sexta-feira, 15 de junho de 2012
As 180 do cuco
terça-feira, 5 de junho de 2012
ENTRE A LUZ E A ESCURIDÃO
- Ouvi falar de uma mulher cujo Dom é o de conseguir apaixonar-se de verdade. Mas a sua maldição é apaixonar-se sempre por homens tristes.
- Isso não é um Dom, isso é pura estupidez. Qualquer bruxa o sabe. Há melhores maneiras de passar o tempo. E já agora qual é o interesse dos homens tristes?
- Não sei. Pelos vistos a mulher também não sabe. Acha que lhe rogaram uma praga, que foi amaldiçoada quando nasceu. Que é kármico. Que a nuvem negra por cima das cabeças é um presságio de grande profundidade filosófica, de algum tipo de sabedoria das coisas do mundo que lhe está vedado, que só através desses homens conseguirá ascender a um plano superior do conhecimento...
- Tretas. Cá para mim a mulher devia olhar-se ao espelho e apaixonar-se pela vida, que só é triste se deixarmos. Podemos sempre escolher a alegria ou a tristeza, depende da nossa vontade.
- Vai lá dizer-lhe tu isso, pode ser que ela se convença e deixe de gostar de sofrer...
- Mas eu nem a conheço, e além disso tu é que ouviste essa história.
- Dela só sei que lhe comeram o coração, nem lhe vi a cara, mas creio que era bela. Alguns homens perderam-se no seu olhar, sonharam com o seu sorriso. No entanto, o último homem por quem se apaixonou escolheu deixá-la sozinha no deserto, enquanto se atirou para dentro de um poço no primeiro oásis que encontrou depois de ter desisitido de viver na floresta. Mas como o poço não tem fundura suficiente, está lá ainda, há-de lá ficar eternidades, num limbo entre o afogamento e a insanidade, e tão cedo parece que não sairá.
- E ela? Não fez nada?
- Fez. Sugeriu arrastá-lo para longe das margens do poço. É óbvio que não teve sucesso. Depois quis puxá-lo com todas as forças. Mas não tinha corda que chegasse, nem braços. Com a chegada da seca, caíram-lhe também os braços. Sabes, a mulher não soube como ajudá-lo. Atrapalhou-se, desesperou, tentou que um fio da sua voz chegasse até ele e o pudesse suster. Mas quando alguém cai dentro de um poço esses murmúrios são vãos, não atingem o fundo, soam a nada, longínquos. E além disso, as paredes são lisas e só uma vontade superior e muito forte, que brote das entranhas de quem caiu, as consegue transpor. Se o homem não se quiser levantar, não há auxílio que venha de fora que lhe valha.
- Então a mulher desistiu?
- Não, o homem é que desistiu de si mesmo. Esqueces-te que foi ele quem se atirou ao poço? Quis voltar a casa, mas como se esqueceu de onde fica, entregou-se à dormência, confundido pelo bolor e acidez das águas paradas. Para ele, assim que espreitou ao poço, quase instantaneamente a mulher tornou-se uma memória pouco consistente, desprezível até, quando comparada com o abraço frio do silêncio das paredes de pedra. Longe do mundo, é mais fácil entregar-se, sem ninguém a ver. O oblívio é uma companhia bastante dócil.
- E as árvores? Ele não tem saudades do cheiro do húmus da terra molhada? Do calor da madeira queimada, do abraço robusto dessa mulher? Não gostou de viver à sombra fresca, da abundância de comida, na quentura do carinho? Preferiu o deserto por que razão? Por ter mais luz?
- Não. A claridade do deserto faz parte da miragem que confunde os homens desperdiçados. É um dos enganos da escuridão, tanto mais tentador quando mais procuram um refúgio onde se esconder da vida. A existência de lenhador é pesada, cansou o homem. Por uns tempos, depois de voltar vitorioso da batalha, orgulhou-se por conseguir carregar o fardo. Os troncos chegaram até a ficar mais leves. Mas com o passar dos anos, um dia acordou tarde, e os seus olhos deixaram de conseguir ver as árvores. Esqueceu-se como era mau viver numa gruta, e teve saudades dos dias antes da guerra. Carregar madeira para se poder aquecer deixou de lhe fazer sentido. Achou que a vida dos outros lenhadores era pequena, e que a sua se tornara minúscula, quando tudo o que merecia era a imensidão. Quis fugir da razoabilidade duvidosa do seu quotidiano.
- Fugir novamente. Para onde?
- Fugir de si próprio. Não ter de se olhar ao espelho.
- Se se sentia tão miserável, não poderia ter-se tornado noutra coisa qualquer? Jardineiro, plantador de flores e frutos...
- Podia, mas não quis. Como não se recordava de ter plantado nada, apenas de colher os frutos, muitos deles azedos e bichados, achou que não sabia. E que não valia a pena. Mas na fuga, por acaso mirou-se num espelho de água. Quando se viu, nu e arranhado pelas silvas, não vislumbrou o presente, nem o futuro, apenas o passado. Viu-se novamente dentro do poço, coberto de musgo e lodo, parado. Achou que era esse o seu destino imutável, que não poderia contrariá-lo, que um dia, por mais que se escondesse, o poço viria até si. Viver um dia de cada vez, à espera do inevitável, era tão inútil como querer arrancar a pele.
- E onde estava a mulher? Não lhe mostrou que estava errado? Não lhe disse que ele era bonito e forte? Que a sua voz lhe fazia lembrar o marulhar do mar? Não lhe mostrou coisas belas? Não lhe ofereceu todos os seus beijos? Não lhe fez sentir que era um homem bom, destinado a amar e ser amado? Não o amparou?
- Sim. E também lhe disse que não tinha de viver na floresta, se assim não quisesse. Que conhecia outros sítios, que poderia ser pescador, ou pintar o mar, cantar os pássaros, ou voar nos céus. Que o mundo é grande e generoso. Que poderia ser tudo o que quisesse, onde quisesse, quando quisesse. Sozinho ou acompanhado. Ofereceu-se para caminhar a seu lado. Explicou-lhe que todos os homens e mulheres são livres de escolher e fazer a sua viagem.
- Se foi assim, o que sucedeu? Ele não quis a companhia? A vida dos humanos não é mais leve se se puder dividir as tristezas e partilhar as alegrias com alguém?
- As mulheres são mães de todos os homens, especialmente daqueles que nunca terminam de crescer. Alguns homens que se habituam a caminhar sozinhos e se sentem confusos com o rumo a tomar, dificilmente mostram que duvidam, e por isso não aceitam companhia. A confiança tem de ser superior ao medo.
- E o amor? Não é mais forte do que o medo? Não se pode amar sozinho.
- Quem nunca amou, dificilmente reconhece o amor, e muito menos acredita que o amor é o que de mais forte e melhor existe. Que o amor pode mudar o mundo e a vida das pessoas.
- Esse homem nunca amara?
- Talvez. Mas quando um homem deixa de se amar a si próprio, não consegue amar mais ninguém. É da troca, do dar e receber que nascem novos ramos. Sem isto a árvore seca, as folhas encarquilham-se, voltam-se para dentro. Parece que por momentos, ele se sentiu inteiro, feliz e grande, ao tomar aquela boa mulher nos braços. Mas, por falta de hábito, no seu pânico de se perder no seu corpo, os abraços persistentes sufocaram-lhe a garganta.
- O amor quando é demais sufoca?
(O amor e a sua ausência: o que nos move e o que nos mata.)
- Não, o amor nunca é demais e nunca sufoca. O que estrangula é o medo, a dúvida, a carência, a incerteza. São todas as formas de opressão e a ideia errónea de que algo no amor pode estar errado, não ser totalmente bom. Essa é uma das armas mais poderosas e pérfidas da escuridão: a disseminação da ideia de que o amor pode ser mau, que ao viver um grande amor, se perdem outros pedaços importantes da vida. Que o egoísmo, o interesse, a desunião são coisas necessárias. Que as pessoas tem de se proteger desse sentimento tão forte a que chamam amor! E o pior é que elas acreditam.
- É por isso que muitas pessoas são tão infelizes?
- Sim, é essencialmente por isso.
- Esquecem-se de que são irmãos e todos iguais?
- Claro. Deixaram de agradecer e de dar valor à amizade. Acham que a paixão é despojada de essência e um estado efémero, um devaneio transitório, um mal necessário para atingir fins pessoais. E que o amor…esse, muitos nem acreditam…
- Desculpa interromper-te, mas parece-me que esse homem perdeu a fé. Quando se perde a fé, perde-se a si mesmo. Pior do que nunca ter tido fé, é perdê-la, não achas?
- Tenho a certeza.
- E a mulher, também perdeu a fé?
- Não, a mulher, ao pensar perder o homem, encontrou-a.
- ...
- Antes, havia entregue ao homem o coração numa bandeja de prata.
- E ele? O que fez ao coração dessa mulher?
- Penso que foi ele quem o comeu. Nem percebeu que o comera, e soube-lhe bem na altura. Alimentou-o por uns tempos, manteve-o à tona. Pelo menos a mulher acreditou que sim...sabes que lhe nasceu outro coração ainda maior, onde anteriormente havia estado o primeiro?...E mais tarde, o homem acabou por confessar à mulher que, mesmo antes de a ter conhecido, andava a ser tentado por pensamentos de se jogar dentro do poço.
- Então não foi uma coincidência, terem-se conhecido naquela altura precisamente?
- Sabemos bem que não existem coincidências...adivinhas o que aconteceu a seguir?
- Não faço ideia.
- O homem enganou a mulher. Por piedade, para se livrar do peso da bandeja de prata, para não se sentir culpado por fazê-la sofrer.
- Mentiu-lhe?
- Ele achou que não. Apenas que lhe omitiu coisas irrelevantes. Disfarçou o poço com ramos de árvore tenros, e contou-lhe uma história. Disse-lhe que o poço era uma fonte, onde necessitava de ir beber todos os dias, para que nunca mais voltasse a perder-se no caminho e passasse para o lado de lá, para o deserto, onde existem muitos poços onde cair. Explicou-lhe ainda que os troncos que carregava quase sempre às costas lhe estavam colados à pele, e que só a água dessa fonte os impedia de lhe furar os ossos e cair esmagado no chão.
- E ela acreditou? Era tudo mentira?
- A mentira e a verdade são irmãs siamesas. Onde começa uma e acaba a outra? Ninguém sabe, mesmo que as consigam separar, não serão sempre gémeas? O homem de facto foi várias vezes beber à fonte. Mas quando quis que a mulher se fosse embora, já não era a fonte que o chamava, apenas o poço. Mas sim, ela acreditou.
- Quis acreditar, ou não quis ver?
- Ambas. Mas acreditou sempre em tudo o que ele lhe disse, até ao dia em que ele assumiu que lhe mentira. E que a queria longe dessa mentira. Foi quando o buraco no peito se lhe convulsionou, e sem saber como, começou a nascer o novo coração.
- A linha que separa a floresta do deserto é muito ténue e irregular; quase transparente.
- Sim, tem contornos variáveis, e a mulher nunca antes estivera naquele lugar; para lá chegar limitou-se a seguir os passos erráticos do homem.
- Achas que ele fez de propósito?
- Não. Na realidade, ele também nunca havia estado naquele lugar. Quis contar-lhe uma história bonita, para não a magoar. Sempre apreciara tudo o que a mulher lhe deu, não queria perdê-la, embora o seu positivismo esforçado e a persistência do seu carinho lhe começassem a pesar em cima do fardo de madeira.
- E a mulher, não podia afrouxar, ajudá-lo a carregar o fardo em vez de o carregar ainda mais?
- Podia, e tentou. Mas não sabia bem porquê nem como. Por vezes dava-lhe um desespero, ficava como que possúída por mil demónios, queria à viva força que o homem aceitasse a sua ajuda. Não se apercebeu de que cada vez que o fazia, o fardo se tornava ainda mais pesado. Então o homem afirmou que o fardo era só seu, que ninguém o podia aliviar e que tinha de o carregar sozinho.
- Esse fardo tinha a forma de uma cruz?
- Sim. Todos o homens e mulheres tem o seu. Há quem aceite um ombro amigo, há quem nem se aperceba de que o peso pode ser aliviado se houver confiança entre irmãos.
- Então o homem foi mau?
- O homem foi orgulhoso, mas fez mal sobretudo a si mesmo. Não te esqueças de que foi amaldiçoado à nascença.
- Mas também foi abençoado.
- Sim, também o foi. A luta entre as trevas e o sol é a mais antiga que existe, e a mais desgastante quando se trava dentro da alma de um ser. O homem está a travar uma luta muito dura. E quando se perde a fé, a força de vontade também acaba....a não ser...
- O quê?!
- Que o amor pervaleça.
- Outra vez o amor. Mas neste caso não foi suficiente?
- Talvez. Não sei.
- O homem não amou essa mulher?
- Não sei.
- E ela?
- Não sei.
- E eles?
- Não sabem.
- Quem saberá?
- O tempo trará todas as respostas. O problema é que por vezes, elas chegam muito tarde.
- Tarde demais?
- Não. Só a morte é irreversível.
- Então tarde de mais não é assim tão mau?
- Significa que se perde tempo, que poderia ter sido preciosamente vivido. Mas a vida é assim. Por vezes é mesmo preciso perder as coisas, para depois, um dia as voltar a encontrar e finalmente vê-las com olhos de ver. Apreciá-las, valorizá-las e guardá-las no único local onde nunca poderão ser perdida ou roubadas.
- Onde?
- Creio que consegues descobrir.
- Dentro do coração?
- Sim. Como um ovo que só se consegue abrir e nunca fechar, o que entra no coração das pessoas nunca mais de lá sai.
- De certeza que só a morte é irreversível?
- Sim.
- Então há esperança?
- Sim, é a última a morrer.
- E o amor?
- Nunca morre.
- Nunca?
- Jamais.
- O que acontecerá a essa mulher e a esse homem?
- Há tantas possibilidades e caminhos...É uma incógnita.
- Será que ela poderá descer ao fundo o poço e resgatá-lo?
- Não, isso nunca. Ficariam os dois no fundo. E nem seria no mesmo poço. Tal como as cruzes, cada qual tem o seu próprio poço....
- Ela também carrega uma cruz?
- Naturalmente. E durante algum tempo quis fazer de conta que a sua não lhe pesava tanto...que se ajudasse outros, a sua lhe pesaria menos...também se enganou a si mesma, essa mulher.
- E agora? O que farão?
- Esperar. Acreditar. Lutar.
- Ela ainda continua no deserto?
- Não, está na praia, a olhar o mar, a banhar-se nele, tentando que o novo coração que lhe brotou no peito não salte para fora ao pensar no seu homem-anfíbio debatendo-se sozinho no fundo do poço. Vê as plantas florir nas areias móveis, mede o tamanho do seu caule, como se organizam em torno umas das outras, conta a sua história.
- Abandonou-o à sua sorte?
- Não. Deixou de forçar uma parede. Ele pediu-lhe tempo. Para se recompor, voltar a encontrar-se a si mesmo, tornar-se mais forte. ter orgulho em si mesmo. Ela recomeçou o seu caminho. Só andando o caminho se faz, só fazendo a carga se torna mais leve. O homem sabe onde a encontrar. Se quiser, no areal. Terá de escalar as paredes lodosas da sua prisão. Se ele quiser.
- E ele? Continua no poço?
- Sai de vez em quando, mas apenas em pensamento. Enquanto não encontrar a casa onde quer viver, penso que não conseguirá afastar-se desse túnel. Mas ele é forte, é um bom homem, vai descobrir a resposta dentro de si.
- Encontrar uma casa para voltar. Onde fica?
- Fica em qualquer lugar onde alguém que nos ama nos espera.
- Ela espera-o?
- Não sei. Mas ela quer aprender a viver. Sabe que aquele que a amar irá sair-lhe ao caminho, mais cedo ou mais tarde. Nada é eterno. A não ser o amor.
- Ele espera-a?
- Ela não sabe. Mas não quer sofrer a incógnita. Afinal acredita ter alcançado um nível de conhecimento superior por ter conhecido esse homem. Não pode voltar atrás.
- Em que consiste? O que aprendeu ela?
- Não to consigo explicar, é preciso que percebas. Tudo o que é verdadeiro é uma aprendizagem. Uma redescoberta. Entre o bem e o mal, a certeza e a dúvida, é a aí que vivem os humanos. Quando as almas se tocam, dá-se o início da renovação.
- Haverá mais homens e mulheres na vida de cada um? Amarão outros?
- Possivelmente. O rio nunca pára de fluir. Há muitos caminhos. Tudo depende da convergência das vontades.
- Então e eles? Perder-se-ão um do outro?
- Já me havias perguntado isso anteriormente. És uma feiticeira muito curiosa. Agora pertecem-se. Mesmo que nunca mais celebrem o seu amor, nunca se esquecerão.
- Mas ainda há esperança?
- O homem tem de se amar primeiro. E a mulher tem de se amar primeiro. Só assim não pesarão tanto. E depois da tempestade a bonança pode vir de muitas formas. Conversas, abraços. Ou apenas sorrisos. Poderão reencontrar-se novamente, como novos seres, renovados e livres. Quem sabe amar e cuidar um do outro. Ou não.
- Valeu a pena?
- Não sou eu quem te pode responder. Mas tudo o que é puro é válido. Apenas eles saberão se o foi, se o é. Mas é certo que o resultado em tudo depende das suas escolhas e da suas vontades.
O homem jaz em agonia, lembra-se do afago terno, desdiz-se a si mesmo, escava na água terrosa, abre os olhos dentro da lama em busca de uma fonte límpida onde beber o remédio que o cure por fim da sua insanidade.
A mulher olha além da linha do horizonte, à procura de respostas e de alento, recorda-se do cheiro da pele ao encostar a sua cabeça no ombro do homem amado, semicerra os olhos contra o sol, em busca de uma fonte límpida onde beber o remédio que a cure por fim da sua insanidade.
Um homem triste pode tornar-se feliz. Uma mulher também.
Num dado momento, a saudade é o sentimento mais forte. Aparece repentinamente como uma vespa, uma lança, brisa ou rajada de vento.
No mesmo segundo, entre o céu e a terra, os seus pensamentos-olhares cruzam-se novamente.
Recomeça então o início de todas as coisas, secular e incorpóreo, que vem sempre muito antes de qualquer fim, e contido no qual se conseguem situar as pessoas realmente importantes nas vidas de cada um, as mesmas que lhes garantirão memória, que os farão sentir que ainda estarão vivos (e não somente sobrevivos) antes de morrer.
Afinal, o mistério da vida não se resume a uma benção ou a uma maldição. O maior Dom oferecido a cada um de nós é a própria vida. Podermos sonhar e lutar pela felicidade, ter a capacidade real de amar o próximo, a nossa missão.
E é nos espaços intermédios, nos interstícios soltos entre o chão duro, que toda a água enfim, corre.
MM' 31 Maio 2012
sábado, 26 de maio de 2012
Esquisso de Caeiro
Quem me dera ser um pequeno Caeiro
E nada saber.
Tudo ver e nada crer.
(Fosse eu a surdez que pairasse no seio da imensidão deste barulheiro)
Mas calada a voz, berra a mão
E a mente surda tropeça e cai no chão.
Pequenos pedaços de mim dançam pelo asfalto
Ao som de uma música silenciada por um soluçar cabisbaixo.
Quando tudo se tenta complanar, tudo se esquiva e nada se encontra.
Nada vejo, fustiga-me o paroxismo sentimental que me confere uma paisagem cenosa.
É hora de tudo crer.
(Houvesse outro remédio)
Que se foda o Kant, que se foda o Descartes, que se foda o Sócrates,
Porque nada inibe a vontade, porque nada é intencional,
Porque o relógio quer rodar no sentido anti-horário,
Porque tudo é latebroso e nada é certo,
Porque tudo quanto que me incrassa o coração e me combure a carne
É concolor e me compele a necessidade de o menear de mim.
Porque eu não sou Caeiro e penso.
Porque eu sou dois: Alma e Coração.
Um deles se acidentará.
Que seja o coração porque a alma é eterna e descinge-se a toda a parte.
Que seja a alma porque só existe um coração e se se desdoura tudo fica pobre e incompto.
(Puta que pariu estas retóricas das três da manhã feitas a ouvir duas gotas de suor a cair pelo rosto da marioneta de Ian Curtis)
Que se foda a alma e que se foda o coração,
Porque os céus são grandes e aqui tudo é pequeno,
Porque
In heaven
Everything is fine
You got your good thing
And I’ve got mine,
Porque nos céus tudo é incorpóreo.
Fosse o céu a Terra, Que a Terra se nidificava em mim.
Tudo em mim é espuma em abundância e se dissipa com o vento.
Porque o presente é uma rajada de vento
Futura de um pretérito perfeito,
Cujo alento se resume ao intento de destruir o que já foi feito.
Mas chega de utopias,
Porque não adianta querer luarejar a vida
De quem é lucífugo.
Se nem o cego aprimorou o ouvido e
Se o estuque caiu e ninguém varreu o chão,
Resta esperar que o vento sopre os pós, levante poeira,
Cegue o surdo.
Porque eu penso e sinto,
Não sou Caeiro, sou alma e coração,
E o tempo não existe.
sexta-feira, 27 de abril de 2012
All is One
sexta-feira, 13 de abril de 2012
AMOR VERDADEIRO
E de repente já nada é suficiente, interessante ou chamativo. Tudo tão pouco, comparado contigo e o teu sorriso. Queria estar perto de ti. Abraçar-te, cheirar o teu corpo, olhar o teu olhar vítreo, beijar-te. E já nada interessa. Só tu. Será amor? Penso em nós quando acordo, acompanhas-me todo o dia, contenho-me para não te chamar. Não me custa. É doce e manso e calmo, sei que vou fazer a viagem para te ver, talvez amanhã, ou noutro dia qualquer em breve. Será que é isto a paixão a despontar novamente? Quero que sim. Que sintas o mesmo! Preciso de to dizer, mas não posso ainda. Nem nos conhecemos. Tenho de dosear a expectativa e a emoção, adiar o inevitável, ir dando aos poucos, sem pressas de transbordar. Mas ai! Esta barragem está cheia, não posso dar-te toda a água, não te posso afogar nem ao nosso amor menino, e ainda recém-nascido, verde e vermelho…podia telefonar-te, para ouvires a minha voz, mas não sei que te dizer. Que te queria abraçar e beijar? Só isto? Não. Há tanto que te tenho em mente…ainda é cedo. Será? O teu passado é um deserto sanguíneo que me assusta, cheio de areias movediças. E eu tenho tanto líquido. Penso que preciso de ti para me tornar mais sólida. Precisarás de mim para encharcar o teu seco sofrimento com alguma centelha de vida? Tanto para partilhar. Contigo? Sim. Queria.
Uma semana depois de te ter visto
Tenho saudades dos teus olhos de camaleão, de que ainda não sei a cor…será que um dia saberemos os dois o que é o amor? Os dois?! Juntos? Na minha pele imperfeita e nas tuas rugas de expressão seremos os mais belos um para o outro? Será tudo tão bom como no início, e muito melhor do que ao princípio? Naturalmente não vieste como sonhei; és tão diferente. Mas tão próximo de tudo o que poderias ter sido e sempre quis, e nunca conheci, e nunca vivi, e hoje és tu que me inundas o pensamento, e um dia vai ser tão difícil, impossível conter o que sinto, e receio que novamente o diga antes de tempo, que novamente o diga só por querer senti-lo. E que ainda não sejas tu…o meu barco, meu homem. E tu tens também de te conter, não te podes agarrar demais a mim, sou perigosa, posso apaixonar-me com tal intensidade que te inundo, e depois largar-te de repente quando a paixão se diluir e já nada em nós ser fluido... Não te quero magoar, nem te deixar rejeitado, só e desamparado novamente (não podes voltar a sentir isso!), fazer nada que te arraste para um turbilhão de voltares atrás e recaíres no que te faz mal. Não podes voltar a comer dessa carne. Sei que comias frequentemente as vísceras de outras mulheres e até de alguns homens. Mas olho para ti, tão sossegado e sei que não me vais devorar o coração. Somos filhos da mesma pátria, irmãos de guerra. E tu és assim tão sensível, e eu não te quero magoar. Ainda não sei nada do nosso amor. Nada que já não saibamos não ser possível saber ainda.
Uma noite depois de te ter trazido para casa
Assim que vi a tua foto naquele jornal velho em cima da mesa da pastelaria, sabia que serias meu. Os teus dentes de marfim, a tua pele escamosa, o teu ar silencioso e profundo ficam tão bem com a cor arroxeada do meu lençol. Agora fica imóvel e em paz ai deitadinho, eu volto já, vou só ali trabalhar um pouco (tenho de pagar as tuas prestações; não me saíste nada barato. Quem te possuíu anteriormente não te tratou lá muito bem, maldito caçador de troféus africanos, vieste cheio de pó e teias de aranha e com as unhas carcomidas, mas no preço que pediu por ti não foi nada manso!). Está uma noite boa, sem vento, os habituais esperam-me e pode ser que hoje o negócio corra bem. Como ontem não fui e fiquei contigo, hoje devo chegar mais tarde, mas sabes que lá pela manhã voltarei para o nosso cantinho e serei toda tua novamente. Não me posso esquecer de te trazer um creme para a pele, está tão seca, tenho de te cuidar bem amor. Ai como vai ser bom dormir abraçada a ti novamente, apaixonarmo-nos de verdade e sermos felizes para sempre! Temos a vida toda. Agora sei que nada nem ninguém poderá beliscar o que nós temos, que é tão especial.
Só pode ser amor verdadeiro.
- Pintou os lábios de vermelho berrante, ajeitou a saia justa moldada aos quadris ainda rijos e dourada como o sol do seu país longínquo, calçou as botas pretas de cano alto, viu-se ao espelho rapidamente, colocou a peruca loura apreciando o contraste com a sua pele de chocolate, sobre o corpo magro pôs o casaco verde comprado na loja do chinês, deu-lhe um beijo na testa e saiu do quarto apressada.
Na mala amarela, também comprada no chinês, como sempre desde que o lera pela primeira vez, levou na bolsinha interior ao lado do telemóvel topo de gama da candonga, o bendito anúncio, mais valioso que um bilhete de lotaria premiado, agora devidamente plastificado ao estilo BI antigo, que dizia:
“Crocodilo embalsamado. Impecável estado para colocar em cima do móvel ou no
chão. Tel: ….”
Uma hora depois de ter saído à rua
O réptil permaneceu quieto no seu esgar, sorrindo satisfeito, aconchegado
na cama de casal, tapado com a manta de lã cor-de-rosa, tricotada à mão pela
sua nova dona durante a solidão das tardes frias de Inverno antes de sair para
a vida.
(Depois de tanto sangue e de um longo abandono ao esquecimento, como é bom ser o escolhido de uma p*** com sentimentos).
MM’ 12 Abril de 2012
quarta-feira, 11 de abril de 2012
Tenta contar até 3…
O meu homem esconde-se entre a espuma dos seus pensamentos, que o afogam até aos dias do desperdício. De tempo, de vida, de fome. Persegue a sua própria sombra com os olhos rasgados pelo medo de nada encontrar do outro lado. Toca na sua língua e corta-se nas palavras afiadas que esta guarda para certas ocasiões sociais, quando leva a bílis a passear ou se enrola nos bigodes veteranos da ventania de outono, rumo a sul. Até que se embala na arrepiante luz da manhã que antecede a longa noite de pesar…
segunda-feira, 2 de abril de 2012
... de água salgada
sexta-feira, 23 de março de 2012
estática formidilo
A passear pelas entrelinhas de um jornal
a formiguinha com borboletas na barriga
contorna a palavra embalsamado
e sente que algo está enredado.
Senhor seu marido o Crocodilo Camilo
invoca o seu estado e diz-se aprazível
mas a formiguinha só chora de desgosto
pois o seu amor em anúncio foi posto.
Encantada com a sua mandíbula
as núpcias fizeram-se apressadas
beijos trocados entre dentes e antenas
palavras mastigadas em contracções de fábula.
Agora todo o amor passa o dedo e sente escamas
pelo móvel pantanoso faz um trilho em passos seis
formiguinha alagada em lágrimas de crocodilo
escorrega pelo chão viúvo das damas-alfamas.
(Se o TeLhado estrelado pudesse ser um desejo afinado
formiguinha almejava que todo o sal se desfizesse numa folha de jornal
queria que as letras pequeninas fossem grãos de areia
para que as palavras anunciadas não soubessem a teia.)
quarta-feira, 21 de março de 2012
O SALITRE DAS ARRIBAS
Nos reflexos na janela esborratada pelas mãos da criança perdida
Revelou-se o desenho da tua memória nunca antes invocada
Quem és? O regresso adiado das coisas imaginadas e feitas jamais
Quem foste? Os sonhos inatingidos e castrados à nascença pelos próprios pais
Quando te deitas em que pensas? Na tua vida na que imaginas e na que tens.
Nas promessas de um caminho pelo qual afinal não vens?
Despido de todas as aberrações e capas.
Ser simplesmente como se é
Um chá. Numa terrina de sopa. Percebes a ironia? Estarei louca?
Seria a mesma ao acordar? Preferias café?
No teu olhar vejo o mar. A saudade das causas vencidas e das horas mal passadas.
As tuas ondas são mais salgadas. Trazem a maresia e os ares da montanha.
Que completa e encaixa na planície da erosão
Evocando um mundo maior onde o criador foi peremptório
Em separar as águas com avidez tamanha
Que a bebeu toda e no seu lugar deixou o céu.
E o teu sorriso de menino perdido que esborrata desenhos no vidro partido
Corta-me em perfeitos cacos e deixa-me novamente de braço caído
E totalmente atenta aos sinais
Aquele trilho que cobiço. É também por aí que vais?
Ao fundo dos precipícios altos
Ao preto negro dos basaltos
À seiva das ervas claras cheias de viço
Ao calor do beijo anunciado
Que antes de mim
Será roubado por uma das tuas servas
Que resmunga e te excomunga entre os dentes
E te encomenda a morte a gigantes valentes?
Seria mesmo assim?
Apesar do final do trilho ser sempre incerto
A minha testa de menina perdida que corta os pulsos na pedra partida
Poderia parar no percurso e descansar no teu peito aberto
E no final o teu corpo marcado pelas silvas encostar-se-ia à minha garganta?
Se tu fosses demónio ancião, eu seria uma nova santa
E o salitre das arribas ficaria contrabalançado
P’ la humidade relativa das nossas almas em colisão.
MM’ 12 Março 2012
terça-feira, 20 de março de 2012
Antes que o sol nasça
sábado, 17 de março de 2012
O mundo, teu
Por uma boca nómada
Onde todas as filosofias estão radicadas.
Circundada pelo ócio,
Ensopada pela vontade,
Exsurge-se-me a vontade de tudo abecedar.
E fosse o mundo um quadrado não explanado
Desvanecendo-se na vontade de ser achado.
(Assim giraríamos em linhas rectas, tal eco, tal eternidade)
E fosse o mundo o vácuo, que eu me calava
Só para te ouvir com os olhos.
(Pascendo-me nos céus, tal beleza)
E fosse o mundo tu e eu, mais nada,
Onde nenhuma metafísica minha estivesse errada.
(Tal utopia, tal cegueira. Paixão, essa, por inteira)
Mas tudo o que escrevo estropia-se no espelho.
Como um tiro falhado,
Sou poeta errante,
Estatuado,
Com ar de navegante,
À espera que a minha bala penetre o peito
De quem me causa deleito.
Sentimento abinício revela-se um esquisso.
Exumo tudo o que penso
Escavacando ao paroxismo do desalento.
Ego abúlico revela-se ábio
E nidificando-se em ti
Quer vida.
Agora, pasmo,
Chora, escondido na sombra de te ter luarejado.
(Pena que seja lucífugo)
Fosse o mundo o meu vómito.
Quero crer-me nele
E abluir pensamento.
Quero descrer-me que o seu motor
É como o vento,
Ora contra, ora a favor do nosso movimento.
Emanuel Graça' , 14 de Março de 2012
Impossibilidades
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