“Acordei de noite. Estava frio, muito frio, e senti os pés gelados e a
alma dormente. Esperei que passasse. Fechei os olhos, enrolei-me na manta
pesada. Fiz de conta que não era eu que estava ali. Podia ser que a vontade
adormecesse. Não demorou muito tempo, e tive de me levantar. Já é tempo.
Arrastei-me até à divisão contígua, os pés descalços quase roxos. Por
não conseguir endireitar as costas nem dobrar as pernas totalmente, tive
dificuldade em sentar-me. A custo o jacto saiu, e o alívio foi imediato. Só
quero voltar a dormir, mas não posso. O dever chama-me e há gente à minha
espera. São horas.
Talvez devesse cortá-las. São espessas e estão sujas. Mas protegem-me
do ar cortante da rua. O mesmo casaco, as mesmas botas pretas. Porque me tremem
tanto as mãos? Malditas artroses. Custa-me agarrar esta côdea de pão duro e o
café está queimado. Mas, cá vou novamente.
Tudo preparado. Toma, come que precisas porque estás grávida. E tu
também meu querido. Bebe o leite. Olhe, que desta vez fica mais longe. Consegui
guardá-lo a todos, e o saco está cheio desta vez. Ontem ainda tive dúvidas se
acabava tudo a tempo, mas apesar deste cão que tenho a morder dentro dos ossos,
consegui.
É difícil, pois o saco está pesado, os animais já estão cansados e tem
fome. Mas fazem-me falta para a viagem. Normalmente passo despercebido,
raramente olham para nós duas vezes, mas não nesta noite. As crianças são o
melhor, e gostam sempre do que lhes dou. Quase sempre consigo fazê-las sorrir,
e é raro alguma me tratar mal.”
Quando tocou o sino sentou-se na
manta castanha, aberta sobre o primeiro degrau, e enrolou-se. Ajeitou a Maria e
o José ao colo, abriu o saco e tirou o mais pequeno. Colocou-o ao lado da
perna. Agora apenas restava esperar pelas pessoas.
Um casal bem vestido foi o
primeiro a chegar. Nicolau estendeu a mão, mas dos dois não obteve qualquer
reacção. Passaram adiante e altivos entraram pela porta enorme de madeira de
carvalho e ferro. Entretanto foram chegando mais pessoas, famílias, avós e
netos, mães, pais e filhos, tios, primos, alegres ou pensativos, outros
cabisbaixos e sós. Alguns aproximaram-se e sorriram, estenderam a mão à latinha
ou somente pararam a observar curiosos. Chegou uma menina de uns 6 anos. Cabelo
castanho, liso, cortado abaixo da orelha, franginha curta, olhos grandes e
espertos a espreitar por detrás de uns óculos pequenos cor-de-rosa. Escutou.
- “Olha mãe, o Pai Natal sabe
tocar guitarra!”
- “Não é uma guitarra amor, é um
cavaquinho, e não é o Pai Natal!”
- “É o Pai Natal sim mãe. Não vês
que tem barbas brancas e compridas e um casaco vermelho? E se não fosse o Pai
Natal, não estava aqui sozinho a tocar música ao frio na Noite de Natal, não
achas? E trouxe presentes dentro daquele saco… achas que ele me vai dar uma
prenda?”
A mãe sorriu. Como explicar à sua
menina, ao seu amor tão puro que em tudo via magia e amor, que aquele pobre
diabo era apenas um mendigo, provavelmente sem família e sem abrigo, que tocava
músicas à porta da igreja em troca de umas moedas? Abriu a carteira, procurou
uma moeda, mas só encontrou uma moeda de 2 Euros, já destinada a donativo na
missa do galo, e outra de 20 cêntimos…muito pouco, afinal era noite de Natal, e
o homem estava ali sozinho ao frio… lá encontrou uma nota de 5 euros, e após um
momento de hesitação (“…este ano as coisas estão más e nas compras de Natal
gastei demais…”), resolveu-se a dar a esmola.
- “Toma filha, põe dentro da
lata, e depois vamos para dentro que está quase a começar.”
Mas a menina não respondeu, não
se mexeu, nem pestanejou. Estava totalmente absorta na melodia que saia daquele
instrumento tão estranho que parecia uma viola pequenina. Mas o que mais a
hipnotizava era a agilidade dos dedos retorcidos de unhas escuras do Pai Natal,
naquelas cordas prateadas.
- “Vá lá querida, vamos para
dentro que está frio”. Como a inanição e espanto da menina se mantivessem, deu-lhe
uma mão, e dobrou-se para com a outra depositar a nota, mas o mendigo tapou a
lata impedindo o depósito.
-“Não, obrigado. Aí dentro não pode
pôr nada, mas se a menina quiser – olhou para ela com, um sorriso enigmático -
pode tirar.” – a voz do homem era surpreendentemente límpida e jovem, enquanto
se levantava. Surpreendidos quer pela voz, quer pela elevada estatura de
Nicolau, alguns atrasados apressados estacaram a observar a cena.
- “Ah! Desculpe, não sabia…pensei…”
– balbuciou a mãe num misto de emoções entre o espantado pela intervenção, o
envergonhado por ter podido ofender o músico, e o aliviado por voltar a guardar
os 5 Euros.
- “Eu disse-te mamã, tu é que não acreditaste!
É o Pai Natal sim!”. E Clara viu que a cadelinha preta era uma fada bondosa de
asas brancas, e que o cãozinho castanho era um duende baixo e gordinho, de ar
patusco e brincalhão.
- “Podem todos tirar uma rifa”. –
Disse o gigante contente, dirigindo-se e estendendo a latinha das rifas à meia
dúzia de crianças que o rodearam entre saltinhos e risotas. – “E depois digam-me
os números, que dentro deste saco estão as surpresas!”.
- “Pai, saíu-me um 2!” – Gritou
entusiasmado o João, virando a cabeça para cima enquanto o pai, emocionado pela
alegria daquele filho que aos 10 anos já conhecera tantos hospitais tomara
tantos medicamentos e fora tão retalhado, como ele, a mãe e os seus dois irmãos
todos juntos nunca o seriam, lhe fazia festas na cabeça de caracóis pretos. -
“Pai é uma viola! É mesmo o que eu queria! Obrigado!”. E desta vez, as lágrimas
dos olhos tristes do João, e cansados de seu pai, foram felizes.
- “Avó, eu ganhei um casaquinho,
igual ao do Pai Natal, mas cor-de-rosa, a minha cor preferida!”. E a avó,
admirada com tudo aquilo, no meio de um sorriso olhou a neta de longos caracóis
louros. – “Que bom filha, mas Verinha, olha que é um cavaquinho. E por falar em
casaquinho já reparaste que este cãozinho também tem um casaco de malha branco,
como tu, eheheh?”. E a idosa senhora fez uma festa à cadelinha.
Enquanto distribuía as
prendinhas, todos instrumentos de corda feitos à mão por si, Maria, toda
vestida de branco, e José, alegremente abanavam as caudas e lambiam as pernas
do dono. Todos estavam alegres, bem-dispostos e reconhecidos ao despedir-se do
homem. A menina de cabelo liso castanho, dentro do seu coração, agradeceu a
Jesus por ter pedido ao Pai Natal que oferecesse música às crianças e tocasse à
porta da igreja. Também pediu à mãe que convidasse o Pai Natal a ir cear a sua
casa, mas a mãe disse que não, que já era tarde.
A Nicolau, doíam-lhe os ossos,
mas sentia-se quente por dentro, contente por mais uma vez ter cumprido o seu objectivo,
o de fazer sorrir as crianças, o de dar amor e recebê-lo em troca. Mesmo que
alguns adultos não tenham percebido que é esse o verdadeiro Natal.
Não quis entrar na igreja, e
quando a última cabecinha sorridente desapareceu por detrás da porta, pegou nas
suas coisas, o saco estava vazio, e pôs-se novamente a caminho, ladeado pelos
seus melhores amigos. Calcorreou as ruas, rindo-se de satisfação por ter
corrido tão bem este ano, por ter ficado tanta gente feliz. Apesar do que ouvia
as pessoas comentarem nas ruas, quando passavam por ele como se fosse um ser
invisível a remexer no lixo, que a vida estava cada vez mais difícil e que este
ano não haveria Natal.
Mas, para além de saber criar
belos instrumentos, com os desperdícios das lojas e materiais que recolhera nos
caixotes do lixo, e de saber tocar belas músicas de Natal, tinha outro Dom: o
de adivinhar o futuro das pessoas que acreditam na magia.
Sabia que em breve o João
curar-se-ia da doença misteriosa, viveria muitos anos, seria um músico famoso que,
em suaves melodias, traria ao mundo um pouco mais de beleza, e que o seu pai
poderia voltar a dormir todas as noites sem medo de ao acordar ter perdido o
seu filho e a luz dos seus olhos tristes. Sabia que a menina sonhadora que
acreditava e via o mundo da magia, no mundo real viria a ser o equivalente a
uma fada, uma médica atenciosa que, com as palavras certas, daria esperança aos
doentes e coragem às suas famílias, e com o seu Dom, salvaria muitas vidas, trazendo
ao mundo um pouco mais de beleza. E que uma outra seria uma bailarina graciosa que
a brilhar em iluminados palcos, faria brilhar no mundo um pouco mais de beleza.
Nicolau sabia também muitas outras
coisas que aprendera nessa noite, e em todas as que já vivera durante quase 1000
anos, e foi pensando nelas até chegar ao seu destino. Apenas o esperavam uma
casinha pobre e fria, de duas divisões, em cima da mesa, uma fatia de Bolo-Rei
que lhe ofereceram na pastelaria por ser véspera de Natal, e um cafezinho amargo
que fizera ao acordar, mas estranhamente não se sentia só nem miserável. Sentia-se,
isso sim, em paz e realmente feliz por não ter coisas que lhe desviassem a
atenção da alegria simples do seu Natal. Pegou nos cãezinhos ao colo quando
começou a chuviscar e lá apressou o passo até chegar a casa, para se sentar a
comer o bolo e tocar cavaquinho.
No caminho, passou sempre despercebido,
porque já ninguém acredita no Pai Natal.
MM 10 Dezembro 2011
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