segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Insectos (parte IV de IV)


Parte IV



Uma, e outra, e outra vez. Uma, e outra, e outra vez. Dou a volta à casa e procuro. Procuro quem me veja, quem me sinta, quem de mim sinta falta. Procuro não desesperar, mas desespero, falo comigo próprio e embrenho-me entre sombras, internas e externas, acabo por adormecer, talvez assim me liberte deste sono sem fim. Uma e outra vez penso em ti, penso em tanto que pensei em ti, penso e dói-me só de pensar na dor de tanto pensar. E pensar para quê? Afinal o que é que eu quero, quando já tenho tudo quanto alguma vez poderia querer. Se havia tão pouco que me fazia completo, agora que nada tenho, só poderei ser o ser mais completo ao cimo da terra, articulado comigo mesmo, sentiente de nada para além do débil limite do que me é permitido sentir, quase divino em matéria e forma, absolutamente extraordinário, sem nada, absolutamente nada de normal.

Uma e outra vez recordo, a falta de ter onde me agarrar, a quem me prender, afinal, todo o sonho era vazio e a ilusão a única coisa que era e é real. O que pode então a realidade fazer por um homem? É pela realidade que seguimos quando algo de surreal acontece? Quando nada do que acreditamos ser possível se realiza perante os nossos olhos e nos contempla para além do vazio que neles transportamos? Será esta realidade a vida? E se a vida for apenas o breve acontecimento que sucede entre a morte e o nascer, o renascer, a metamorfose? Será que a vida é mais real quando a vida em morte se transforma? Podemos então, em êxtase, antecipar o acontecimento da emergência de um novo ser? Será a vida um retrato fiel do mito da Fénix, onde nós, envoltos em chamas, bradamos aos céus que nos salvem, gritamos em desespero por um fim do tormento quando, em boa verdade, estamos a ser levados em mão à nova morada do nosso espírito, onde então a vida acontece? E se então, o portador da morte for o Anjo da Vida que nos guia durante a transformação brutal da carne em matéria divina, o sopro silencioso da corpora alata nas nossas veias e nos guia até ao abismo, para que finalmente possamos dar o salto de fé, rumo ao centro do universo, onde tudo finalmente irá fazer sentido?

Uma e outra vez, assumo o sentido de missão, de caçador de fantasmas, de juiz de mim mesmo e de desprezo pelo que sou e serei sempre, para todo o sempre, incapaz de admitir. Admitir que a vida continua e que o sol não gira sobre mim. Admitir que nada tem que fazer sentido para acontecer, terá somente que acontecer. Admitir que o que não sei é infinitamente mais do que o que sei, ou penso saber. Admitir que amar não é possuir, que desejar não pode ser querer e que querer não justifica, nunca, as nossas acções para alcançar. Eu só queria alcançar alguma paz, um pouco de sossego, uma boa noite de sono, sem pesadelos, sem ilusões de um outro futuro, um pedaço, só um pequeno pedaço, de bondade, abertura ao mundo, de normalidade.  

Para trás, para a frente, nesta casa deserta, onde nem eu me encontro, por entre os estalidos da madeira e o pó que tudo envolve, descobri a escuridão e assassinei os meus medos de ser feliz, ao assumir, em definitivo, não ser feliz, nem tampouco infeliz, simplesmente, não ser eu mas ser nada. Para isso tive que fazer escolhas. Para que eu nada fosse tive que algo fazer. Para me anular a mim, tive que aniquilar a representação maior no eu que tardava em desaparecer, desvanecer através dos vidros sujos das janelas desta casa e da minha alma. Tive que me matar. E qual a melhor maneira de me matar? Matar-te.

Então esperei. No dia em que te reencontrei esperei para ver onde te dirigias, no teu voo rápido e majestoso de ser superior, na tua bonomia para com o mundo de larvas incompletas e cobardes que vivem dos restos de seres como tu. Vi que lesta partias e, tão imaterial, que deixavas cair o pequeno papel que tinhas na mão. Apanhei-o e li. Li, era uma morada, uma casa pequena, perfeita para alguém de passagem, só terias mesmo que confirmar com o seu dono que estava disponível. Vi e esperei, um dia, dois dias, muitos dias. Até saber de cor. É a fraqueza das libélulas, os hábitos, gostam de manter rotinas e de voltar ao junco alto onde podem ser vistas e admiradas, de marcar território e afirmar a sua superioridade. É sempre a superioridade, essa falta rude e torpe de modéstia que derruba os heróis e os seres belos e inalcançáveis. Esperei, e consegui.

Já não me surpreendi quando não me reconheceste ao ver-me à porta de teu quarto. Já não me doeu que não gritasses pelo meu nome quando imploraste clemência. Já não me assustou olhar para os teus profundos e apavorados olhos verdes e nem rasto de mim vislumbrar. Já não me custou ver-te partir, para sempre, envolta em mim, com as tuas mãos a segurarem os meus braços, mesmo que só fosse para afastar as minhas mãos do teu pescoço e a suspirar, por uma última vez, até contemplares o céu que se haveria de abrir sobre nós só para ser o palco do teu último voo, transmutada, rumo a casa, a tua casa.

De volta a minha casa, sento-me na cama de ferro e deito-me, deixo-me adormecer porque sei que não vou sonhar. Nada há para sonhar, acabou. Sou livre de nada ser e de nada sentir. Não temo mais o dia seguinte. Não sinto qualquer fascínio pelo cair de uma nova noite, pois não haverá qualquer noite nova depois desta, serão apenas repetições da mesma, vez após vez, após vez...

E quando penso em ti, já nada penso. Nada há para pensar quando estamos sós, livres de qualquer sentimento, em frente só há dragões. Nada para além do grande vazio, do derradeiro passo em frente, nada existe para além do vácuo que me preenche há medida que avanço no meu mergulho, de olhos bem abertos, abismo adentro…

3 comentários:

  1. Confesso que este foi o que mais me emocionou...sabe tão bem ler-te! E como gostava de ter este talento para escrever isto, desta forma, perfeita!
    "Admitir que a vida continua e que o sol não gira sobre mim. Admitir que nada tem que fazer sentido para acontecer, terá somente que acontecer. Admitir que o que não sei é infinitamente mais do que o que sei, ou penso saber. Admitir que amar não é possuir, que desejar não pode ser querer e que querer não justifica, nunca, as nossas acções para alcançar. Eu só queria alcançar alguma paz, um pouco de sossego, uma boa noite de sono, sem pesadelos, sem ilusões de um outro futuro, um pedaço, só um pequeno pedaço, de bondade, abertura ao mundo, de normalidade. "
    Fica a vontade de te ler, mais e mais!

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  2. ...ler-te é um reencontro. por vezes uma reconciliação comigo mesma.

    mais e mais, please:-)

    Anamar

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  3. Tudo faz sentido no final, como um círculo que se fecha. O fim é o princípio é o fim. De leitura ávida, esta quadrilogia recheada de questões profundas.

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