eu perguntava-te porque não usavas aliança, se a mãe tinha. tu devias responder, mas algo sem importância, porque eu não voltava a perguntar e nunca percebi porquê. mas havia muitas senhoras que passeavam connosco, desconhecidas que ficavam a conversar contigo, sentadas no banco do jardim, enquanto eu me baloiçava, escorregava ou me rebolava na relva limpa sem dejectos de cães ou gatos, apenas joaninhas e lagartas pequeninas, alguns aranhiços e minhocas que eu encontrava quando tentava chegar, sem saber, ao outro lado do mundo. ou que se passeavam contigo e ficava eu no banco quieta, para não me perderes de vista.
parecias um actor de cinema e eras tão alto e elegante nos teus fatos sempre de alfaiate, nesse gesto de bater o cigarro na cigarreira de prata (que guardo entre tantas outras coisas) de acenderes o cigarro muito longo às senhoras desconhecidas (soube depois que usavam boquilha) esse gesto de me repreenderes com um olhar paralisante, sem precisares de dizer nada (e tanto que conversavas com as senhoras que a mãe denominava flausinas).
hoje lembrei-me de ti. e das festas que essas senhoras me faziam, eu a pensar que gostavam das minhas tranças até à cintura, ou do meu sorriso, mas tentavam apenas agradar-te, e tanto que o faziam, que por vezes te esquecias de mim e das horas e voltávamos à pressa para casa, tu no teu passo de homem alto, eu em pequenas corridas para te acompanhar, quase sem ter brincado nada.
os pés de neve derretem agora um pouco. e é salgada a chuva que me salta dos olhos, em pequenas gotas, sem subir nem deslizar, apenas em gotas que não me deixam ver-te.
terno e introspectivo... obrigado pela partilha sentida
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