parte II de IV
Sempre me fascinaram, pareciam jóias mágicas aladas, pequenos puzzles de
refulgente rendilhado e organza, delicados seres que emergiam das águas escuras
e pungentes dos pântanos… lembro-me de ser pequeno, de ser maior do que elas,
mas de elas serem igualmente pequenas e, ao longe, tanto maiores quanto eu me
sentia, por as ver a voas, cortar rectas entre tabuas e caniçais, pairar, como
se o ar para elas fosse a janela do universo onde assomavam curiosas, ansiosas
pelo espectáculo único que todos os dias acontece quando Apolo passa ligeiro
pelos campos de Ceres.
Mas é aqui que está o truque, a ilusão, o engano. A beleza élfica, o
enigma orgânico do metal vivo, do vitral pulsante, da jóia alada, como tudo o
que é belo, orgânico e pulsante, tem uma génese, um momento da criação, o
volteio suave das mãos do mago quando maravilha a audiência e a todos
surpreende: ei-la! Contemplem a beleza maior, o deleite do criador, o segredo
da fragilidade, da sensual feminilidade e de toda a virtude deste mundo. Um
truque, nada mais. Uma ilusão, sem a qual não queremos viver. O engano que não
queremos aceitar como por demais evidente. Assim é, sempre foi, eternamente
será. A ascese impossível. O perdão hedónico. O limiar que nunca haveria de ser
revelado. Falo pois, desse momento de êxtase e assombro, quando descoberta é a
verdade, a origem das coisas, a metamorfose.
Se acreditar, morro, se duvidar, matam-me. Matem-me, não me abandonem
nestes campos repletos de tais efémeras criaturas, porque delas eu descobri o
segredo. Nada do que é belo pode nascer de nada belo. Nada há de belo na voraz,
críptica, insidiosa larva de uma libélula, escondida entre folhas e sedimentos,
golpeia a presa incauta e devora-a com enorme violência e satisfação. É assim
que cresce, toma forma e ilude o ávido de desejo, inunda-o de desejos,
fazendo-se desejar por tudo o que agora é no reflexo lagunar da alma do seu
amante.
Se na beleza que contemplas não vires o signo de toda a fealdade deste
mundo, serás levado pela corrente fria e serpentina deste rio que a lado nenhum
nos leva. Se acreditas nas dádivas de sensualidade e afeição, acredita também
no torpor mórbido que lhes deu origem. Se considerares, um só momento, que és o
escolhido para desvendar o grande enigma da perpetuidade do ser amado, prepara
a tua despedida, porque no amor, bem como em todas as coisas belas e objectos
de desejo, a natureza do insecto conhece apenas uma regra:
Ergue-te, devora e
levanta voo...
Não creio que nos conheçamos ainda.
ResponderEliminarVim da Manuela porque gostei do seu comentário lá e ao chegar aqui, percebo que o seu Blog tem textos riquíssimos.
Voltarei para ler mais, com mais tempo.
Sou a Fernanda mas todos me chamam Ná.
Nuno...
ResponderEliminar"Nada do que é belo pode nascer de nada belo. Nada há de belo na voraz, críptica, insidiosa larva de uma libélula, escondida entre folhas e sedimentos, golpeia a presa incauta e devora-a com enorme violência e satisfação."
A metamorfose...Parabéns, excelente!
"Se na beleza que contemplas não vires o signo de toda a fealdade deste mundo, serás levado pela corrente fria e serpentina deste rio que a lado nenhum nos leva. Se acreditas nas dádivas de sensualidade e afeição, acredita também no torpor mórbido que lhes deu origem." Isto sim, é uma lição de filosofia, e aqui se concentra, curiosamente, a pedra de toque de grande parte dos teus trabalhos: os dois lados da Criação estão intimamente ligados e não pode haver luz sem sombra, belo sem medonho, amor sem ódio. E como sempre prendes ambos numa fina e intrincada teia, tornando-os inseparáveis.
ResponderEliminarAdorei este teu belíssimo, delicado e cruel texto, como o são, no fundo, a Natureza e a própria vida. Uma delicia de ler, cheia de profundidade. "Ergue-te, devora e levanta voo!" ;)