Parte I – A espuma negra
- Calma, respira
fundo. Afinal de contas, o que é que te preocupa tanto?-
O meu homem
esconde-se entre a espuma dos seus pensamentos, que o afogam até aos dias do
desperdício. De tempo, de vida, de fome. Persegue a sua própria sombra com os
olhos rasgados pelo medo de nada encontrar do outro lado. Toca na sua língua e
corta-se nas palavras afiadas que esta guarda para certas ocasiões sociais,
quando leva a bílis a passear ou se enrola nos bigodes veteranos da ventania de
outono, rumo a sul. Até que se embala na arrepiante luz da manhã que antecede a
longa noite de pesar…
Parte II – Nas minhas
veias o teu sangue
…se disfarçares
ninguém repara, acredita. Porque mesmo as pessoas que notam o óbvio deixam que
o óbvio se omita por entre as frestas sombrias dos seus medos e inseguranças. Ah,
se te julgas impotente para o fazer, que dirão os milhares, milhões até que o
fizeram antes de ti? Navegam cegos entre miasmas e rezas a santos ausentes. Repara,
observa bem, espreita pela fechadura das suas mentes, penetra nos nós
pequeninos que lhes enrolam o dizer, fazer de morto, viver em vão, entre o vão
das ondas e o ir, fugir, reluzir como uma estrela longínqua, tão fria que se
envolve em léguas de nada.
- eu sei que não
presto, sei que não presto, sei. Não presto agora que me consumo entre memórias
que não quero voltar a viver. Não quero voltar a viver se tu não viveres, se tu
não andares por entre as minhas memórias que explodem como minas sob os teus frágeis
pés de seda. Eu queria ter o meu sangue dentro do teu coração, a latejar na
veia proeminente da minha testa, que eu esfrego nervosamente enquanto penso em
ti. Agora, nem sei se há um ‘ti’ para pensar, pobre de mim.-
Parte III - Sem ti, nada
Cancelei as minhas dívidas
e é a minha voz que levanto. Primeiro, em tom baixo e fúnebre e com a chegada
da última hora da madrugada, mais viva e loquaz. Quero despedir-me deste poente
que me roubava a estrela da manhã, por entre dedos de vidro fosco por onde tu,
por vezes em dias de chuva quente, ainda espreitarás. Pego no carvão e faço um
último esquisso na parede da tua mente. Parece que me recorda de ti, das
canções feitas de pétalas e do que dizias ser parecido com o meu olhar distraído
e melancólico. Encerro este capítulo de forma épica e diagonal, sem que possam
um dia unir os pontos da discórdia por tanto concordarem que tive o que
merecia. Hoje, seca pele de réptil, abandono-te na maré pestilenta dos amores
imperfeitos e peço-te, vai para longe e abandona-me de dentro de ti. E que quem
te descubra abrace esta maldição como tua e a perpetue assíncrona e harmoniosa,
como o renascer doentio do sol vermelho escondido atrás das saias da última
madrugada.
- arrumo a alma num
pequeno pacote, dela não sentirei falta, é funesta e faminta, arrasta para
dentro de si o sopro do primeiro demónio que se fez inquilino no Eliseu e
zombou de Deus. Há tantos anos que esperava por este momento, oh doce morte em
vida, te abraço em serena plenitude. Antes vazio como a lua nova do que de ti
prenhe e escravo. Agarro-me à lâmina quente que soltará as amarras deste vício
sujo que é dar-te de comer. Solto uma última lágrima falsa e estendo-me no chão
a escrevinhar no portátil. Diverte-me o piscar do cursor, faz-me lembrar as
dores pulsantes de quando me ocupavas e violavas sem piedade. Crocodilo embalsamado.
Impecável estado para colocar em cima do móvel ou no chão. Envio o email para o
jornal e agarro-me ao telefone. Alguém ficará feliz com a oferta. Alguém me
fará feliz por me amar sem nada me dizer. Alguém assentará num papel arrancado
oportunamente de um pequeno bloco a morada. Alguém me virá buscar, cadáver.
Nota mental: deixar a porta entreaberta antes de contar até 3…-