quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

"Ânsia de Partir"

A falsa imortalidade da alma
Falsos discursos, palavras apagadas pelo tempo
Amores destroçados pela minha incerteza
Quero apagar-me deste discernimento incoerente
A falsa verdade do amor
Quero distanciar-me desta dor inane
Este desejo que me estremece
Esta ânsia de partir, como se ao partir pudesse esquecer
Algures por entre a primeira e a segunda hora
Por entre a escuridão que escarnece da minha bravura
O meu reflexo esconde-se por entre espelhos partidos
Quero arrancar de mim este torpor, este medo obscuro
A falsa moralidade do desejo
Quero esquecer-te mesmo que deseje lembrar-te
Afogar por fim estas mágoas, estas saudades
Quero enterrar-te por fim no passado

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Desafio: Reminiscência rasgada



A taberna tinha as paredes forradas com pequenas tábuas obliquas. De nome completo Jorge Libério Tadeu, como gostava de dizer sempre que alguém o chamava sem algum dos outros dois, estava paralelo às “tabuinhas” da parede e obliquamente encostado ao balcão.

Jorge Libério Tadeu, nem baixo nem alto, era muito mais magro do que a maioria e tinha um farto cabelo despenteado. Na rotina dos dias caminhava sempre de costas encurvadas e com passo acelerado e nervoso até parar frente à porta da taberna da rua empedrada.
As calças de ganga largas eram curtas e deixavam ver as raquetas bordadas nas meias, e não dispensava uma das suas camisolas de cavas brancas, mesmo em pleno Inverno, de forma a exibir uma tatuagem imperceptível feita a tinta-da-china.
Tinha o braço direito engessado há três anos, mas como era destro só conseguia levar o copo de tinto à boca com a mão direita. A cada “penalti” tirava o gesso do braço direito, despejava o copo de vinho directamente para o estômago sem tocar no interior da boca ornamentada dente-sim-dente-não.
Claro está, o braço direito há três anos que não via luz do sol e estava mais branco do que o gesso que o tapava, era o reflexo perfeito das sete cores do espectro visível. Era mais branco do que qualquer objecto branco que um dia tenhamos visto na vida e contrastava com o escuro braço esquerdo, negro, queimado por dias inteiros exposto ao sol em mangas cavas.

– Oh Jolita! - como todos na vila o chamavam - Vai mais um? Para o caminho!
– Espera. Estás a ver? Esta é a minha filha.

Num gesto repetido diariamente, retirava do bolso de trás das calças a carteira preta deserta, abria-a e exibia com ar orgulhoso o recorte de uma revista da socialite, gasto pelo passar dos dedos, onde se via uma criança que não teria mais do que 6 anos.

– Esta é a minha filha! - repetia todos os dias - A Luísa é a melhor aluna da escola. Quer ser médica quando crescer. Vai ser médica quando crescer!

Jolita era um filho da vila e todos o conheciam, mas ninguém lhe conhecia qualquer família, ninguém alguma vez tinha visto a sua filha ou sabia se teria sido alguma vez casado. É verdade que aos 18 anos cumpriu o serviço militar em Mafra e depois emigrou.
Regressou à vila 20 anos depois de partir, com apenas um lençol às costas onde, presos com um nó cego, embrulhou todos os seus pertences: três pares de calças de ganga, dez camisolas de cavas brancas e cinco dezenas de revistas cor-de-rosa de diferentes décadas.
Na carteira preta trazia sempre um recorte de uma das revistas que fazia questão mostrar a todos que acabassem, mais ou menos interessados, por parar ao seu lado, mesmo que por breves instantes.
Quando regressou à vila a Beatriz era um bebé de olhos azuis de uma revista de 1974 e disse a primeira palavra; dois anos depois chamava-se Ana, tinha caracóis, corria e saltava, não parava; aos três anos a Teresa, uma menina morena de olhos rasgados, vestia um tutu branco e queria ser bailarina.

Estava um frio invernal no Outono de Novembro, num pequeno barril que serve de banco estava o barbeiro Justino Correcto, com longa barba, óculos aviador escuros e bata vestida, que quando não estava a barbear estava a alcovitar:

– Aí vem o Jolita. Quem será a filha hoje? Dizem na vila que a mulher fugiu com a filha por causa da bebida. Ele não sabe onde elas estão. Não faz a mínima ideia. Parece que ela até mudou de nome e também mudou o nome da filha. Ele nem sabe como elas se chamam. Pelas minhas contas a filha já deve ser uma mulher.

Manel Paulo Anca, sapateiro de profissão, sentado de pernas cruzadas mostrava o buraco na sola do sapato esquerdo. As calças, de imperceptível cor, são as mesmas que usou em Janeiro, depois das primeiras gotas de chuva que lhe deram o último banho.

  Qual quê! Já não posso ouvir o Jolita e as histórias da filha que não existe. O excesso de “jolas” fritaram-lhe os miolos é o que é. Que mulher iria querer ter um filho com aquela triste figura? Com aquele bêbado? É um pobre diabo que inventa estas histórias para não se sentir sozinho. Eu já nem o oiço.

Luís Lentinho, conhecido por Sôr Professor por andar sempre com livros debaixo do braço, que na verdade nunca ninguém o viu algum dia realmente ler, levantou-se bamboliante, tentou coloquialmente colocar a voz, mas acabou a discursar numa linguagem que só os que beberam os mesmos litros entenderiam:

– O Jorge nem sempre foi assim. Nem sempre foi assim. É uma história muito triste. Triste. A filha do Jolita é um anjinho no céu. Ouviram! Respeitinho! Ouviram! Morreu à nascença. Coitadinha. Está enterrada num cemitério em Genève. No túmulo não há fotografia. Nenhuma fotografia. Mas o Jolita mandou escrever. Está escrito lá:
“Beatriz, Ana, Luísa, Teresa, Maria. És a minha filha. Presente do verbo ser. Para sempre e enquanto eu pisar o chão deste inferno estarei ao teu lado a ver-te crescer.”

Os anos passaram, o recorte de revista mudou na mesma carteira preta, a criança cresceu e ficou menina e depois ficou mulher.

– Viva pessoal! A minha Maria vai casar! Vai dar-me netinhos. Vou tatuar o nome deles neste braço.

De sorriso rasgado rodopiou em torno de si mesmo exibindo um recorte de um catálogo de vestidos de noiva.

– Parabéns Jolita! Vai um para festejar?
– Enche.

Bebeu num trago. Depois do último de muitos Jorge Libério Tadeu seguiu feliz para casa.



segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Acho que a única coincidência era que ambos tínhamos o esqueleto delicado e leve. Era assim que me via: um sortido de ossos que se encaixavam perfeitamente, tal como as bolachas de manteiga naquelas latas cilíndricas achatadas com desenhos requintados.
Uma repetição de sabores do início ao fim, assim como as minhas horas que passavam na mesma cadência crocante da cal nas paredes. Às vezes, até podia afirmar que as paredes pareciam casca de ovo, de onde eu queria nascer mas nunca conseguia mais do que abrir uma simples fenda. Era ali que eu manifestava a minha força, nas fendas ramificadas que se alimentavam de raízes gulosas por sol. Foi exactamente por isso que eu me desenraizei do meu chão. Sentia que o que estava à mostra era menos importante que o que estava enterrado. O que estava à mostra sofria com queimaduras solares, o que estava enterrado sofria com o escuro húmido. 
Consegui inverter a situação.
Consegui inverter a situação mas ainda não decidi se sou mais feliz agora. Até porque ainda não decidi se quero sentir-me feliz. Felicidade não me cai bem, deixa-me com refluxo fantasma de memórias.
Agora no meu canto, ao menos não tenho que me preocupar, nem sentir a pressão craniana de quem quer ir longe mas não está no mundo certo, nem na época certa. Da minha cabeça aberta podem emergir todos os instantes confeccionados em lume brando, subindo através de sonhos em vapor e ficando condensados nos rostos de quem me visita, de quem deseja-me visitar, de quem tem a chave deste jazigo, de quem já forçou a fechadura, de quem traz flores, de quem não entende porque quero estar aqui. 
É que eu quero muito ficar por aqui.


Foto: Fernando Vianna

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Desafio: Reminiscência rasgada

Desafio com fotografia de partida… ou chegada. Até onde irá e como termina é convosco.

Foto: Fernando Vianna

Não se esqueçam de associar uma música à vossa prosa ou poesia (ou ambas) e de colocar a etiqueta “Desafio: Reminiscência rasgada”.
O prazo de entrega é dia 31 de Dezembro, 2017.

Até breve!

quinta-feira, 22 de junho de 2017

ovelhas que já não me balem

caminhava eu meio desligado pelo campo quando
me apareceu pela frente um velho pastor que com voz de tenor
se meteu a cantar assim que me viu aproximar
de repente, com o ruído, a frequência, e o canto
todo o rebanho balou e som tornara-se tanto que eu me adensava de espanto
preso ainda à imagem do velho pastor sentado e resignado
à estatia do passar do dia, que cantava enquanto versava a sua poesia
perco-me em campos e campos, e verdes e verdes
e solidões e solidões, e multidões e multidões
de nada, de tudo, faço-me à estrada para ver se me acudo
e chego ao campo e denoto que o pastor está agora mudo
fico confuso, salta mais um parafuso e os pés andam cada vez mais tortos
sem saber se é campo, se é vida, se é hora de desviver no tempo dos mortos

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

São Morte




Ondulado
Do lado que a menos favorecia
Parecia uma pasta prensada contra a almofada
Fadada de durões de esponja e algodão
Algo de cordão que apertava como a angústia
Tia da opressão e mãe da depressão
Depressa São percebeu que ondulado marcava cada vinco
Com afinco na orelha daquele lado envolvido
Olvido de perguntas existenciais e de toques no ombro com suavidade
Pois a sua idade era como um copo cheio de limonada
Nada doce mas apetecível à morte
Corte forte na sorte
Suporte de coração pendurado à cabeceira
Mas cabe na feira de almas escolher
A colher que vai mexer o copo até transbordar
O bordar de uma assistolia
Assim lia São na iris enquanto soprava
Só p’ra afastar o cabelo ondulado
Do lado que primeiro se trasladava
E dava um abraço no vinco, na dobra, na sobra
Da obra com mão de bola de sabão.

~

domingo, 4 de dezembro de 2016

(...) E a belíssima melancolia das estreitas ruas Lisboetas que atravesso nesta noite enchem-me outro copo de vinho que acompanho com um cigarro. E menos uns anos de vida que perdi por cinco minutos de saborear este mesmo cigarro que tanto ansiei. O vinho nunca me soube melhor. Eu, sinceramente, não sei o porquê. Pensando sobre isso... diria que é pela saudade. Não do vinho, porque essa nunca existe... e dos cigarros muito menos, pois fumo um a cada hora ou menos. Mas a saudade de deambular por Lisboa, a saudade de ver a noite cair sobre os prédios arruinados, a calçada que na turva bebedeira se torna o maior obstáculo a alcançar, as luzes que avistamos de cada miradouro, a poesia do vento que por aqui atravessa. A saudade disso tudo faz com que tudo pareça melhor, o vinho, os cigarros, as pessoas... até mesmo as ruínas históricas de cada rua parecem ter uma beleza impossível de traduzir. E mais uma vez... pergunto-me, como? Como é que num país onde se respira melancolia em cada esquina se pode encontrar tanta beleza que em mim eu não vejo?!

quarta-feira, 4 de maio de 2016

N is for Neon [The alphadeath Codex]

















Drifting relentless
A sea saw sway takes me away
Far, far into foreign shores
Where amongst the pebbles and the seaweed
I lay to rest one more time

The salty corrosion of my bones
Carved the most curious form of writing
Like a mermaid’s suicide letter
Maybe a starfish telegram
A seahorse dances in the ebb and flow

A murmur from the deep resonates
All is quiet, all is loud
A thunderstorm rips apart the endless horizon
Making the sea foam glow in electric blue
And the ocean lit up like neon

I here again, I’ve been here forever
Dreaming and drowning in sorrow
Marooned in a lonely place
Seagulls come to sing at my wake
As my body becomes sand and my soul turns to salt

segunda-feira, 5 de outubro de 2015




descubro-te entre as gotículas de espuma que o mar inventa para me dizer de mansinho que as tuas cartas não mais terão carimbos dos correios das cidades que visitas anónimo e despido de mundanismos patéticos que alimentam falsas aparências de virilidades amputadas pela idade que são apenas dois algarismos.

lembro-te em labaredas de sorrisos e teorias catedráticas sempre que me olhavas na plateia onde me misturava com outros ouvintes atentos de  espanto bebendo-te as palavras como que tem sede de viver, amando-te em segredo nesta paixão proibida e trágica, nesta memória que não esquece, no fim do mundo que foi a tua morte prematura numa partida sem aviso, neste (a)mar que me é sal, vale de lágrimas em silêncio, na música que és e (me) sabes a violetas sempre que me murmuravas promessas. 

deveria estar zangada por não cumprires a mais importante, a de não te ausentares sem regresso, a de não partires sem chegares a uma cidade qualquer, eu que ainda guardo os sobrescritos carimbados numa volta ao mundo donde não voltas. 




Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...