domingo, 10 de abril de 2011

Ecolalia



Alivia-me o barulho que o mastigar faz dentro da minha cabeça. Olho para as migalhas de bolachas na camisa ao mesmo tempo que oiço os teus gemidos vindos do quarto. O som ecoa na vertical com a cama e usa-se como fumo até à sala. Na verdade não sei há quantos anos passo noites inteiras a ouvir os teus monossílabos vasculares cerebrais acidentados… só sei que o raio da noite amplifica tudo o que me queres dizer e eu não percebo.
Já sem fome, faço por não me lembrar de te perguntar se também queres comer qualquer coisa… enjoa-me ver o que comes a deslizar por um tubo que afunda-se no teu vazio ausente.
Na véspera daquele dia tínhamos ido fazer um piquenique e pelos teus sorrisos encaracolados ao canto dos lábios sabia que íamos ser felizes, ver-te bastava para ter essa certeza. “Queres também uma uva, amor?”
Do campo salpicado de primavera para um corredor salpicado de macas foi um bater de pestanas para ti. Para mim foi um espirrar de dedos vincados na cara e lágrimas de criança molestada.
Tens noção que não consigo sequer dormir ao teu lado? Tens o teu cadáver vegetal cravado no colchão que te acaricia as escaras e em cada buraco que tens fervilha o meu abismo.
Eu não merecia isto! Se pudesse não te tocava, lavar-te faz-me vomitar o meu egoísmo e ignorância, o teu cheiro passa para o meu e eu sinto todos os poros a arder. Porque me fazes isto? Não há água que tire o teu cheiro de mim, o teu hálito, a tua voz, o teu olhar de xisto, o teu toque suado e viscoso.
As pessoas têm mais pena de mim do que de ti. És a filha da mãe que arruinou a minha reputação de homem capaz de tudo, os outros invejavam-me, sabias? Queriam ser iguais a mim. Agora ligam-me a perguntar se estás melhor. Ligam-me mas não me vêm ver, não querem entrar nesta casa de mofo humano e eu não quero sair dela com vergonha que me venham perguntar como estou. Como estou? Tiraste-me tudo. Deste-me tudo para depois no teu egocentrismo me tirares até o que não tinha.
Gostava que te tivesses preocupado um bocadinho com a minha vida, com a nossa vida.
Na véspera daquele dia, coloquei-te uma flor atrás da orelha e derreti-me a ver as tuas cócegas de menina corada. “Gosto muito de ti, amor.”
Tudo em ti me fazia bem, era mais forte por olhares para mim. Prometeste que ias sempre olhar para mim… e eu acreditei. Traíste-me com outro estado de espírito, fizeste-me escravo de ti, sabias que nunca te ia abandonar e aposto que por detrás dessa cara embaciada ris-te de mim, gozas comigo, desfrutas disto para alimentares essa tua carcaça que nunca mais morr…
Quero mesmo que morras, desejo-o com todas as minhas forças, se soubesse que ia ser assim, na véspera daquele dia devias ter sufocado com as bagas de uvas que tanto gostas, devia ter-te arrancado os olhos de cada vez que dizias que os tinhas só para mim, devia ter-te cortado cirurgicamente o sorriso e enrolando-o na toalha aos quadrados brancos e vermelhos. Se soubesse que ias ser tão nefasta para mim, nunca te tinha roubado aquele beijo, nunca tinha adorado o brilho dos teus olhos, nunca tinha…
Porque não morres já, amor? Por favor…peço-te. Morre. Faz isso por mim. Ainda me amas?

2 comentários:

  1. bebo as tuas palavras e sabem-me a vinho do Porto
    um brinde

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  2. Que estranha sensação de que o teu texto, lindíssimo, foi "contaminado" por outra pessoa....

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