sábado, 14 de julho de 2012

Através de ti (Parte I de III)




Parte I – Elianor

Sempre que entra em casa ouve uma voz que a cumprimenta. Bem-vinda, por onde andaste? Elianor, de olhos firmemente cerrados, respiração presa, queixo encostado sob o ombro esquerdo, levanta o braço direito e estende a mão na escuridão que inunda a sala de entrada. Quase que o sente. Quase. Mas não o sente. Não se pode sentir o que não está lá. Respira fundo… a mesa de cerejeira, as cadeiras almofadadas, arrumadas, marcam a ausência.

Por onde andaste, Elianor? Que ruas foram essas em que vincaste os passos apressados, que luz te afagou a face branca, branca como um anjo de porcelana, de traços finos e olhar distante. Onde estiveste Elianor? Não, não estiveste à beira da água, a sentir a brisa fresca da manhã, a contemplar as crianças a brincar com as flores. Não ficaste sentada na paragem de autocarro, à espera do número que nunca mais vinha, fingindo aflição pelo atraso, quando tudo o que querias era que alguém te visse, mesmo que não desse pela tua presença.

Quem mais te viu, Elianor? Quem te pôs os olhos em cima e sorveu o teu cheiro doce de amendoeira em flor? A quem ofereceste tu o teu olhar imenso e sonhador, entre palavras de circunstâncias e pequenos toques ocasionais na manga da tua blusa.


Senta-se sobre a cama espartana. Não mais que uma pequena almofada, um lençol de linho sem qualquer bordado e um cobertor de lã amarela. Não tem bonequinhas no aparador, nem laços pendentes sobre o espelho. Apenas um pequeno frasco de perfume, quase vazio, feito de cristal fosco. Descalça-se com os calcanhares enquanto desabotoa a blusa. Suspira e quase sorri. Estou aqui, parece murmurar, estou em casa. Solta o cabelo suavemente com os dedos finos e murmura. Talvez cante para si mesma, ou para alguém que não está ali.

Escurece rapidamente e a noite toma posse dos aposentos. Fecha-se a cena, Elianor deitada sobre a cama, ainda meio despida e em posição fetal chora baixinho enquanto esfrega o ombro direito e mostra uma nódoa negra já em fase de desaparecimento.


Novo dia, mas apenas isso, pois nada mais é novidade. Uma caneca de leite à temperatura ambiente, com um pouco de mel e uma folha de hortelã do vaso que está à janela e, virado a leste, saúda a alvorada que arranca tímida entre nuvens altas de gelo cinzento. Restam três biscoitos duros num pote de porcelana castanha, Elianor retira apenas um, mordisca-o e pousa o resto sobre a mesa. Olha para o relógio na parede, quase escondido entre o floreado mórbido e pálido do papel de parede em tons de cinza e roxo envelhecido.

Novo dia, a mesma rotina. Há uma cadeira vazia que espera por ela num gabinete perdido, longe de casa. Mas esse é o truque, estar longe de casa. Porque logo ao fim da tarde, quando voltar a casa, vai subir os degraus do alpendre, por a chave à porta, abrir devagar e assomar no vazio que a contempla. E ouvir, bem-vinda Elianor, por onde andaste?

A caminho, afastando-se da casa que se apequena a cada passo ligeiro rumo ao novo dia, Elianor recorda-se de quando era criança, do tempo passado a fazer bolachas no forno de brincar que a mãe lhe deu na manhã de Natal. Dos risos à mesa quando todos se reuniram para a ceia. De adormecer aconchegada nos lençóis de flanela com desenhos de flores e cavalos. De desejar boa noite às bonequinhas de porcelana, a quem dera também um presente naquela manha fria de Natal, um biscoito para cada uma. Lembra-se do vento que uivou terrível naquela noite, do pesadelo que lhe matou a madrugada e desfez a chegada do novo dia.


Sim, eu lembro-me de ti, murmurava Elianor, aconchegando-se a si própria, enquanto se sentava à espera do autocarro…

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