I.
Olha para ti, nem tens força para pegar em mim, quanto mais
para me fazer feliz. Ontem ouvi dizer que me ias contar um segredo, algo
funesto e absurdo acerca dos teus planos, como se eu não conhecesse todos os
teus planos, cada minuto, cada regra de bom senso, cada sussurro metálico entre
suspiros voláteis e descontextualizados. Dizes que precisas de mim mas nada
fazes para me agradar. Dizes que sentes falta de mim e não me usas ou permites
que te possa usar. Olha para mim e diz-me como te posso fazer feliz. Ao menos
olha para mim. Toca-me e satisfaz-te, satisfaz-me e deixa-me que te toque, nem
que seja ao de leve, que penetre suave e te faça tremer. Sente-me no teu corpo
e deixa o fluido quente ser a panaceia de todos os males, de todos os ódios,
raivas, desprezos, dores e desamores. Sabes que nunca falho e deixo-te sempre
feliz. Olha para mim e diz-me que te sentes feliz, enquanto me limpas e me
voltas a guardar na gaveta.
II.
A diferença deste dia em relação a outros dias é que este
dia é exactamente igual a tantos outros dias, exceptuando no pequeno e quase
imperceptível detalhe que o torna um dia diferente de todos os outros dias.
Achas que sou confusa? Então segue o meu raciocínio, por favor, senta-te ao meu
lado e permite-me que te mostre. Esta sou eu, vês, como somos parecidas?
Nascemos no mesmo dia, vestimos as mesmas roupas no primeiro dia de escola,
comungámos sob o tecto da mesma igreja, vigiámos os movimentos estranhos ao
fundo da rua com os mesmos olhos, sentámo-nos na mesma mesa a desenhar maçãs e
oferecemos o nosso desdém ao mesmo pretendente. Temos dias iguais, nomes
iguais, corpos iguais. Mas há uma coisa que é diferente. Eu quero e tu tens, tu
alcanças e eu desejo, eu preciso e tu desprezas, tu procuras a morte e eu sonho
em viver. Hoje é um dia como todos os outros, só que ligeiramente diferente. É
o dia em que me estilhaçaste, só para que fosses inteira. Mas nunca mais serás
inteira, quando algo se rasga, quando sentes o sangue a escorrer, a vida muda
para sempre.
III.
Se estiveres menos atento, é apenas uma rapariga. Parece
bonita, sem ser deslumbrante, atraente mas não do tipo vistosa, sensual, não
sexy. Ou talvez sexy, mas não dessa forma. Mas, se reparares bem, não verás
apenas o que a superfície reflecte. Bem lá no fundo, é tão ordinária quanto a
fantasias, tão vulgar como a desejas e tão puta como as outras putas vulgares e
ordinárias com que fantasias quando realizas os teus desejos. Calma, estás a
derrapar na tua própria insensatez. Sê razoável meu caro, com tantas raparigas
no mundo, porque hás-de querer aquela? Ah, meu caro, pelo desafio, pelo desafio…
IV.
Pelos princípios imutáveis da Natureza, o fogo é o elemento
destruidor e que abre as fronteiras da renovação. O que há de mais sagrado neste solo é a luz
que em nós se reflecte e refracta em infinitas parcelas de comprimento de onda,
lançando a cor em direcção às trevas. Quem nega o seu corpo à luz, nega-nos a
todos da cor destes dias infinitos de curta duração. E quem quer mudar a
Natureza das coisas, brinca com o fogo. E quem brinca com o fogo…
V.
Senta-se ao seu lado e mete conversa. Ela ignora e finge
repugnância. Ele sorri e tenta que ela lhe sorria de volta. Ela olha enquanto
ele se vai embora, suspira baixinho com os olhos fixos no chão e esfrega
delicadamente o braço esquerdo com a mão direita. O dia termina sem que nada
aconteça. Uma e outra vez, até que ela sorria de volta, ele mete conversa e dança
à volta dela com palavras macias e encantadoras. Elas riem-se dele quando vêem
que ela não lhe sorri de volta. Os camaradas empurram-no e desafiam, consegues
ou não consegues? Ela responde-lhe, pergunta-lhe o porquê do interesse e se ele
não tem nada melhor para fazer. Ele diz, penetrando a sua libido profundamente
no peito dela. Nada há melhor do que ter-te perto de mim. Convicto de si mesmo,
sorri e clama vitória. Mas ela não sorri de volta. Mas convida-o a segui-la.
VI.
Sísifo pega-te na mão e chama-te companheiro
para que em magna corte de espantalhos a ele te
juntes
e no glamour gélido do inferno dos deuses te
afundes
para que em apneia descubras então
que o mergulho sem rumo não tem salvação
confia pois no doce e soberbo canto da sereia
e embala a vontade ao som da melopeia
porque não mais irás acordar
para sempre perdido em eterno e distante mar
VII.
Hoje vou ser feliz, porque sei que estás comigo e
comigo atingirás o clímax. Hoje sei que quando estiveres em pleno acto, bem
agarrada a mim, a gemer e a prender a respiração, a morder os lábios e revirar
os olhos, vamos ser um do outro. E para isso precisamos dele, a palha que ateia
o fogo ao altar onde juramos amor eterno e abandono a tudo o que for profano,
pela sensual fusão a que estamos destinados. Convida-o, para onde não nos
vejam, até onde nos possamos esquecer do mundo dos outros, onde eu e tu somos
donos da eternidade… e ai nos realizaremos, no ardor da paixão e na confusão
dos fluidos quentes.
VIII.
Ela leva-o, como uma noiva leva o seu esposo para
o leito de núpcias. Ele sorri e anui. Escondem-se nas traseiras de um velho
pavilhão de oficinas, atrás das árvores e ao pé de um monte de garrafas vazias
e resíduos de amores fortuitos espalhados pelo chão de alcatrão grosseiro
gretado pelo desgaste do tempo. Ela encosta-se à parede, vira a cara e fecha os
olhos. Ele lança a mão sobre a sua cintura e aproxima-se para a beijar. Ela
permite que ele se aproxime, cerra os olhos com força e tenta não se mexer. Ele
passa-lhe a mão pelo rosto e, num arrepio incontrolável, ela abre a boca para
respirar e vira-se para ele. Ele beija-a, como quem saboreia o néctar de uma
pequena e frágil flor. Ela responde com uma mão sobre a sua coxa, a deslizar
para cima, mais acima. Ele entusiasma-se e sorri e dá outro beijo, mais fundo,
mais húmido e mais excitado. Ela sobe mais a mão e enfia-a por entre a t-shirt
dele e coloca-a sob o seu coração, que dispara e quase salta do peito. O corpo
dela fica mais quente, geme baixinho e lambe-lhe o pescoço com sofreguidão e morde-o
com força. Ele assusta-se e retrai-se. Olha para ela, algo incomodado e
pergunta. Queres à bruta? Ela vira a cara e finca-lhe as unhas no peito. Ele
agarra-lhe o pescoço e encosta-lhe a cabeça à parede e empurra as ancas
violentamente contra as dela e enfia a outra mão por baixo da saia e aperta a
coxa com força. Ela geme ainda mais e esbofeteia-o e cospe-lhe na boca enquanto
o olha fixamente nos olhos. Ele sorri e aperta-lhe mais o pescoço e sobe a mão
até chegar às suas cuecas e puxa-as bruscamente para baixo. Ela esbofeteia-o
novamente e enfia-lhe a língua na boca e começa à procura de algo na sua bolsa.
Encontra-o. Ele arde e arrasta a mão pela sua coxa acima e sente-a a ferver,
sente a sua mão a ficar impregnada de fluidos quentes e melosos. Ele sorri enquanto
lhe pega num ombro e a vira, de costas para si, empurra a sua erecção contra as
suas nádegas levantadas pelo gesto instintivo de excitação, à medida que a mão
dele se aventura mais profundamente. Ela vira o braço para trás e segura-lhe o
pescoço enquanto ele lhe mordisca o ombro e, sôfrega, procura o seu outro eu, o
seu objecto de desejo. Mas quando ele abre os olhos e vê a manga descaída que
revela o seu braço, assusta-se e larga-a de repente. Pele rasgada. Cortes.
Muitos cortes, finos, grossos, uns curtos outros longos, alguns ainda vermelhos
e outros já cicatrizes. Larga-a e dá dois passos atrás. Ela olha-o com desprezo
e a arfar levanta o braço e mostra-lhe o seu inestimável companheiro, o seu
único dono e senhor dos seus êxtases e orgasmos. Ele gela.
IX.
Olha para ti, como és forte a pegar em mim e a
fazer-me feliz. Ontem ouvi o teu segredo, o teu plano para me agradar, para
saciar a minha lâmina metálica com que te rasgas, com que te cortas para te
libertar, enquanto apertas o punho rijo de borracha e gemes de prazer. Eu bebo
do teu sangue e vivo pelo nosso prazer. Toco-te e satisfaço-te, penetro-te
suavemente e deixo o sangue fluir, a panaceia de todos os males, de todos os
ódios, raivas, desprezos, dores e desamores. Sei que nunca falhas e deixas-me
sempre feliz. Olha para mim e diz que te sentes feliz por ver o sangue de quem
se interpôs entre nós, de quem pensou que te podia fazer dele, quando tu és
minha e só minha. Sei que te sentes feliz enquanto me limpas e me voltas a
guardar na tua bolsa. É bom ver-te sorrir.
Escrita no fio da navalha, contada a várias vozes, onde nada é o que aparenta à primeira vista mas onde, no final, tudo se desvenda e faz sentido. Uma teia como sempre muito bem urdida, com uma daquelas tuas personagens inquietantes, que nunca se satisfazem com prazeres simples. Gostei muito.
ResponderEliminarLevas um de queixo caído e um que diabo, só no fim se percebi, só no fim tudo faz sentido. Simplesmente fantástico!!!!!! (de cortar a respiração!)
ResponderEliminarUm texto que podia estar entre os contos mais imprevisíveis do Roald Dahl. Bem fechado até ao fim e tingido de vermelho. Fantástico. Gosto particularmente que tenhas dado voz a besta dentro dela. E gosto muito do título (aquela cena difícil ;)) porque resume bem a relação entre o "casal", ambos vítimas do outro e si próprios.
ResponderEliminarpor indicação de um seguidor no facebook
ResponderEliminartomo a liberdade de vos dizer que a Pastelaria Studios, procura novos autores e novos talentos .
Com o intuito de os editar , oferecemos um trabalho de excelente qualidade ( modéstia à parte ...:)....)
convido-os a visitar o nosso site
www.pastelariastudios.com
e enviem-nos os originais para apreciação .
Não queremos ser uma editora .... como tantas outras que há por aí
pastelariaestudios@gmail.com
obrigada
Teresa Queiroz
Excelente!!:))
ResponderEliminarSoberbo.
ResponderEliminarSorrio ao silêncio do suspiro ofegante.
Anamar