sexta-feira, 15 de junho de 2012

As 180 do cuco


O cuco era verde. Ou azul-esverdeado cor de céu à beira-bolor. A caixa-casa era castanha. Ou vermelha-acastanhada cor de sangue-seco. O relógio-parede não tinha cor. 

Era uma vez um cuco que sofria de bichos de carpinteiro e de cancro nos pulmões. 

 Ao canto da sala na caixa-casa do relógio-parede tossia horas e meia horas em tom expecturado-serradura e lamentava-se da lentidão do pêndulo, o qual já se encontrava metastizado pelo enjoo do vaivém. A corda, essa, já rangia velhice quando se puxavam os pesos que não passavam daqueles que a consciência às vezes tem. 
Mas sem mais demora, o cuco era paliativo e as 180 vezes angustiavam todos os minutos do dia que se situavam entre as entradas e as saídas, entre a comichão do caruncho e as pinças do seu caranguejo e por isso começou a fumar a serradura que expelia. Se o mal que saiu voltar a entrar deixa-se de ter espaço para novos males e assim, ao menos, o mal faz-nos sentir bem pela familiaridade. 
Hoje, finalmente e sem muito para contar, o cuco que sofria duplamente rebentou com os foles e esvaziou o cancro pelo chão da sala. A sorte é que ao canto a morte se dá bem por ter visibilidade reduzida e ao fazer-se de cega pisou todos os bichos de carpinteiro. Foi como se tudo fosse pó de fada madrinha. 
Só tenho pena de não ter chegado a tempo para assistir à sua morte de passarinho. 
De certeza que o cuco teve pele de não ter-me visto a dar corda quando os pesos tocaram no chão, canto, sala de estar.

3 comentários:

  1. Já deves estar farta de comentários do tipo "sem palavras", "nada a dizer", "excelente" mas o que é que tu queres que eu diga destes textos tão únicos em que misturas contos de fadas, crueza orgânica, país das maravilhas, humor negro, surpresa, crueldade, inocência, doçura.... ?

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  2. Já vim tarde mas...
    Sublime, como sempre.

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