sábado, 26 de maio de 2012

Esquisso de Caeiro


Quem me dera ser um pequeno Caeiro
E nada saber.
Tudo ver e nada crer.

(Fosse eu a surdez que pairasse no seio da imensidão deste barulheiro)

Mas calada a voz, berra a mão
E a mente surda tropeça e cai no chão.
Pequenos pedaços de mim dançam pelo asfalto
Ao som de uma música silenciada por um soluçar cabisbaixo.

Quando tudo se tenta complanar, tudo se esquiva e nada se encontra.
Nada vejo, fustiga-me o paroxismo sentimental que me confere uma paisagem cenosa.
É hora de tudo crer.
(Houvesse outro remédio)

Que se foda o Kant, que se foda o Descartes, que se foda o Sócrates,
Porque nada inibe a vontade, porque nada é intencional,
Porque o relógio quer rodar no sentido anti-horário,
Porque tudo é latebroso e nada é certo,
Porque tudo quanto que me incrassa o coração e me combure a carne
É concolor e me compele a necessidade de o menear de mim.
Porque eu não sou Caeiro e penso.
Porque eu sou dois: Alma e Coração.
Um deles se acidentará.
Que seja o coração porque a alma é eterna e descinge-se a toda a parte.
Que seja a alma porque só existe um coração e se se desdoura tudo fica pobre e incompto.

(Puta que pariu estas retóricas das três da manhã feitas a ouvir duas gotas de suor a cair pelo rosto da marioneta de Ian Curtis)

Que se foda a alma e que se foda o coração,
Porque os céus são grandes e aqui tudo é pequeno,
Porque
In heaven
Everything is fine
You got your good thing
And I’ve got mine,
Porque nos céus tudo é incorpóreo.

Fosse o céu a Terra, Que a Terra se nidificava em mim.
Tudo em mim é espuma em abundância e se dissipa com o vento.
Porque o presente é uma rajada de vento
Futura de um pretérito perfeito,
Cujo alento se resume ao intento de destruir o que já foi feito.

Mas chega de utopias,
Porque não adianta querer luarejar a vida
De quem é lucífugo.

Se nem o cego aprimorou o ouvido e
Se o estuque caiu e ninguém varreu o chão,
Resta esperar que o vento sopre os pós, levante poeira,
Cegue o surdo.
Porque eu penso e sinto,
Não sou Caeiro, sou alma e coração,
E o tempo não existe.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

All is One




sobe o tom do meu grito ávido
 
das tuas formas que me completam o olhar
 
nesta noite em que me perco de encontro ao teu peito
 
onde me fazes barco em naufrágio de cinza dos teus cigarros apagados
 
como se as paredes de papel com que forras o nosso romance 

fossem vagas de lume possuídas por sonetos balbuciantes

os verbos que soletras

nos meus seios que te enchem as mãos

vazias das sombras

sempre que me afagas os lábios pintados de sémen

com que te beijo

o corpo cantante

tocante

alto e másculo

tantas vezes errante
 
no meu

que é memória

em decalque de orgasmos simultâneos.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

AMOR VERDADEIRO

Um mês antes de te ter
E de repente já nada é suficiente, interessante ou chamativo. Tudo tão pouco, comparado contigo e o teu sorriso. Queria estar perto de ti. Abraçar-te, cheirar o teu corpo, olhar o teu olhar vítreo, beijar-te. E já nada interessa. Só tu. Será amor? Penso em nós quando acordo, acompanhas-me todo o dia, contenho-me para não te chamar. Não me custa. É doce e manso e calmo, sei que vou fazer a viagem para te ver, talvez amanhã, ou noutro dia qualquer em breve. Será que é isto a paixão a despontar novamente? Quero que sim. Que sintas o mesmo! Preciso de to dizer, mas não posso ainda. Nem nos conhecemos. Tenho de dosear a expectativa e a emoção, adiar o inevitável, ir dando aos poucos, sem pressas de transbordar. Mas ai! Esta barragem está cheia, não posso dar-te toda a água, não te posso afogar nem ao nosso amor menino, e ainda recém-nascido, verde e vermelho…podia telefonar-te, para ouvires a minha voz, mas não sei que te dizer. Que te queria abraçar e beijar? Só isto? Não. Há tanto que te tenho em mente…ainda é cedo. Será? O teu passado é um deserto sanguíneo que me assusta, cheio de areias movediças. E eu tenho tanto líquido. Penso que preciso de ti para me tornar mais sólida. Precisarás de mim para encharcar o teu seco sofrimento com alguma centelha de vida? Tanto para partilhar. Contigo? Sim. Queria.

Uma semana depois de te ter visto
Tenho saudades dos teus olhos de camaleão, de que ainda não sei a cor…será que um dia saberemos os dois o que é o amor? Os dois?! Juntos? Na minha pele imperfeita e nas tuas rugas de expressão seremos os mais belos um para o outro? Será tudo tão bom como no início, e muito melhor do que ao princípio? Naturalmente não vieste como sonhei; és tão diferente. Mas tão próximo de tudo o que poderias ter sido e sempre quis, e nunca conheci, e nunca vivi, e hoje és tu que me inundas o pensamento, e um dia vai ser tão difícil, impossível conter o que sinto, e receio que novamente o diga antes de tempo, que novamente o diga só por querer senti-lo. E que ainda não sejas tu…o meu barco, meu homem. E tu tens também de te conter, não te podes agarrar demais a mim, sou perigosa, posso apaixonar-me com tal intensidade que te inundo, e depois largar-te de repente quando a paixão se diluir e já nada em nós ser fluido... Não te quero magoar, nem te deixar rejeitado, só e desamparado novamente (não podes voltar a sentir isso!), fazer nada que te arraste para um turbilhão de voltares atrás e recaíres no que te faz mal. Não podes voltar a comer dessa carne. Sei que comias frequentemente as vísceras de outras mulheres e até de alguns homens. Mas olho para ti, tão sossegado e sei que não me vais devorar o coração. Somos filhos da mesma pátria, irmãos de guerra. E tu és assim tão sensível, e eu não te quero magoar. Ainda não sei nada do nosso amor. Nada que já não saibamos não ser possível saber ainda.

Uma noite depois de te ter trazido para casa
Assim que vi a tua foto naquele jornal velho em cima da mesa da pastelaria, sabia que serias meu. Os teus dentes de marfim, a tua pele escamosa, o teu ar silencioso e profundo ficam tão bem com a cor arroxeada do meu lençol. Agora fica imóvel e em paz ai deitadinho, eu volto já, vou só ali trabalhar um pouco (tenho de pagar as tuas prestações; não me saíste nada barato. Quem te possuíu anteriormente não te tratou lá muito bem, maldito caçador de troféus africanos, vieste cheio de pó e teias de aranha e com as unhas carcomidas, mas no preço que pediu por ti não foi nada manso!). Está uma noite boa, sem vento, os habituais esperam-me e pode ser que hoje o negócio corra bem. Como ontem não fui e fiquei contigo, hoje devo chegar mais tarde, mas sabes que lá pela manhã voltarei para o nosso cantinho e serei toda tua novamente. Não me posso esquecer de te trazer um creme para a pele, está tão seca, tenho de te cuidar bem amor. Ai como vai ser bom dormir abraçada a ti novamente, apaixonarmo-nos de verdade e sermos felizes para sempre! Temos a vida toda. Agora sei que nada nem ninguém poderá beliscar o que nós temos, que é tão especial.
Só pode ser amor verdadeiro.

- Pintou os lábios de vermelho berrante, ajeitou a saia justa moldada aos quadris ainda rijos e dourada como o sol do seu país longínquo, calçou as botas pretas de cano alto, viu-se ao espelho rapidamente, colocou a peruca loura apreciando o contraste com a sua pele de chocolate, sobre o corpo magro pôs o casaco verde comprado na loja do chinês, deu-lhe um beijo na testa e saiu do quarto apressada.
Na mala amarela, também comprada no chinês, como sempre desde que o lera pela primeira vez, levou na bolsinha interior ao lado do telemóvel topo de gama da candonga, o bendito anúncio, mais valioso que um bilhete de lotaria premiado, agora devidamente plastificado ao estilo BI antigo, que dizia:
Crocodilo embalsamado. Impecável estado para colocar em cima do móvel ou no
chão. Tel: ….


Uma hora depois de ter saído à rua
O réptil permaneceu quieto no seu esgar, sorrindo satisfeito, aconchegado
na cama de casal, tapado com a manta de lã cor-de-rosa, tricotada à mão pela
sua nova dona durante a solidão das tardes frias de Inverno antes de sair para
a vida.


(Depois de tanto sangue e de um longo abandono ao esquecimento, como é bom ser o escolhido de uma p*** com sentimentos).

MM’ 12 Abril de 2012


quarta-feira, 11 de abril de 2012

Tenta contar até 3…



Parte I – A espuma negra

- Calma, respira fundo. Afinal de contas, o que é que te preocupa tanto?-

O meu homem esconde-se entre a espuma dos seus pensamentos, que o afogam até aos dias do desperdício. De tempo, de vida, de fome. Persegue a sua própria sombra com os olhos rasgados pelo medo de nada encontrar do outro lado. Toca na sua língua e corta-se nas palavras afiadas que esta guarda para certas ocasiões sociais, quando leva a bílis a passear ou se enrola nos bigodes veteranos da ventania de outono, rumo a sul. Até que se embala na arrepiante luz da manhã que antecede a longa noite de pesar…



Parte II – Nas minhas veias o teu sangue

…se disfarçares ninguém repara, acredita. Porque mesmo as pessoas que notam o óbvio deixam que o óbvio se omita por entre as frestas sombrias dos seus medos e inseguranças. Ah, se te julgas impotente para o fazer, que dirão os milhares, milhões até que o fizeram antes de ti? Navegam cegos entre miasmas e rezas a santos ausentes. Repara, observa bem, espreita pela fechadura das suas mentes, penetra nos nós pequeninos que lhes enrolam o dizer, fazer de morto, viver em vão, entre o vão das ondas e o ir, fugir, reluzir como uma estrela longínqua, tão fria que se envolve em léguas de nada.

- eu sei que não presto, sei que não presto, sei. Não presto agora que me consumo entre memórias que não quero voltar a viver. Não quero voltar a viver se tu não viveres, se tu não andares por entre as minhas memórias que explodem como minas sob os teus frágeis pés de seda. Eu queria ter o meu sangue dentro do teu coração, a latejar na veia proeminente da minha testa, que eu esfrego nervosamente enquanto penso em ti. Agora, nem sei se há um ‘ti’ para pensar, pobre de mim.-



Parte III - Sem ti, nada

Cancelei as minhas dívidas e é a minha voz que levanto. Primeiro, em tom baixo e fúnebre e com a chegada da última hora da madrugada, mais viva e loquaz. Quero despedir-me deste poente que me roubava a estrela da manhã, por entre dedos de vidro fosco por onde tu, por vezes em dias de chuva quente, ainda espreitarás. Pego no carvão e faço um último esquisso na parede da tua mente. Parece que me recorda de ti, das canções feitas de pétalas e do que dizias ser parecido com o meu olhar distraído e melancólico. Encerro este capítulo de forma épica e diagonal, sem que possam um dia unir os pontos da discórdia por tanto concordarem que tive o que merecia. Hoje, seca pele de réptil, abandono-te na maré pestilenta dos amores imperfeitos e peço-te, vai para longe e abandona-me de dentro de ti. E que quem te descubra abrace esta maldição como tua e a perpetue assíncrona e harmoniosa, como o renascer doentio do sol vermelho escondido atrás das saias da última madrugada.

- arrumo a alma num pequeno pacote, dela não sentirei falta, é funesta e faminta, arrasta para dentro de si o sopro do primeiro demónio que se fez inquilino no Eliseu e zombou de Deus. Há tantos anos que esperava por este momento, oh doce morte em vida, te abraço em serena plenitude. Antes vazio como a lua nova do que de ti prenhe e escravo. Agarro-me à lâmina quente que soltará as amarras deste vício sujo que é dar-te de comer. Solto uma última lágrima falsa e estendo-me no chão a escrevinhar no portátil. Diverte-me o piscar do cursor, faz-me lembrar as dores pulsantes de quando me ocupavas e violavas sem piedade. Crocodilo embalsamado. Impecável estado para colocar em cima do móvel ou no chão. Envio o email para o jornal e agarro-me ao telefone. Alguém ficará feliz com a oferta. Alguém me fará feliz por me amar sem nada me dizer. Alguém assentará num papel arrancado oportunamente de um pequeno bloco a morada. Alguém me virá buscar, cadáver. Nota mental: deixar a porta entreaberta antes de contar até 3…-

segunda-feira, 2 de abril de 2012

... de água salgada




Lá está ele a vestir o fato bom e a escovar o chapéu. Vai outra vez ao jornal colocar o anúncio, o mesmo de sempre. Como se alguém quisesse comprar um crocodilo empalhado de quatro metros para pousar em cima de um móvel. Acho até que já não se fabricam móveis com quatro metros. Nunca se livrará de mim.


Já tivemos algumas visitas, é certo. Um artista algo bizarro que queria fazer uma escultura com  bocados de animais embalsamados e outros em putrefacção, uma senhora com tesouras em vez de olhos que me transformou em carteiras e botas com uma só mirada e um doutor qualquer de um museu qualquer que tentou ensinar-nos todas as estatísticas que lhe enfiaram na cabeça sobre répteis. Acabaram todos corridos de forma deselegante, principalmente o último quando quis explicar-lhe os quilopascais de uma dentada de crocodilo.


Como se ele não soubesse. Como se os meus dentes, “cujo número varia entre os sessenta e quatro e os sessenta e oito”, não lhe tivessem arrancado metade da perna.


Foi noutro tempo, nos antípodas desta velha casa cheia de aranhas e conservada pelo cheiro do formol. Só existia o meu estuário aberto até que o puxão de uma armadilha e bolas de fogo vindas de lado nenhum rasgaram-me escamas, pele, carne e vida. Tal como acontece com vocês humanos, a hipoxia não perdoou e lá segui o túnel de luz no final do qual estava o tal membro que abocanhei num último pulsar de sangue. A perna de um rapazola imberbe e apavorado que acompanhava um pai determinado em fazer dele um macho a sério. Foi instinto, nem sequer gosto de carne humana. Recordo-me apenas de um ou outro turista estúpido ou fotógrafo intrépido.


Logo na hora o pai decidiu que eu deveria ser embalsamado. Se o miúdo não ia prestar para muita coisa, ao menos que tivesse uma boa história para contar e um troféu para exibir juntamente com o pedaço de coxa. E assim foi. É lógico que começou por ser um acidente de caça e acabou numa luta corpo a corpo nas profundezas salobras do rio mas quem conta um conto tem o direito universalmente consagrado de acrescentar um ponto…. ou uma recta, neste caso.


A nossa história real não tem sido feliz. De regresso ao país natal, a sua obsessão com aquela fracção de segundo e com os crocodilos foi aumentando à medida que a sua sanidade mental diminuía. Tornou-se, obviamente, taxidermista. Começou por estudar o réptil, decidiu coleccionar mandíbulas e passou anos agarrado às escrituras e ao Leviatã. Depois convenceu-se que ganhara um novo sentido, uma espécie de fúria devoradora, e deixou de cozinhar a carne. De seguida veio a fase em que se pintava de branco, subia para o meu dorso e julgava-se a comandar uma legião de demónios. Colava-se à janela e fazia todo um ritual de gestos com os quais impedia o mundo de avançar, mantendo as pessoas a correr no mesmo lugar. Convenceu-se de que não poderia ter mulher e filhos porque se o fizesse a criança teria garras e rasgaria a mãe para nascer. Passou por diversos momentos complicados que culminaram no emprego no hospital e no compartimento secreto cheio de pernas embalsamadas. E então, de um dia para o outro, deixou tudo de lado.


O tempo foi passando e o pobre rapaz desaguou num homem precocemente velho e meio louco. Ultimamente anda com mais pressa de vender-me. Tal como eu, ele tem visto por aí a dama da morte. Ela derrama a sua sombra na cadeira junto à porta, ele puxa um banco, vai buscar a espingarda do pai e ficam para ali os dois horas a fio a olhar-se nas covas dos olhos.


Agora ele acha que eu sou Osíris e que quando deixar o mundo serei eu a pesar-lhe o coração. Não sei se serei. Também não sei se ele fez muitas coisas erradas ou se carrega grandes culpas. Decidi que direi que é leve mesmo que não consiga levantá-lo do chão. É que se for pesado terei de o engolir e não posso fazer isso. Roubei-lhe parte do corpo e toda a sua mente, nunca poderia tirar-lhe também o coração. Dizem que a fome dos crocodilos só é suplantada pela da noite que devora o dia… mas até nós temos limites.


Na realidade, seria como comer o meu próprio coração. Com o tempo a água salgada das suas veias e o pó das minhas, abandonadas no outro lado do mundo, tornaram-se uma só lama.

sexta-feira, 23 de março de 2012

estática formidilo



A passear pelas entrelinhas de um jornal

a formiguinha com borboletas na barriga

contorna a palavra embalsamado

e sente que algo está enredado.


Senhor seu marido o Crocodilo Camilo

invoca o seu estado e diz-se aprazível

mas a formiguinha só chora de desgosto

pois o seu amor em anúncio foi posto.


Encantada com a sua mandíbula

as núpcias fizeram-se apressadas

beijos trocados entre dentes e antenas

palavras mastigadas em contracções de fábula.


Agora todo o amor passa o dedo e sente escamas

pelo móvel pantanoso faz um trilho em passos seis

formiguinha alagada em lágrimas de crocodilo

escorrega pelo chão viúvo das damas-alfamas.


(Se o TeLhado estrelado pudesse ser um desejo afinado

formiguinha almejava que todo o sal se desfizesse numa folha de jornal

queria que as letras pequeninas fossem grãos de areia

para que as palavras anunciadas não soubessem a teia.)

quarta-feira, 21 de março de 2012

O SALITRE DAS ARRIBAS

Nos reflexos na janela esborratada pelas mãos da criança perdida

Revelou-se o desenho da tua memória nunca antes invocada

Quem és? O regresso adiado das coisas imaginadas e feitas jamais

Quem foste? Os sonhos inatingidos e castrados à nascença pelos próprios pais

Quando te deitas em que pensas? Na tua vida na que imaginas e na que tens.

Nas promessas de um caminho pelo qual afinal não vens?

Despido de todas as aberrações e capas.

Ser simplesmente como se é

Um chá. Numa terrina de sopa. Percebes a ironia? Estarei louca?

Seria a mesma ao acordar? Preferias café?

No teu olhar vejo o mar. A saudade das causas vencidas e das horas mal passadas.

As tuas ondas são mais salgadas. Trazem a maresia e os ares da montanha.

Que completa e encaixa na planície da erosão

Evocando um mundo maior onde o criador foi peremptório

Em separar as águas com avidez tamanha

Que a bebeu toda e no seu lugar deixou o céu.

E o teu sorriso de menino perdido que esborrata desenhos no vidro partido

Corta-me em perfeitos cacos e deixa-me novamente de braço caído

E totalmente atenta aos sinais

Aquele trilho que cobiço. É também por aí que vais?

Ao fundo dos precipícios altos

Ao preto negro dos basaltos

À seiva das ervas claras cheias de viço

Ao calor do beijo anunciado

Que antes de mim

Será roubado por uma das tuas servas

Que resmunga e te excomunga entre os dentes

E te encomenda a morte a gigantes valentes?

Seria mesmo assim?

Apesar do final do trilho ser sempre incerto

A minha testa de menina perdida que corta os pulsos na pedra partida

Poderia parar no percurso e descansar no teu peito aberto

E no final o teu corpo marcado pelas silvas encostar-se-ia à minha garganta?

Se tu fosses demónio ancião, eu seria uma nova santa

E o salitre das arribas ficaria contrabalançado

P’ la humidade relativa das nossas almas em colisão.

MM’ 12 Março 2012

terça-feira, 20 de março de 2012

Antes que o sol nasça


Antes que o Sol nasça
ama-me com pressa
que o tempo não chega para este sentir (e)terno 

antes que o Sol nasça
acalma o meu medo de partir
apesar da insistência
evidência
persistência
por já não ser
quem era
toma-me nos braços
e grita
o meu nome às estrelas
nesse amor
que sei único
verdadeiro e confiante
como só pode ser o (teu) amor.

Antes que o Sol nasça
e mesmo que eu não mereça 
imortaliza-me num poema
canção
dança
estátua de sal 
fogo
paixão imortal.

sábado, 17 de março de 2012

O mundo, teu

Sou um conjunto de ideias vomitadas,
Por uma boca nómada
Onde todas as filosofias estão radicadas.
Circundada pelo ócio,
Ensopada pela vontade,
Exsurge-se-me a vontade de tudo abecedar.

E fosse o mundo um quadrado não explanado
Desvanecendo-se na vontade de ser achado.
(Assim giraríamos em linhas rectas, tal eco, tal eternidade)
E fosse o mundo o vácuo, que eu me calava
Só para te ouvir com os olhos.
(Pascendo-me nos céus, tal beleza)
E fosse o mundo tu e eu, mais nada,
Onde nenhuma metafísica minha estivesse errada.
(Tal utopia, tal cegueira. Paixão, essa, por inteira)

Mas tudo o que escrevo estropia-se no espelho.

Como um tiro falhado,
Sou poeta errante,
Estatuado,
Com ar de navegante,
À espera que a minha bala penetre o peito
De quem me causa deleito.
Sentimento abinício revela-se um esquisso.
Exumo tudo o que penso
Escavacando ao paroxismo do desalento.
Ego abúlico revela-se ábio
E nidificando-se em ti
Quer vida.

Agora, pasmo,
Chora, escondido na sombra de te ter luarejado.
(Pena que seja lucífugo)

Fosse o mundo o meu vómito.
Quero crer-me nele
E abluir pensamento.
Quero descrer-me que o seu motor
É como o vento,
Ora contra, ora a favor do nosso movimento.


Emanuel Graça' , 14 de Março de 2012

sexta-feira, 16 de março de 2012

Desafio: Anúncio para primórdio


Desta vez o desafio tem um ponto de partida. Imaginem que abrem o jornal e enquanto passam os olhos casualmente pela página dos classificados deparam-se com este anúncio:



Soltem a imaginação e criem um conto ou um poema que comece aqui. Até onde irá e como acaba é convosco.
Não se esqueçam de associar uma música aos vossos textos e de colocar a etiqueta "Desafio: Anúncio para primórdio".

O prazo para entrega é o dia 31 de Março (mas não esperem pelo fim).

Boa escrita.

A administração do AitD-txt

sábado, 10 de março de 2012

AINDA NÃO

Dá-me vontade de olhar para os rostos das pessoas. Mesmo sabendo que a sensação é de impessoalidade e que a maior parte dos olhares são vazios, fechados, introspectivos ou simplesmente ausentes. Causa-me tamanha curiosa impressão. O vai-e-vem. A desumanização das relações que se prolongam para além destes momentos de trânsito. Tudo misturado. Todas as cores e formas de vestir. Todas as raças. Gosto e não gosto de me sentir anónima nas pequenas multidões.

Nos bancos do metro, esperas em não-lugares que não são nada senão antecâmaras de uma outra coisa qualquer. Mas sinto falta de ar. Não é que não respire. Inspiro oxigénio e exalo dióxido de carbono como todos. Mas falta-me a dimensão da luz do dia. E fico feliz por o meu lugar não ser ali, e de não pertencer a coisa nenhuma feita pelos homens. Por os meus olhos serem livres de ver outras paisagens. O mar, o céu azul, os vegetais rasteiros e as plantas mais altas, os pássaros marítimos, os nós retorcidos dos chaparros. O cheiro doce do calor e da falta de chuva. De não sentir falta de ver gente, e poder vê-la em tanta diversidade e quantidade quando viajo. O que fica desses cruzamentos incorpóreos quando regresso? No vazio de tantas caras, será alguma verdadeiramente inesquecível, especial? Será a promiscuidade dos encontros casuais uma realidade tão necessária ao esquecimento das penas, para quem não tem certezas de querer encontrar um caminho? Isto é assim tão óbvio? Para mim, não. Ainda não.

É certo que o meu porto seguro me dá paz e tranquilidade, e que as incursões no incerto me fazem correr mais depressa o sangue. Porém descubro que ainda consigo sentir. Não perdi a capacidade de admirar as coisas e as pessoas. De me apaixonar pela forma como uma gota de água escorre pelo cálice de uma flor, pela forma espontânea como alguém sorri, a curvatura do nariz. Conservo uma centelha de pura esperança na possibilidde da mudança e de empatia. Não ser só mais um corpo em rápida fuga escada acima para uma carruagem qualquer no subsolo. Não ter de ingerir mágicas poções para dormir sem pesadelos, nem outros venenos para enfrentar o trânsito nas ruas. Poder ser, ou não ser, estar onde e como quero e me sinto no momento. Sem me sentir esmagada.

Na minha cabeça escrevo: vou ultrapassar os pequenos obstáculos e tentações em nome de uma meta maior e mais longínqua. Trilhar o meu próprio caminho, que não é em nada igual ao de mais ninguém. Nem queria. Mesmo que quisesse. Nunca foi. Não saberia como não sair do trilho pré-existente.

Disseram-me tanta vez: “não te estragues”. E apesar da vida não ter sido como sonhei, dos penetras, das rugas e das noites mal passadas, dos chocolates, dos dias de tanta chuva sem sinais de ver o sol nascer, das dores, das mágoas, das ausências e inconsistências, ainda acredito no amor entre as pessoas, no altruísmo, na dádiva desinteressada, na bondade.

Ainda não apodreci.

MM’ 8 Março 2012

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...