segunda-feira, 2 de abril de 2012

... de água salgada




Lá está ele a vestir o fato bom e a escovar o chapéu. Vai outra vez ao jornal colocar o anúncio, o mesmo de sempre. Como se alguém quisesse comprar um crocodilo empalhado de quatro metros para pousar em cima de um móvel. Acho até que já não se fabricam móveis com quatro metros. Nunca se livrará de mim.


Já tivemos algumas visitas, é certo. Um artista algo bizarro que queria fazer uma escultura com  bocados de animais embalsamados e outros em putrefacção, uma senhora com tesouras em vez de olhos que me transformou em carteiras e botas com uma só mirada e um doutor qualquer de um museu qualquer que tentou ensinar-nos todas as estatísticas que lhe enfiaram na cabeça sobre répteis. Acabaram todos corridos de forma deselegante, principalmente o último quando quis explicar-lhe os quilopascais de uma dentada de crocodilo.


Como se ele não soubesse. Como se os meus dentes, “cujo número varia entre os sessenta e quatro e os sessenta e oito”, não lhe tivessem arrancado metade da perna.


Foi noutro tempo, nos antípodas desta velha casa cheia de aranhas e conservada pelo cheiro do formol. Só existia o meu estuário aberto até que o puxão de uma armadilha e bolas de fogo vindas de lado nenhum rasgaram-me escamas, pele, carne e vida. Tal como acontece com vocês humanos, a hipoxia não perdoou e lá segui o túnel de luz no final do qual estava o tal membro que abocanhei num último pulsar de sangue. A perna de um rapazola imberbe e apavorado que acompanhava um pai determinado em fazer dele um macho a sério. Foi instinto, nem sequer gosto de carne humana. Recordo-me apenas de um ou outro turista estúpido ou fotógrafo intrépido.


Logo na hora o pai decidiu que eu deveria ser embalsamado. Se o miúdo não ia prestar para muita coisa, ao menos que tivesse uma boa história para contar e um troféu para exibir juntamente com o pedaço de coxa. E assim foi. É lógico que começou por ser um acidente de caça e acabou numa luta corpo a corpo nas profundezas salobras do rio mas quem conta um conto tem o direito universalmente consagrado de acrescentar um ponto…. ou uma recta, neste caso.


A nossa história real não tem sido feliz. De regresso ao país natal, a sua obsessão com aquela fracção de segundo e com os crocodilos foi aumentando à medida que a sua sanidade mental diminuía. Tornou-se, obviamente, taxidermista. Começou por estudar o réptil, decidiu coleccionar mandíbulas e passou anos agarrado às escrituras e ao Leviatã. Depois convenceu-se que ganhara um novo sentido, uma espécie de fúria devoradora, e deixou de cozinhar a carne. De seguida veio a fase em que se pintava de branco, subia para o meu dorso e julgava-se a comandar uma legião de demónios. Colava-se à janela e fazia todo um ritual de gestos com os quais impedia o mundo de avançar, mantendo as pessoas a correr no mesmo lugar. Convenceu-se de que não poderia ter mulher e filhos porque se o fizesse a criança teria garras e rasgaria a mãe para nascer. Passou por diversos momentos complicados que culminaram no emprego no hospital e no compartimento secreto cheio de pernas embalsamadas. E então, de um dia para o outro, deixou tudo de lado.


O tempo foi passando e o pobre rapaz desaguou num homem precocemente velho e meio louco. Ultimamente anda com mais pressa de vender-me. Tal como eu, ele tem visto por aí a dama da morte. Ela derrama a sua sombra na cadeira junto à porta, ele puxa um banco, vai buscar a espingarda do pai e ficam para ali os dois horas a fio a olhar-se nas covas dos olhos.


Agora ele acha que eu sou Osíris e que quando deixar o mundo serei eu a pesar-lhe o coração. Não sei se serei. Também não sei se ele fez muitas coisas erradas ou se carrega grandes culpas. Decidi que direi que é leve mesmo que não consiga levantá-lo do chão. É que se for pesado terei de o engolir e não posso fazer isso. Roubei-lhe parte do corpo e toda a sua mente, nunca poderia tirar-lhe também o coração. Dizem que a fome dos crocodilos só é suplantada pela da noite que devora o dia… mas até nós temos limites.


Na realidade, seria como comer o meu próprio coração. Com o tempo a água salgada das suas veias e o pó das minhas, abandonadas no outro lado do mundo, tornaram-se uma só lama.

3 comentários:

  1. "Ela derrama a sua sombra na cadeira junto à porta, ele puxa um banco, vai buscar a espingarda do pai e ficam para ali os dois horas a fio a olhar-se nas covas dos olhos."

    Gostei de pensar neste texto com imagens e gostei ainda mais de chegar a esta frase e não querer que tivesse um ponto final dois parágrafos abaixo.

    ResponderEliminar
  2. Esta esquizofrenia reptílica está maravilhosamente bem retratata neste conto! Muito bom, parabéns! :)

    ResponderEliminar

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...