Ian era um jovem que se interessava
por desvendar os mistérios da Natureza, do Universo e, sobretudo, da própria
humanidade. Ian perdia-se no querer contínuo de se encontrar a si mesmo e de
descobrir o significado da sua ignóbil existência. Inconformado com a utilidade
do conhecimento empírico e com conjecturas edificadas por outro alguém que não
ele, Ian era o cantor, poeta e filósofo que via o mundo através de uma
conjectura metafísica própria e vivia segundo uma doutrina sob a qual mais
ninguém vivia. O seu génio voltava as suas atenções para os ensinamentos do
ocultismo e suportava consigo a ânsia desmedida de se querer descobrir a cada
passo que dava. (Muito) Precocemente apaixonado por letras e pela poesia do
britânico William Wordsworth, Curtis revelava um dom aprimorado para a escrita.
As suas músicas eram constituídas por letras banhadas a sentimento puro que,
por sua vez seria, asfixiado na beleza com que o inglês escrevia. As suas composições
líricas retratavam, na maioria, emoções e sentimentos vividas/vividos no
quotidiano. Eram estas emoções e estes sentimentos que davam asas e alento à
genialidade do cantor, eram delas que o seu génio se alimentava, eram delas que
Ian vivia. Curtis era, portanto, um sensacionista da razão, ou seja,
compreendia o mundo através dum processo racional dos seus sentimentos. Dotado
de uma sensibilidade do outro mundo, Ian sentia-se, por vezes, só e
incompreendido. Refugiando-se no «seu» próprio mundo, esmiuçava
desenfreadamente aquilo que era daquilo que não era enquanto ia, também,
esboçando aquilo que na realidade pretendia ser. Ian Curtis foi edificando, ao
longo do tempo, uma imagem modelo de si. Essa imagem seria uma espécie de visão
de uma ataraxia. A genialidade do artista não se deve limitar e Ian, mais do
que ninguém, sabia disso… Ian elevou o punk a um novo patamar, levando-o a
deambular por novos rumos. Criou-se uma fusão crua entre o desencanto
encantador polido a sépia e a celebração da rebeldia característica da música
punk. Criaram-se músicas do outro mundo asfixiadas por uma tristeza
devastadora. A música dos Joy Division assemelha-se a um valente soco no estômago
de tão penetrante e «agressiva» que consegue ser.
A mestria de Ian era constantemente
afectada por sobressaltos relacionados com a sua saúde. Esta figura icónica
padecia de epilepsia vendo-se, por isso, constantemente fustigada por pequenos
ataques epilépticos. Eram pequenas fracções de tempo que desencadeavam em Ian dúvidas
quanto ao significado da sua verdadeira existência. Este grave problema de
saúde era uma coisa que amedrontava terrificamente o cantor. Ian tinha pavor
que a sua vida pudesse terminar em segundos às custas de um simples e débil
problema de saúde. Aquando de um ataque epiléptico, Ian sentia que perdia o
controle sobre as coisas, sentia-se numa fronteira entre a vida e a morte e,
posteriormente, naqueles escassos segundos em que se estendia ao comprido no
asfalto, só e com o seu corpo a tremer sem querer parar, questionava-se se
valeria a pena viver, questionava-se acerca da existência de alguma coisa que
jazia para além da vida, intrigava-se sobre a existência, ou não, de um prémio
por ter vivido num lugar onde ninguém o compreendia, por ter vivido num lugar
tão inóspito… Ian sentia-se um doente e, por diversas ocasiões, ansiou por
preparar o antídoto mais eficaz contra a dor, a morte.
Em palco, Ian, era uma marioneta
demente, era um homem que fervia de sentimento naqueles escassos minutos em que
pisava o palco. Se existiu alguém que celebrou a música e a arte com o
sentimento devido, Ian foi, certamente, esse alguém. Ian ardia enquanto
cantava, dançava, em estilo único, até à exaustão e desmedia-se no que
entregava de si à música. «Escrevia» incessantemente uma ode à música enquanto
vivia, eram paletes de exaltação à arte. A música era como uma doença para
Curtis.
A maior doença que Ian padecia era
mesmo, a meu ver, a doença do amor. Dotado por uma sensibilidade extrema, Ian amava
com toda a sua alma, com toda a essência da sua existência, com toda o
significado do seu ser, contemplando, deste modo, um novo significado de amor.
O amor é o dialecto do coração, e esse dialecto não se fala, entende-se. A
linguagem do coração não se fala nem se ouve, apenas requer sensibilidade para
se entender. Ian era o poeta de maior grau de uma potência chamada amor.
Com toda a sua mestria para «falar»
com corações, Ian cometeu o maior «erro» da sua vida, deixando-se apaixonar,
simultaneamente, por duas mulheres. Incapaz de optar por oferecer todo o seu
amor exclusivamente a uma mulher, foi alimentando uma paixão com uma jornalista
belga enquanto estava casado (desde muito cedo) com a sua amada Debbie. A sua
vida ia ganhando contornos geométricos, uma recta que teimava em ser triângulo,
uma equação impossível.
Esquivando-se da verdade, Ian manteve
coberto, com um véu, o triângulo amoroso no qual estava metido. O véu soltou-se
e a verdade foi descodificada por Debbie que o encurralou entre a espada e a
parede, ou seja, entre a escolha dos amores da sua vida. E, repentinamente,
Ian, que julgava ver as coisas de uma maneira clara e concisa, deparou-se com
um cenário em que as coisas se iam despedaçando, uma a uma, milímetro a
milímetro, tudo em frente a si, tudo em frente aos seus olhos. A sua vida ia-se
desmoronando, assim, num ápice. Batalhando incessantemente entre a sua verdade
e a verdade destorcida, vista pelos olhos dos outros, que não tinham a sua
sensibilidade e não sabia distinguir uma da outra, Ian acabou por ceder.
Consciente do que o que é eterno, é
recto, e de que a morte é o apagar de uma lâmpada, mas não o apagar do Sol, Ian
terminava, assim, com uma vida que mereceu ser vivida. Evocando Platão, uma
vida questionada não merece ser vivida e Ian despedaçou-se em questões que nos
invadem, ainda hoje, uma a uma, a nossa cabeça.
Uma corda estendida verticalmente
acabou por colocar um fim à vida daquele que é considerado um dos maiores
génios britânicos de que há memória. Ian suicidou-se aos 23 anos, era um jovem,
um jovem adulto. Ian acabou por morrer asfixiado nas imagens que o percorriam
na mente, imagens, essas, fruto da sua própria criação. O refúgio evocado pelo
seu raciocínio acabou por ditar sentença àquele cantor, poeta e filósofo que se
esmiuçava desmedidamente na crença de descobrir a essência do seu verdadeiro
«eu». Ian isolou-se do mundo exterior e isso acabou-se por revelar uma irreversibilidade.
A imagem de si que ia esboçando, sem parar, no seu refúgio, diferia totalmente
daquele que era na vida real e Ian entediava-se excessivamente com isso. Inconformado,
estagnou-se.
Ian Curtis morreu, essencialmente,
asfixiado pela dor de saber amar em demasia. E o seu legado asfixia-nos, ainda
hoje, de tão rico que é.
Assim como o rio que corre e o homem nasce
e morre, o génio fica para a eternidade.
Continuo a achar particularmente interessante que percorras literariamente o que está dentro de ti que te faz admirar alguém. E que partilhes connosco a forma como essas pessoas dialogam contigo.
ResponderEliminarBrilhante! Partilho essa admiração por IC e já tive oportunidade de lhe dedicar algo que publiquei. Não estou certo que IC amasse em demasia, provavelmente, ele, tal como FP, p.e., queria desesperadamente conhecer intimamente o amor e entregar-se a cada momento como se fosse o último/único. Recorrendo às suas próprias palavras, como eu gostaria que estivesses aqui comigo, agora. Parte em silêncio, não partas, em silêncio. Não partiste... mas optaste por um rumo diferente... Oxalá estivesses aqui connosco, agora. Até sempre!
ResponderEliminarSandra: Fica aqui, desde já, o meu apreço para as suas palavras.
ResponderEliminarAO: Curiosamente também tenho patenteado na figura de IC pequenos traços de Fernando Pessoa. Em parte, vejo um IC com uma filosofia similar à de Alberto Caeiro, heterónimo de FP. Quando falo das «sensações» como fonte de alimento para IC, pensei mesmo em divagar em torno disso. Partilho inteiramente dessa opinião [principalmente quando remata com as retóricas de Pessoas pelas suas próprias palavras] e agradeço, profundamente, o elogio quanto ao texto.