Parte I de IV
Sem que ninguém te veja, sem qualquer som ou movimento suspeito,
ergues-te sorrateiro, matreiro, invisível, indivisível. Passas pelo foco do
projector sem que a sombra te denuncie. Rastejas junto à parede, sentes no teu
ventre a textura áspera da tinta envelhecida. No ar, paira um aroma a bafio e
madeira apodrecida e junto à cama de ferro está um monte de roupa velha que
outrora fora de uma criança, talvez um menino, 6, 7 anos, ele esteve ali, mas
não estava mais. Passas pelos farrapos e esgueiras-te rapidamente para um canto
escuro, enrolas-te numa bola de sebo e cotão e murmuras baixinho algo que só tu
saberás o que é. Murmuras, cantas para ti e adormeces, embalado num pranto de
estalidos e assobios. O dia não tarda a nascer e a luz, toda aquela luz, irá
invadir a casa através de frestas nos taipais e buracos no telhado.
Noutra noite, outra de centenas de outras noites, madrugadas inteiras de
solidão que te ampara, aperto que te afaga, afogas-te na miserável sensação de
incumprido destino, questionas-te, ponderas, perdes o fio à meada e circulas
desorientado sob os tacos velhos e desencontrados do soalho. Procuras por ele,
encontras-te a ti, perdes-te entre o bolor e as teias abandonadas e reencontras-te
no reflexo distorcido de uma colher de prata, atirada ou esquecida, nota subtil
de outras eras, quando eras outro além do que agora és, simplesmente um detalhe
que alguém se esqueceu de corrigir aquando da revisão da grande história de
Deus. Deus? Deus não tem vindo aqui muito, não senhor, não o tens visto
ultimamente, talvez esteja fora em negócios ou se mudou para uma casa mais
alegre ou, pelo menos, menos morta.
Não te assustes pequeno ser, não tremas, é apenas a brisa gelada do
inverno que te assola, para todo o sempre desolado, deslocado e preso a um fio,
fino, curto e fantasmagórico, que prende o teu ser a esta casa, à tua casa, que
te encontrou um dia e te devorou sôfrega e autista. Ninguém te ouve, não vale a
pena o silêncio. Ninguém te sente, não tens porque te anunciar. Para quê? A
vida é mesmo assim, uma sequência anémica de dias que são noites e noites que
são madrugadas eternas, presas pelo mesmo fio, que prende o sol e não deixa que
ele te ilumine, que prende a pele dura e seca ao teu corpo mole, que te prende
o olhar ao pequeno monte de pequenas roupas da pequena criança, 6, 7 anos, que
vivia numa casa, noutra casa, noutro mundo, noutra vida porventura vivida e
agora, simplesmente, esquecida.
Um fio, fino, quase invisível, que te prende quando rastejas solitário
entre a noite dos dias escuros, onde nem as frestas dos taipais denunciam
sombras, nem assombros te iludem por entre o vogar calmo das horas que se
esgueiram entre os buracos do telhado e morrem asfixiadas pelos esporos do
bolor. Um fio que te serve de guia, para que não te percas no afã quotidiano da
busca do que perdeste para sempre e insistes em procurar, procurar, procurar…
Procura por ti, encontra-me a mim, aqui deitado, nesta cama de ferro, a
contemplar os dias que passam por entre as frestas dos taipais e me procuram,
procuram e procuram, até desistirem, como um dia também tu desistirás de ti e
de te procurar em mim...
Não te assustes, pequeno insecto, se um dia caminhares até ao limiar
desta casa e te deparares com o abismo.
Não te assustes, minúsculo ser, ao
contemplar a profundidade e negrume do abismo.
Assusta-te sim, se sentires que o
abismo te contempla…
Como sempre um começo inquietante. Como sempre a pergunta "para onde nos levas?". Como sempre, a espera impaciente pela continuação....
ResponderEliminarJá tinha saudades de te ler. Mais uma saga a seguir de perto. Aguardo ansiosamente a continuação; os insectos têm tanto potencial literário. Parabéns pela belissima primeira parte, Bicho de Conto(a).
ResponderEliminarComeça-se a ler e a vontade é de devorar as palavras, para chegar ao fim.
ResponderEliminarUm queixo caído, muito merecido!
É de família o jeito para a escrita, já percebi! :)