À nascença eram perfeitos. Vinte dedos, pulmões limpos, grito agudo contra a liberdade puxada com ventosas. Um forte rapagão. Uma doce menina.
Nessa mesma noite, uma lâmina de lua roçou o seu rosto e obrigou-o a abrir os olhos. Entre uma sístole e uma diástole, o seu coração cresceu um milímetro. Ninguém reparou no seu olhar branco.
Na manhã seguinte, estilhaços de sol cravaram-se nas suas pálpebras e forçaram-na a abrir os olhos. Entre uma diástole e uma sístole o seu coração encolheu um milímetro. Ninguém reparou.
Quando o tempo o fez homem, já não tinha espaço no peito. Uma enorme massa de músculo, sangue e veia insuflava-lhe a pele convexa e arqueava-lhe as costelas. Como podiam os doutores da ciência não ver a deformidade no seu corpo e na sua alma?
Quando o tempo a fez mulher, já só tinha espaço no peito. Um poço seco e sem compasso erodia-lhe a pele côncava e implodia-lhe as costelas. Como podiam a ciência e os seus doutores não ver?
Tentou perder o que sobejava em muitos lençóis, dividi-lo por vários corpos. Mas a resposta não estava nos dedos de mulheres mortas gadanhando as suas costas, no lábio mordido até ao sangue pelo prazer comprado, na submissão do seu sexo à torpitude sem rosto, no desejo a confundir-se com a agonia. O seu tormento não se expurgava com espasmos fáceis drenados numa qualquer viela escura.
Tentou encontrar o que faltava em vários lençóis, um corpo que estivesse disposto a dividir-se com ela. Mas a resposta não estava nas bocas de homens mortos nos seus seios, no sexo sem prazer oferecido até ao sangue, no abandono a línguas sem rosto, na agonia a confundir-se com o desejo. O seu vazio não se enchia com bocados de desconhecidos engolidos num qualquer beco escuro.
Às vezes irrompia pelos campos oferecendo-se ao enredo das silvas, deitava-se no chão e esperava que os bichos da terra viessem devorar aquele tumor feito de morte.
Às vezes oferecia-se aos campos deixando-se romper pelo enredo das silvas, deitava-se no chão e esperava que lhe crescessem raízes para devorar a vida.
Outras vezes fechava as luzes, segurava os joelhos e imaginava a incisão perfeita que lhe permitiria meter a mão, arrancar a besta e vê-la deixar de pulsar entre os dedos.
Outras vezes fechava as portas, tapava os ouvidos e imaginava o corte perfeito que lhe permitiria meter a mão no vácuo e deixar o seu resto de humanidade escorrer-lhe por entre os dedos.
Sufocavam.
Sobreveio o desespero, a única força que escala até ao eremitério mais alto da dor sabendo que não haverá descida. E foi nas cumeadas dessas serranias que os caminhos da sua mortificação se cruzaram. Os seus olhos encontraram-se, as mãos despiram o resto dos trapos e, sem uma palavra, os seus peitos deformados encaixaram suavemente.
Mais uma autora que identificamos ao ler a primeira linha de cada novo texto, sem que isso nos prepare para as linhas que se seguem.
ResponderEliminarSublime transformação da carne em história
ainda a pensar no que acabei de ler...
ResponderEliminaradorei
Adorei a harmoniosa assimetria deles, a simplicidade perfeita da poesia deste texto, cada palavra no seu lugar exacto, o final belíssimo. Perfeito, como só podem sê-lo duas metade de alma que se encaixam finalmente. E queria ler mais.
ResponderEliminar... quando duas almas se encaixam, sente-se o alivio imenso de não ter de viver. o abraço parece o fim. é a paz inteira: nenhum outro gesto, nenhuma outra palavra é precisa para a completar... adorei!!!
ResponderEliminarUm texto tão agradável de ler, como de viver.
ResponderEliminarUma escrita que apetece continua a ter em frente ao olhar das mãos com que se constroem cenários de vida...
Anamar (não consigo comentar com o meu link:-(