terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Funeral




Todos os homens sabem quando estão prestes a morrer

Sim, juro-vos que sim, não tenho qualquer ilusão!

Pois, enquanto bebo este chá e vejo as horas passar, umas a outras suceder, sem pressa de saber quando ou como vai ser

Sei que vai de qualquer forma acontecer

Não precisa do meu sim, desdenha do meu não, foge entre os meus dedos, para além de qualquer possível rasgo de compreensão

O que dizer então? 


Se a vida não é mais que um episódio mal contado, incoerente e disparatado, emaranhado em palavras por dizer

Que esperas tu, que posso eu saber? Nada mais, nunca irás saber

O que acontece na mente de tão estranha gente, delírios, febres e sonhos enrolados, desejos decepados, anseios atormentados, quereres inacabados

Tristes fados, todos em tristes gavetas arrumados, por tristes realidades trocados

Queria eu saber como carregais então vossos fardos, não serão eles demasiado pesados?

E voga, vago, como um tépido vislumbre pardo, passo a passo, escondido entre um distante afago, na memória pesado, como poeta sem resguardo

Aguardo


Bebo mais um pouco de chá frio, como uma distante manhã de inverno

Terno, vazio, eterno

Impróprio, dizeis vós? Pois grito eu, de viva vós, impróprio por certo, mas por que decreto, lei ou regulamento, podeis determinar, mesmo que por um momento, a natureza do meu tormento?

Não será vossa lamúria, lento queixume, incúria, testemunho de vaidade?

Quem vos deu o dom da verdade, da régia clareza de decisão, para dizerdes se sim, se não, se vivo ou pereço… quem sois vós para saber o que eu mereço?

Ou deixo de merecer…


Que sabes tu, abutre dos meus dias, o que me irá acontecer

As horas assim devem ser saboreadas, em pequenas bicadas, catando migalhas de eras passadas, por águas turvas levadas, rio abaixo, poderosa corrente

Estarei assim tão diferente? Serei eu este eu que me mira jocoso? Olhar indigente, a mim próprio indiferente, uma réstia de gente que escorre meloso entre os ponteiros inquietos

Despertos, estes nunca cessam de caminhar, marcam passo, gritam alto sem parar

O teu tempo está a acabar


Pouco resta deste chá, deste dia, desta luz

Todos os homens sabem quando estão prestes a morrer

Será assim tão mau partir? Fugir, roubar o ritmo ao coração, fechar a cortina e zarpar? Mas afinal para onde poderia eu ir? Será como dormir?

Se da última gota do último sonho da última noite fizer veneno, enrolado num fio, ficarei pequeno, tão pequeno que me perca no vazio? Infinito

E então, e então… nada mais haverá para dizer, menos para compreender

Uns irão comentar, já se estava a ver e nem um minuto irão perder para a minha façanha entender, não foi feita para ninguém impressionar, só para entreter


E é isto. Foi isto. Um espectáculo que alguns chamam de viver

É isto viver? Passar pela vida a correr, tudo tocar, nada agarrar, tudo querer? Para nada poder levar, para onde quer que vamos, quando tudo desaparecer…

Afinal, viver é saber morrer


A hora é tardia, a noite fria e a alma, por fim, vazia, como esta chávena onde antes belladona fervia

Restará esperar por Atropos, minha guia, numa noite que jamais verá nascer novo dia…
 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Postal de Hell-o-ween: Receita para final feliz




Ponha de véspera a necessidade de afecto a marinar em sumo de agonia
Tempere com lágrimas de saudade e pedrinhas de incerteza
Peneire bem um quilo de esperança, branqueada e artificial
Derreta numa sertã meia barra de amor-próprio e regue com um fio de ódio
Numa tigela de vidro, frio e fosco, junte um olhar cansado e um litro de suspiros
Noutro recipiente parta 6 desejos incontáveis e bata até fazer espuma acre e macilenta
Junte tudo num tacho engordurado de preguiça, humilhação e insatisfação indolente
Deixe ferver durante anos e anos e anos a fio, sempre no fio da navalha
Agite ocasionalmente para libertar o desespero e a dor insuportável
Tempere com luxúria insatisfeita e polvilhe com autogratificação q.b.
Deixe a assentar até o molho sanguíneo e pungente apodrecer
Acompanhe com salada de pânico e um shot na têmpora

Et voilá, feliz final feliz!

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Recado de Hell-o-ween 2

Formato "post-it no espelho do quarto"

Lâmia,  queridinha....

Passei por cá para garantir que tudo corria de feição com o pequeno e dar uma ajuda se fosse preciso.
Tomei a liberdade de levá-lo para casa do seu tio Hades. Não  esperes acordada.  Já sabes que quando aquele galhofeiro  começa a brincar com as visitas  é uma eternidade. Aproveita, tira os olhos das órbitas e descansa. Precisas de um sono de beleza. Ultimamente andas com um aspecto horrível,  monstruoso.

Já agora... Se o meu marido, por acaso,   passar por aí como de costume,  diz-lhe que traga meia dúzia de ovos, um ramo de salsa e beladonas frescas. O meu stock acabou hoje. Não consigo recusar nada às crianças e os teus filhotes, realmente, adoram frutos silvestres.

Ta-ta

Hera




terça-feira, 29 de outubro de 2013

Desafio: "Recado Hell-o-ween"

Formato "post-it na porta do quarto do filho mais novo"


Meu pequenino,
Desculpa mas tive de sair antes de acordares. 
Se acordares, tens o pequeno-almoço preparado em cima da mesa da cozinha. Se depois de comeres ainda tiveres pulso para isso, tens a tua camisola dos ursinhos engomada dentro do roupeiro. Mas não te esqueças de tomar banho (como o esquentador está avariado, deixei o secador dentro da banheira para aqueceres a água).
Se tiveres tempo, podias começar a amolar e a polir o faqueiro? O papá ontem queixou-se que a faca preferída dele estripa cada vez com mais dificuldade.
Enfim, se quando voltar ainda estiveres aí, corre para o meu abracinho, tenho muitas saudades de ouvir estalar... um beijinho meu em ti.

Da tua mamã do coração,

Lâmia

sábado, 21 de setembro de 2013

Sarabande







A relva sentiu o peso de um pé, tenta reagir com as plantas de ervas esmagadas pelo calcanhar, mas sucumbiu à quietude do pé, que parece que tinha chegado para ficar.
Do outro lado, mais à esquerda de quem segue em frente, uns queixumes semelhantes. Onde estariam os insectos que a roíam quando os grilos se espantavam e os gafanhotos se imobilizavam?

Dava jeito ter agora uma formiga, um colitídeo qualquer ou mesmo uma melga que picasse um dos pés (preferencialmente os dois).

Algumas folhas sufocavam e tentavam sair debaixo daqueles pesos inamovíveis, pés gigantes, humanos certamente.

Sufocavam e silenciosamente ansiavam para que os pés andassem, corressem preferencialmente, será que os humanos não sabiam que um dos maiores prazeres, era correrem descalços pela relva?



(Falando com os botões desapertados) porque os fechos magoam a 
imaginação mais surpreendente.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Pobre Edward O. (versão integral)

... no meio da travessia do deserto, donde pouco ou nada brota por estes dias, revisito um dos contos que mais prazer me deu escrever, agora em versão integral. 3-em-1, não é uma promoção maravilhosa? 

from the heart,
D.Ü.





Pobre Edward O.



(Parte I de III)


Parte I: Edward O.

Edward O. 39 anos.
Vive sozinho num apartamento exíguo alugado na parte mais sombria da cidade. Conhece a senhoria, uma velha senhora que mimetiza a simpática avozinha que nos presenteia com histórias de tamanho infindável acerca de pessoas que ela conhecera e que já há muito são pasto para vermes, algures por entre mármore e ciprestes, haja paciência para a aturar…

Da sua janela vê um muro de alvenaria, antigo e decadente, como a sua alma. Edward O. tem uma vida discreta, da sua habitação para o escritório de contabilidade onde assenta meticulosamente as entradas e saídas de materiais e dinheiros da mais afamada sapataria da cidade. Edward O. regista tudo, meticulosamente, grava a azul metileno o papel amarelecido pelo tempo, velho e gasto, como a sua alma. Bem, quase tudo. Edward O. recusa-se a registar a entrada e saída de acompanhantes que satisfazem o vício do patrão. Não, estas despesas não são declaráveis para fins fiscais, oh não. Além de que a mulher do patrão o matava, sim a ele. Ela acredita que o seu homem é um santo e vê Edward O. como um verme, pequeno e mesquinho, que se alimenta dos detritos rejeitados pelo seu excelso marido.

Edward O. nada tem para contar, a vida escapou-lhe por entre os dedos, secos e ásperos, como a sua alma. Mas Edward O. hoje teve um sonho…



Pobre Edward O. (Parte II de III) 


Parte II: O Anjo Negro

Cena 1: Crepúsculo

A tarde ia avançada e Hélios beijava a linha do horizonte pela última vez, era chegada a hora de Silene se erguer sob os mortais que dentro de algumas horas se iriam recolher nos braços de Morfeu. Mas Hades espreitava, ansioso e faminto… A hora da ilusão descia sobre nós…


Cena 2: (Não-)existência

O caminho é rigorosamente sempre o mesmo: das traseiras para a ruela, da ruela para a avenida, da avenida para o beco. Mão no bolso. Chave à porta. Átrio, escadas, nova porta. Nova chave. Casa.

Despido o sobretudo e pousado o chapéu, encaminha-se para a bacia e lava as mãos e o rosto. Aquece um pouco de água para o chá e passa a manteiga no pouco de pão que ainda lhe resta da manhã. Sentado no cadeirão, lê mais alguns capítulos d’Os Irmãos Karamazov de Dostoievsky: "Com a força que sinto em mim, creio-me capaz de suportar todos os sofrimentos, contanto que me possa dizer a cada instante: "Eu existo". Entre tormentos, crispado pela tortura, mas existo! Exposto ao pelourinho, eu existo apesar de tudo, vejo o sol e, se não o vejo, sei que está lá. E saber isso já é toda a vida."

Pousados os óculos e exalado um profundo suspiro de consternação, Edward O. decide tomar a noite como berço e aninhar-se entre memórias, escurecidas e gastas, como sua alma. E era a sua alma que mais o fazia temer por tudo o que havia sido, mas mais, muito mais, pelo que não havia sido. Em breves instantes viria o abismo, a profundeza do esquecimento, o sono que tolhe o juízo do inquiridor. Dorme pobre Edward, que a noite escura te ilumine…

Edward O. Só consigo mesmo e os seus sonhos. Só entre as muralhas do infinito e perante Deus. Só. Mas por pouco tempo, pois esta noite, Edward O. era visitado por um Anjo Negro errante…


Cena 3: Mensagem


“Não te movas Caminhante. Não ouses saber quem sou nem porque te visito. Deixa fluir a narcolepsia que te enrola o sentir, pois nada há para sentir nas minhas palavras, apenas a mensagem interessa.”

Edward O. era uma erva sacudida pelo vento da tempestade, mantinha-se agarrado a si mesmo, mas ciente de que nada era perante tal força imensa.

“Em três dias a tua vida termina. Despirás tuas vestes e seguirás viagem na escura estrada. Oh pobre Edward, aproveita, aproveita bem estes 3 dias, pois são os teus derradeiros momentos na Terra.”

Edward O. não estava só consigo mesmo e os seus sonhos. Perante ele, abrira-se uma brecha nas muralhas do infinito e Deus era o farol que incendiava a noite com rasgos de âmbar e carmim. Logo a ele, a quem a vida escapara por entre os dedos, secos e ásperos, como a sua alma, fora desvelado o Apocalipse, os dias do fim…

A hora antes da aurora foi tão extensa como as histórias que a sua senhoria lhe contava, sempre que o apanhava a entrar ou a sair de casa. Mas valeu-lhe sentir na baça retina o primeiro brilho do dealbar. E à medida que o fulgor aumentava, renascia algo em Edward O. Algo vibrante e inquieto. Era vida, vida que lhe escapava e agora pulsava forte…


Cena 4: Os dias do fim

Dia 1.

Edward O. regista tudo, meticulosamente, grava a azul metileno o papel amarelecido pelo tempo, velho e gasto, como a rotina que ainda o prende.

Regista tudo, a entrada e saída da menina do dia, que vem alegrar a manhã do patrão. Aponta a despesa no seu livro sob o tema ‘Outros Serviços – solicitação de prostitutas’. Pousa o seu livro e redige a sua carta de demissão. Cerra-a num envelope cinza claro e dirige-se até à secretária do patrão. Pousa o envelope sem dizer uma única palavra ao chefe que, ainda a apertar o cinto, se sobressalta com a sua presença, enquanto tenta disfarçar ao dizer para a jovem que o acompanhava “As botas de veludo estão muito na moda este ano, a senhora vai-se sentir magnífica com elas”. A jovem desfazia um pequeno riso enquanto olhava parva para Edward O. Este sorriu de volta para ela. Curioso, Edward O. estava certo de que haveriam passado anos a fio desde que sorrira pela última vez…

Confiante e altivo, segue porta fora, passa pelo salão da sapataria, cumprimenta os clientes e empregados uma última vez, com uma vénia ligeira e um ‘até sempre meus caros’. Caminha com a aura excelsa de quem se despediu de um verme pequeno e mesquinho. Ao sair esbarra-se com a mulher do Patrão. Pede-lhe perdão. Primeiro pelo encontrão. Depois, pelos anos de ocultação e vergonha a que se submeteu. Atónita, esta deixa cair o seu caniche de colo e, mais violentamente, a si mesma, esparramada na carpete de feltro da sapataria que erguera como altar a seu divino esposo.

Edward O. 39 anos. Desempregado. Vive o seu primeiro dia na cidade, debaixo do Sol. Livre do cheiro a papel amarelecido pelo tempo e do travo a azul metileno. Azul agora, só o do céu que o cobria.




Dia 2.

O tempo voa e com ele levanta as folhas das árvores e a poeira dos anos perdidos. A água que agora te molha não é para beber, são as lágrimas que nunca derramaste, a saliva dos beijos que ficaram presos nos teus lábios, o suor de um dia de Verão passado no campo a apascentar ovelhas, a chuva que te haveria de molhar, enquanto rodopiavas a mulher dos teus sonhos, agarrada a teus braços, a suspirar por ti, enquanto carregava teu fruto em seu ventre.

Hoje vais observar as crianças no jardim, puras e doces como as camomilas que perfumam o ar. Tu és uma delas, estás mesmo ali, de mão dada ao mais pequeno, para o ajudar a subir ao banco de pedra, a gritar que te passem a bola para marcares golo, a ver no carreiro as formigas a carregarem sementes com cinco vezes o seu tamanho, a sujares os calções de lama sem te lembrares do ralhete que irás receber ao chegar a casa…

Irás dormir exausto de tanta excitação e brincadeira. E este será o dia mais feliz da tua vida.



Dia 3.

Edward O. acorda pouco após o nascer do Sol, mas hoje, não tem pressa que o dia comece, pois quanto mais depressa o inicie, mas depressa se encaminha para o seu fim…

Quando finalmente se resigna e se apronta para abandonar o leito, sente no coração uma pontada de dor forte, como se fosse o gume de uma faca a penetrar lento em seu peito. É a ansiedade que se apodera de ti, oh pobre Edward O.

Vestiu o seu melhor fato, a mais cara gravata italiana de seda e o par de sapatos de couro de búfalo que estava a guardar para o seu próprio funeral. Hoje parecia-lhe ser o dia indicado para os usar. Colocou o seu chapéu e pegou no sobretudo. Deixou as chaves em cima do aparador da entrada. Saiu e fechou a porta, sem olhar para trás.

Ao passar pelo átrio encontrou a senhoria, mas antes que esta pudesse abrir a boca para falar, Edward O. espetou a sua mão aberta em frente dela e disse com calma e suavidade: “Minha cara senhora, deixo-lhe o meu profundo agradecimento pelos anos à sua guarda, mas hoje saio desta porta pela última vez, para não mais voltar. Por favor, trate de que venha alguém mais sorridente e falador para ocupar o lugar triste e oco que ora abandono. Bem-haja, cara senhora, bem-haja.” E saiu pela porta da rua, passando pelo beco em direcção à avenida.

Edward O. passou o dia a caminhar pela cidade, até sair para além dela, caminhou até sentir a lama a cobrir os seus sapatos de pele de Búfalo, foi andando e largou a gravata de seda sob as roseiras bravas e ofereceu o sobretudo a uma velha árvore decadente que parecia gritar por um final aconchego.

Agora estava perante o grande rio, largo e grandioso. Aproximou-se das margens saibrosas e fez planar sobre as águas turvas um par de seixos mais aplastados, tendo o mais ligeiro saltitado quase até à outra margem, do outro lado, para além do seu conhecimento.

O dia chegava ao fim e no peito de Edward O. restava agora a sensação de plenitude e autoconhecimento. Ele soubera finalmente quem era, o que poderia ter sido e o que decidira ser. No que se tornara. Edward O. via-se a si mesmo reflectido nas águas paradas do rio e nada mais lhe trazia angústia ou arrependimento. Aceitara o seu destino.

O Sol cumpria mais uma jornada e puxava agora atrás de si o manto de trevas estreladas que para alguns seria apenas mais uma noite. Em 5 segundos estava terminado o terceiro dia que o Anjo anunciara.

5… 4…
Edward O. suspira de alívio e sorri. Está pronto.

3… 2…
Nada teme. Abraça a morte com a entrega de quem reconhece a própria Mãe.

A última luz que brilha no seu olhar é profunda e infinita. Como a sua alma.


Pobre Edward O. (Parte III de III)
Parte III: A Cidade Esfomeada

Cena 1. Onde estás Edward O.?

Dia após dia após dia. Edward O. acordava cansado de vazio, podia confirmá-lo sempre que olhava ao espelho. Nada olhava de volta, a não ser um profundo e negro buraco, onde um dia esteve sua alma. Não havia surpresas, excitação ou alegria. Edward O. era um escravo da rotina, retido dentro de si mesmo, esquecido do ser que um dia nasceu de sua mãe, esquecido pelo mundo, perdido dentro de pesados maços de livros e processos. 

Onde estás tu, Edward, onde te escondeste? Ainda te posso ver ai, por de trás esse baço olhar, escondido pelos milhares de anos que te pesam nesses ombros descaídos, com as palavras presas nos lábios hirtos de pesar, agarrado a nada, esse nada que te enche o peito e te sufoca, dia após dia após dia.


Cena 2. A mancha de tinta

“Rapaz, tens aqui as facturas e os balancetes do primeiro trimestre. Confirma tudo, eu vou ali receber uma sobrinha que veio de fora, não quero ser interrompido, compreendes?”

Lá dentro, no salão, uma mãe trás o seu menino, talvez com 6 ou 7 anos, para comprar uns sapatos de cerimónia. Ela é austera como o seu negro traje de viúva, rígida como uma raiz de cerejeira, de olhar furtivo e aterrador. 
Segue com impaciência os movimentos do petiz, o seu braço tenso como uma mola, pronto a disparar um tabefe à primeira desculpa. Eis que surge o primeiro, mal o infeliz gaiato ousa coçar o nariz… Este não chora, grita ou sequer soluça. Apenas se encolhe e olha para o chão. Olha para os seus pés e suspira. 

Edward O. vê tudo, regista cada momento daquele triste quadro, toma nota, em sua mente, grava-o a ferro e compara. Compara com a memória da sua infância. Com a memória de sua mãe, austera como o seu negro traje de viúva, rígida como uma raiz de cerejeira e tão afável como um violento incêndio de Agosto. Será que o menino pelo menos conheceu o pai? Ou terá este também morrido na guerra, lá longe, para além do mar, demasiado longe para cantar baixinho e adormecer o bebé, aninhado em seu berço, a criar sonhos e memória frágeis e assustadas. 
Está frio, tanto frio… Será que o menino sabe que a sua mãe também tem frio, sozinha no seu espartano leito, sem o calor de seu homem, levado para longe em nome da pátria, muito para além da desolação e dor que esmaga este coração de mãe e o deixa seco e atrofiado, como sua alma. 

Não, o menino ainda não sabe o que lhe falta, ainda é feliz, pois acaba de esboçar um sorriso para sua mãe que por um fugaz momento, quase sorriu de volta. Quase. Edward O. franze a testa e tenta recordar-se da última vez que sorrira, mas é em vão…

Volta à sua secretária, ainda meio absorto pelo constrangedor episódio. A distracção leva-o a derrubar um tinteiro e a espalhar uma pequena mancha de azul metileno sobre o papel amarelecido. Num gesto rápido e quase atlético, consegue apanhar o tinteiro antes que haja mais estrago. Senta-se e retira os óculos para esfregar os olhos. Ainda meio atarantado, olha para a mancha, que alastra devagar. Retrai-se na cadeira e tenta focar a visão, abrindo com força os olhos e piscando vigorosamente. Quase diria que a mancha tenta mover-se na sua direcção, se aproxima para lhe dizer algo, para lhe sussurrar um segredo incontável. Parece até mudar de cor, tornando-se espessa e negra, com um formato cada vez mais improvável, parece quase… um anjo!

A tarde termina abrupta e veloz, o Sol aproxima-se do horizonte e é chegada a hora de ir para casa. Não há qualquer ilusão, apenas o peso de mais um dia que se aproxima do seu fim…


Cena 3. O Rio

A violência da cidade encandeia-nos, com gritos de âmbar e carmim, rasga por entre as muralhas do exílio que nos auto-impomos, esconde-se ao anoitecer e desperta os lobos do seu torpor. A noite cai e a cidade está esfomeada…

Edward O. lembra-se vagamente de um tempo em que as crianças brincavam no jardim, os mais velhos davam a mão aos mais pequenos para os ajudar a subir ao banco de pedra, os rapazes gritavam enquanto se digladiavam por uma bola de trapos e as meninas brincavam às mamãs com as suas bonecas de faces de porcelana. 
Parecia impossível que ali houvesse medo, raiva, luxúria ou simplesmente, falta de sentimentos de compaixão e solidariedade de uns para com os outros. Hoje é cada um por si, esfomeados, encadeados pelo brilho ruidoso do farol que os orienta em direcção ao lugar que lhes é reservado, assumindo a posição de eleitos, escravos e senhores, todos se empurram e esmagam quem se lhes atravessar.

O caminho é rigorosamente sempre o mesmo: das traseiras para a ruela, da ruela para a avenida, da avenida para o beco. Mão no bolso. Chave à porta. Átrio, escadas, nova porta. Nova chave. Casa. 
Mas hoje vai ser diferente…

Começou a chover ainda a tarde ia a meio e, meu Deus, como chovia! A ampla avenida parecia agora um largo e negro rio, impossível de atravessar, onde apenas alguns carros mais afoitos tentavam em desespero cruzar, quais seixos aplastados a rodopiar saltitantes, ficavam pelo caminho, não conseguindo chegar à outra margem. 

Edward O. encolhia-se, quase desaparecendo dentro de seu sobretudo e escondido pelo chapéu, desaparecia de vista em direcção a um atalho, uma ruela estreita e sinuosa, ladeada por decrépitas roseiras e velhos choupos. Mas, há medida que subia a íngreme e soturna ruela, Edward O. sentiu que não estava só, alguém o seguia. 
Subitamente, sente no coração uma pontada de dor forte, como se fosse o gume de uma faca a penetrar lento em seu peito. É a ansiedade que se apodera de ti, oh pobre Edward O.


Cena 4. Um segundo

- Senhor, por favor, tem lume? -

Mas quem é que se lembraria de, a meio de um voraz temporal, perseguir Edward O. para lhe pedir lume? Olhando à sua volta, perscrutava a escuridão mas nada via. Sentia-se como uma erva sacudida pelo vento da tempestade, mantinha-se agarrado a si mesmo, mas ciente de que nada era perante tal força imensa. A força do destino.

- Por favor, tem lume? Pode ajudar-me?-

Edward O. virava-se lentamente para o homem atrás de si, vendo-o primeiro com o canto dos olhos, conseguia descortinar apara além da sua retina baça um enorme vulto negro que lhe apontava uma arma.

- Devagar agora. Dá-me a tua carteira e o que tiveres nos bolsos do sobretudo. Mexe-te homem, sem surpresas nem sobressaltos. Passa-me já tudo o que tens! –

Edward O. 39 anos. Sozinho no mundo. Contemplava o Anjo Negro que o viera libertar. Sentia algo vibrante e inquietante dentro de si. Era vida, vida que lhe escapava e agora pulsava forte! 

- Mas estás parvo ou quê? Mexe-te idiota, passa para cá essa carteira, tu não me desafies! Queres levar um tabefe? – 

Num acesso de clarividência e autoconhecimento, Edward O. tomara uma decisão. Olhava fixamente o seu formidável oponente e, com o olhar iluminado de um inesperado fulgor, sorri e empurra-o contra a parede!

Num segundo, Edward estaria livre. Assustado e atónito, o pobre assaltante dispara inadvertidamente a arma ao embater contra a parede, mas à medida que o dedo pressiona o gatinho e a bala inicia a sua viagem rumo ao coração acelerado e em êxtase de Edward O., este sonha com tudo o que sempre desejara, com o homem que gostaria de ter sido, com a glória de ser honesto consigo mesmo e a certeza de que era o dono de seu próprio destino...

Edward O. 39 anos. Jaz morto no chão de uma ruela. Qual cordeiro sacrificado aos lobos, a cidade acaba de o devorar. À medida que o sangue escorre, arrastado pela chuva em direcção ao grande rio que alaga a grandiosa avenida, a sua alma desprende-se de um corpo gasto e vazio. 

Finalmente, é livre…




 



sexta-feira, 5 de abril de 2013

Dedos de perfume



Há em ti  um aroma a sorrisos pueris sempre que o teu olhar me acaricia as mãos pousadas nas memórias que nos levam para as manhãs em que te acordo com um respirar mais acelerado porque há em ti um sabor a pétalas que me inebria o sexo húmido pelo teu (en)canto e me grava na pele relevos primaveris, como os rios que saltam as margens em tempestades de nós, como os cavalos selvagens em desabridas corridas nas planícies que formam uma ponte entre as nossas almas que t(r)ocamos cada vez que nos perdemos e achamos, um no outro, tu em sintonia com os sussurros murmurados ao meu ouvido esquerdo quando o meu corpo se ergue sempre que o teu se esvai em mim.
E agora______________Apetece-me que me sorrias nesse encanto com que me esqueces e te esqueces de nós nos dias em que os telefonemas escasseiam e os olhares se dispersam em luzes fugazes de raios lunares, porque o sOl é nuvem que não passa. apenas eu num passo-a-passo com o tempo que não me deixa deixar-te. mesmo quando as tuas mãos são as minhas mãos, tão pequenas, tão tuas, a fechares-me o vestido de pele nua, a apertares-me o colar de  pérolas e o pescoço no sexo sem tabus, aroma a petúnias cultivadas no teu jardim de Verão, onde ao poucos as cores são códigos para o amor que demora. são dedos, ágeis, longos e firmes que me emprestas quando estou longe, dedos de espanto, escancarados de prazer, quando se passeiam em mim, apertando-me os mamilos, despertando sensações de toques de guitarra dedilhada pelos teus dedos entrelaçados nos meus, que escrevem sms quando o decalque do teu  corpo descansa em mim. à distância de quantos dedos quiseres. dedo que me apontas pela verdade que lembro. dedo que estico quando te quero indicar o caminho de regresso, sabendo que partida pode ser também meta, nos orgasmos que não teremos, imaginando que NÓS de dedos cegos de paixão, me massajam as costas tensas pela ausência de notícias. e é quando os teus dedos desenham beijos nos meus lábios que escondem os perfumes que me deixaste nas coxas, quando os teus dedos e sempre os teus dedos excitam líquidos secretos que alisam a minha pele que sabes tocar, que (te) sei quantos dedos fomos.

domingo, 3 de março de 2013

2 tanka imperfeitos para 1 poeta perfeito



(Para a Inês, que gosta que lhe ofereçam frases)





Gumes e arestas
Cortam-me  as mãos
Fios de sangue
Enfio a agulha
Coso o meu coração

Espinhos e vértices
Furam-me os dedos
Pingos de sangue
Encho o tinteiro
Escrevo o meu coração


 Fotografia: Karl Blossfeldt

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...