sexta-feira, 30 de abril de 2010

(Sem) Contemplação

Nascera de olhos abertos, crescera a rasgar páginas e quando lera aquela frase, ainda um jovem, parecera-lhe que fora escrita como epígrafe da sua vida: “A beleza está nos olhos de quem vê”. Percebera que para aceder ao sublime bastava olhar em profundidade.

De facto, nunca escutara todos os andamentos de qualquer sinfonia, nunca se encrespara com o acre do limão salgado, nunca perdera os seus dedos nas crinas de um cavalo, nunca se entregara só pelo cheiro de um corpo. E... honestamente... não planeava fazê-lo. Só queria ver em absoluto. Ser, durante toda a sua vida, um esteta da cor, um mestre da luz e da sombra, um filósofo da proporção.

Tornara-se, sem hesitação, pintor.

Viajava pelo mundo à procura de sensações fortes, naturalmente visuais e belas, que refundia a óleo e a carvão. Abstraía-se do resto. E quando as mãos estendidas, o sangue seco, o bolor, o pó da terra, as moscas e as unhas negras se tornavam insuportáveis, recolhia aos seus museus, ao Louvre, ao Hermitage, ao Prado, ao Tate, onde o êxtase era impoluto e servido em salas vazias.

Numa dessas visitas, vira-a. Um manequim articulado, cuidadosamente colocado na posição perfeita. Contemplava a “noite estrelada”, tão absorta que parecia querer tornar-se uma pincelada de Van Gogh. Aproximou-se e, sem entrar no seu campo de visão, perguntou-lhe se não achava sublimes aquelas estrelas, se não era admirável a forma como o holandês conseguia o paradoxo de representar a noite através de efeitos de luz. Ela sorriu um esgar e, sem se virar, respondeu que provavelmente o tipo teria sido astigmático. Depois colocou os seus óculos exageradamente escuros no rosto e prosseguiu a visita, ignorando-o.

Ele seguiu-a à distância pelas salas do museu, pelas ruas de Nova Iorque, até ao Metropolitan, até ao Guggenheim, até ao vestíbulo do hotel, até ao aeroporto, até à próxima cidade, até ao próximo hotel, até ao próximo museu. Partilhavam gostos, percursos, rituais.... e ele sabia-a sua igual.

Queria-a. Queria-a em pleno. Ansiava pela jugular entre os dentes, pelo lento estilhaçar da camada de verniz damar. Era uma questão de tempo porque saberia insinuar-se e era um amante incomum, viciante... Não lhe interessava a mera excitação fisiológica. Interessava-lhe a escultura dos corpos, os contrastes da pele, o olhar que os seus homens e mulheres lhe dirigiam. O olhar de quem entrega o último pedaço de inocência. Ele queria aquele olhar nos olhos dela. Olhos perfeitos, como os dele. Olhos que, afinal, ele não conhecia porque ela protegia-se atrás dos óculos escuros que só tirava quando se perdia nas telas.

Teria prolongado aquela tempestade de areia por mais tempo, esperando que o desejo o garrotasse, que a posse se tornasse urgente, condição de vida... Mas ela cansou-se do jogo. Um dia, sem aviso, sem que anteriormente tivesse indiciado que sabia da sua sombra, voltou-se, caminhou até ele e tirou os óculos negros. O que ele viu naqueles olhos sem cor foi a negação seca, foi desprezo pelo vulgar, foi sarcasmo, foi intangibilidade. E foi o reflexo do seu próprio olhar de adoração e de entrega.

Ele só queria ver a sua beleza espelhada nos únicos olhos que sabia absolutos e iguais aos seus. Mas vira apenas o pouco que era. E foi nesse dia que passou a perceber todas as coisas como ilusões ópticas, espectros de luz, simples radiação electromagnética. Foi nesse dia que esqueceu qual o uso a dar às palhetas e aos pincéis. Foi nesse dia que deixou de olhar. Foi nesse dia que cegou.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Levemente



Se os meus pés soubessem que iam andar tanto, talvez nem aqui estivessem. Neste momento gostavam de estar a caminhar à beira-mar, único sítio onde as ondas apagam as pegadas, levam-nas para o mar e aí as deixam a navegar de forma leve.

Se a minha cabeça soubesse que ia pensar tanto, talvez nem aqui estivesse. Neste momento gostava de estar perdida no céu, único sítio onde as nuvens a conseguem levar para outras paragens leves, como se de tapetes mágicos se tratassem.

Se os meus pulmões soubessem que iam respirar tanto, talvez nem aqui estivessem. Neste momento gostariam de estar cá fora, único sítio de onde podem ver, de uma vez por todas, de onde vem o ar leve que tanto insiste em os visitar.

Mas se os pulmões não fossem tão curiosos, talvez a cabeça não precisasse de pensar tanto e os pés pudessem finalmente parar de andar às voltas.

Talvez um dia o ar leve consiga ir ter a outras paragens sem deixar nenhuma pegada. Talvez um dia as nuvens se misturem com a espuma das ondas e consigam deitar cá para fora tudo o que lá dentro já não quer ficar. Talvez um dia, beira-mar seja igual a beira-céu e tudo fique à beira de ser leve para sempre.

Ritual da Dissolução



I Momentum
Abre a porta da Mente
Liberta os grilhões da Alma
Agora és vulnerável
Oferece o peito à Tempestade que se aproxima

II Momentum
O medo não tem lugar aqui
O amor não tem lugar aqui
A piedade não tem lugar aqui

III Momentum
Observa a Luz que transita
Sente o calor que irradia
Prova o sal das minhas feridas
Estás cada vez mais perto

IV Momentum
O medo não tem lugar aqui
Se sentes medo desiste

V Momentum
O Amor não tem lugar aqui
Se tens amor por ti desiste

VI Momentum
A piedade não tem lugar aqui
Se acreditas que serei piedoso desiste

VII Momentum
Se resististe até aqui já não podes desistir
Eis que chegamos ao Ponto de Não Retorno
Agora começa o Grande Ritual da Dissolução

VIII Momentum
Pão, Carne, Vinho, Sangue
Sémen, Terra, Leite, Mercúrio
No teu peito está a Chave
Para aceder à Câmara Secreta
Onde Ela nos Ilude e Se esconde

IX Momentum
Onde havia calor é agora gélido
Pois eu penetrei nos Seus aposentos
E ela sorriu para Mim
E Ofereceu-se a Mim
E Ligou-se a Mim
E Abandona-te a Ti

X Momentum
Ela dança no Jardim da Eternidade
Ela bebe da Fonte da Imortalidade
Ela controla a Força e a Virtude
Ela é a Luz
Ela saiu da Câmara
E deixou lá o Negro e o Vazio

XI Momentum
Maria chora no seu trono de pedras e espinhos
Ela sabe que a Tempestade chegou aos Céus
E o seu Filho será para sempre impotente
A Guerra pelas Almas dos Mortais está aberta
E uma a uma são colhidas e levadas
Mas o Grande Paraíso está vazio

XII Momentum
Estamos juntos no Jardim da Eternidade
Bebemos todos da Fonte da Imortalidade
A Grande Mãe é a nossa Força e Virtude
Pão, Carne, Vinho, Sangue
Sémen, Terra, Leite, Mercúrio
Não mais vestiremos Carne Mortal

XIII Momentum
É tudo uma Fantasia
Imagens, Formas e Sensações
Tudo Ilusões
Agora dorme
Pois quando acordares estarás completamente só

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Pressão...

Pressão...

Parte I


O som da fechadura a desarmar desperta-me para a realidade. Finalmente cheguei a casa. O piloto automático que todos os dias me reencaminha do trabalho apaga-se, dando lugar ao modo “senta-bebe-esquece”, o meu estado favorito.

De acordo com o BI tenho 51 anos, mas a dor de cabeça que me estala os ossos do crânio insiste em informar que me devo andar a arrastar à séculos pelo peso que sinto sobre mim.
Lembro-me vagamente do que era estar vivo. Lembro-me vagamente do que foi ser feliz e empreendedor. Lembro-me, muito vagamente de me olhar ao espelho e gostar do que via...

Na cozinha, uma tigela vazia no chão lembra-me da companhia da Elisa. Durante 11 anos da minha incipiente vida fui abençoado com a gata mais carinhosa do mundo. Não era aquele tipo de bichano que vive enrolado nos pés do companheiro humano (só fala na palavra ‘dono’ quem nunca teve um gato...) ou que se desfizesse em mimos por tudo e por nada. A Elisa ‘lia-me’ com uma transparência e detalhe que jamais alguma mulher logrou alcançar. Ela sabia confortar-me sem exigir quase nada em troca, sem insistir que eu tinha de mudar, de crescer , de maturar, de ser mais empenhado, menos agressivo, mais homem, menos criança, mais isto, menos aquilo... E era com todo o prazer que eu lhe retribuía o gesto, afagando-a gentilmente no espaço entre as orelhas e o cachaço, deixando-a aninhar-se junto a mim, enquanto víamos televisão pela madrugada.

Frequentemente, a Elisa dava o seu passeio pela rua, saltando da janela da cozinha para o quintal, e daí para o mundo. Ia explorar, descobrir, socializar, andar por ai. Tinha a sua agenda, os seus encontros, a sua vida. Ia e voltava para mim, para o seu companheiro humano. Ia e voltava sempre. Há três meses atrás deixou de voltar. A roda de um carro desenfreado dum daqueles putos asquerosos do tunning, com o seu bonézinho patético e as argolas à pirata nas duas orelhas que separavam o espaço morto e atascado de diarreia onde deveria haver um cérebro e uma alma fez com que a Elisa não voltasse para mim.
Agora, quem me iria acompanhar de madrugada? Sobrava a televisão.

Desde que ela morreu que não durmo, apenas pairo no limbo etílico da minha inconsequente ausência. Arrasto as pálpebras vagarosamente, uma de encontro a outra, mas pelo meio sempre sobra um rasgão de íris e retina que insiste em sobrar para me fustigar com os ásperos fotões do mundo que ruge e brama pela minha alma.

E o que me oferece a televisão? Morte, espectáculo, negligência, sexo fácil e intimidade falsa, porcos e cabras a viver numa quinta, mas que quase parecem pessoas, notícias falseadas, aclamadas, comentadas, esmiuçadas, detalhadas, deturpadas...
Não aguento mais. Pego na caçadeira, calmamente. Carrego os canos...

No andar de baixo instala-se a confusão. Após um sonoro estrondo a bebé da vizinha começou a berrar em pânico e a velhota do 2ª esquerdo corre a ligar para a polícia...


Parte II


Era Primavera. O Sol brilhava quente numa daquelas tardes divinais de Março. É assim que a velhota se lembra do dia em que aquele casal chegou ao prédio... Já passou tanto tempo...20 anos?!?

Lembrava-se como se fosse ontem. “Chegou o casal de engenheiros”, dizia ela. Eram os meninos dos olhos dela, “gente bonita” num prédio enfadonho, fruto da explosão de ganância e mau gosto que espalhou betão pela cidade.

A velhota que sempre morou ali (talvez desde o início dos tempos...), descrevia o casal com acuidade:
“Ela era muito vistosa, uma mulher mexida e desinibida. Por onde passava levantava poeira, parecia que tinha o Diabo no corpo, mas era muito boa rapariga, benza-a Deus... Já ele... parecia que nunca estava cá! Era ‘bom dia - boa noite’ e pouco mais, sempre carrancudo e sisudo, parecia que toda a gente lhe devia e ninguém lhe pagava. Aquilo foi uma questão de tempo, sabe... feitios muito diferentes. Ela, uma moça de genica, ele um homem demasiado recatado, e... aqui entre nós... não devia dar ‘conta do recado’. Não tardou 3 anos que ela o deixou, trocou-o por outro mais à laia dela. Olhe, fez bem a pobre rapariga, por muito que ele fosse bem parecido, não lhe dava a atenção que uma moça daquelas precisa...”


Elsa, é o nome da bebé da vizinha do lado. Uma menina linda, faz hoje 5 mesitos. A Elsa vive num mundo muito limitado, entre o berço, o parque e os braços da mãe. Tem problemas de saúde algo graves, parece que nasceu com uma deficiência cardíaca congénita, além de ser extremamente alérgica.
Uma vez por outra, era ela um bebé de semanas, deparava-se com a Elisa sentada no parapeito da janela a olhar para ela. Era apenas uma questão de minutos ou segundos até a mãe vir a correr a gritar “raio da gata, a andar daqui p’ra fora, que ainda me faz mal à menina”. A mãe da Elsa detestava gatos, ainda mais os siameses. “Dizem que até se viram aos donos e lhes podem cegar d’uma vista”, dizia ela. Isso para uma siamesa de gema, caprichosa e elegante como a Elisa era apenas um desvario de gente pouco interessante.


Toda a gente assoma à janela assim que escuta o lamento das sirenes dos bombeiros e da polícia. Alguns esfregam as mãos de contentamento pelo espectáculo gratuito, outros elaboram fantásticas teorias sobre o acontecido mesmo antes de saber a quem aconteceu o quê. A velhota grita para que sejam mais lestos, pois “certamente foi uma desgraça, ai minha nossa senhora, ai que foi aqui uma grande desgraça...!”


Arrombam a porta.
Espreitam para dentro da sala de onde ventilava fumo. Deparam-se com uma televisão espatifada, um post-it amarelo sobre a mesa e um trilho de roupas que segue até à janela. Da TV pouco resta. No post-it lê-se “A Fine Day To Exit”.

Na janela vê-se um casal de gatos a roçarem-se um no outro, uma siamesa e um gato preto meio escanzelado que parece aliviado...

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Unidade imaginária



Hoje acordei ao som de três pancadas e, dada a violência do eco de cada uma, quase que arriscava a dizer que fizeram pontaria à minha cabeça. Acordei mas não abri os olhos, simplesmente deixei-me ficar. Ao som da primeira pancada lembrei-me das palavras e do som que elas fazem na nossa cabeça quando pensamos nelas. Pensei naquelas palavras que são constituídas por uma parte real e outra imaginária e que por isso são chamadas de complexas. Difícil é decidir qual das partes gosto mais. Será que a parte real é apenas imaginação minha, ou será que a parte imaginária é a verdadeira realidade?

À segunda pancada concluí que o melhor é ter as duas partes, poder sonhar sem nunca deixar de ter os pés na terra, ou então poder ter os pés na terra mas não sentir o chão tal é o poder da imaginação. Gosto desta complexidade… a clareza só torna as coisas desinteressantes.

Palavras e a boa disposição que elas podem trazer…

Ao som da terceira pancada abri os olhos e antes de conseguir dizer a primeira sílaba do dia ouvi uma voz que me disse: “já eras para estar no palco!”.

Por favor, Molière, só mais cinco minutos…

(Já alguma vez sentiram a quarta pancada? Não queiram, dói que se farta!)

Em palco...

domingo, 18 de abril de 2010

Girando...






Deviam fazer uns 5 minutos que ela girava na porta, entrando e saindo, sem conseguir decidir-se: ficar ou ir? O que é que tinha vindo fazer ali, afinal? Era um bâton que vinha comprar? Ou um perfume? Tentou lembrar- se: precisava mesmo de um bâton? De perfumes ela sempre precisava, costumava dizer que não tinha sofisticações, apenas o gosto (que estranha misturança de sentidos!) pelos bons perfumes.

OK, a situação começava a ficar horrível! Uma parte do cérebro colava na sensação de que alguém com certeza viria reclamar 'isto não é um lugar para brincadeiras', a senhora está a atrapalhar o bom andamento da porta giratória, esta a sentir se bem? ela odiava a possibilidade de ser abordada em geral, de ser repreendida fazendo alguma coisa errada em particular,nada era pior do que o olhar duro 'dos outros'.A própria imagem da mais elegante compostura. Sobretudo, não perder jamais a tal compostura. Ainda mais ali, numa terra que nem era a sua. Ridícula a última frase, aquilo era Londres, aquela era a porta giratória da Harrods e ela era ou costumava ser uma mulher perfeitamente adequada para ambientes assim. A não ser pelo fato de que hoje não conseguia parar de girar.

Com certeza, iam pensar que ela tinha algum problema, ia acabar numa camisa de força, se não conseguisse decidir-se: entrar ou sair? Pensou no espanto do marido: 'sim, sim, sua mulher veio hoje à tarde, não, não, é do tipo manso, mas louca total, mas mansa, ah, sim, obrigado, vou já, o senhor disse mansa?

Andou pelas ruas geladas desde de manhã. Nada de galerias hoje, nada de museus, apenas andar, sentir o vento congelar a ponta do nariz. Sempre gostara das margens dos rios, 'go with the flow', dizia a placa anunciando os passeios de barco pelo Tâmisa. O filho sempre reclamava do tempo. Onde tinha ela lido isso, que falar do tempo era coisa tão inglesa? Em Portugal também não se falava do tempo, só das tragédias que o tempo traz.

Era um bâton ou um perfume que tinha vindo comprar? Podia aproveitar, ver se achava qualquer coisa para levar para a filha. E girou na porta, mais uma vez. Caramba, começava a ficar preocupada, e se fosse um sintoma exótico de alguma doença neurológica? 'Doutor, não consigo parar de girar!'

Viajava de férias com o marido férias, modo de dizer, que ela vivia de férias, mas, sim, sobrava tempo, muito tempo. porque não conseguia parar de entrar e sair da bendita porta giratória da Harrods?

Agora tinha certeza, já via o reflexo do fato preto do segurança no vidro. Ai, Meu Deus, ele vai prender me. `I beg your pardom, madam, posso ajudá-la?´ e sem esperar uma resposta, pegou gentilmente no seu braço e resgatou-a enfim da vertigem do carrossel.

Devidamente depositada no passeio que o gelo cinzento fazia brilhar, uma parte dela se indignava. O moço alto olhou para ela ou através dela: não se preocupe, senhora, muitas pessoas da sua idade têm medo destas portas, e ela viu perplexa o seu reflexo nas pupilas escuras a cara simpática de turista, cabelos brancos, óculos modernos, rechonchuda, sim, ombros tímidos, sorriso afável. Posso ajudá-la a chamar um táxi? Ela sentiu ganas de lhe responder torto, idosa??! Medo da porta?? justo naquele momento travesso em que esteve num jogo de sedução com a loucura...Ela, uma mulher sempre tão civilizada?

Deu um pontapé na neve com a ponta da bota e virou-se. Não responder, tinha sido uma vitória afinal...

quinta-feira, 15 de abril de 2010

A um passo de ti... (resposta a um enredo)

Regras para um Enredo:
Fernanda - 30 muitos anos, arquitecta. Vive num espaçoso apartamento perto da praia. É solteira, vive com uma iguana, três hamsters e uma recordação que não consegue apagar há já 14 anos: a do namorado que se suicidou à sua frente.
Paula - 20 e poucos anos, enfermeira num hospital, no serviço se Oncologia. Vive com a mãe e um irmão mais novo. É muito solitária e psicologicamente instável.
Mafalda - 23 anos, operadora de caixa numa grande superfície. É muito bonita. Vive frustrada contando as horas que faltam para ir dormir.
João - 50 e poucos anos, mecânico de automóveis. Três divórcios, dois filhos maiores emigrados na Alemanha. Vive em união de facto com uma cabeleireira com menos de metade da sua idade.



A um passo de ti.



Acto I – O Detective



“Mas isso deve ser fascinante!?”
Sim, por incrível que pareça, essa é uma das frases mais comuns que eu oiço quando conto a alguém da minha profissão. Sou detective acerca de 5 anos. Já me passaram pelos olhos muitos casos estranhos, até bizarros. Já conheci muita gente, demasiada até, que parecem a Madre Teresa de Calcutá perante a família e os amigos, e que vivem uma vida paralela digna de qualquer Borgia. Conheci homens de família simples e banais que no outro lado da cortina eram traficantes de droga, pedófilos, prostitutos ou escravos de uma Dominatrix que os usava como cinzeiros humanos. Pouco havia para me surpreender. Mas a vida guarda sempre uma surpresa para quando menos esperamos...

Há 12 anos atrás, quando me mudei para esta cidade, deixei para trás uma vida da qual não acreditava voltar a encontrar rasto. Mas, por mais que o neguemos, o mundo é um quintal, e com maior ou menor distância, estamos todos ligados.

O dia era isso mesmo, mais um dia, mais uma picadela no cartão de serviço, menos um dia para a reforma. Até que fui chamado pelo director do serviço para me ser dada uma investigação que iria alterar profundamente o rumo da minha vida. Um miúdo de 17 anos tinha aparentemente cometido suicídio de um modo demente e invulgarmente bizarro. O seu corpo foi encontrado num motel de estrada, em cima da cama. Teria fumado crack e, num aparente acto de erotismo suicida, praticou auto-sodomia com uma glock semi-automática, semelhante às que usamos na nossa força policial, acabando por díspar com ela introduzida no recto.
Quando cheguei ao local já a equipa forense tinha feito a maior parte do trabalho. Foi-me entregue um relatório preliminar onde constavam os dados da vítima, as condições em que foi encontrada e que haveria indícios da presença de outra pessoa no cenário do crime.



Acto II – As Vítimas (não somos todos?...)


O nome dele era Artur Dias e vivia com a mãe e a irmã numa pequena casa arrendada num bairro de classe média-baixa. A mãe, Adélia, era divorciada de um mecânico de automóveis conhecido por ter um gostinho particular pelas “facadinhas” no seu percurso matrimonial.
Adélia tornara-se uma mulher distante e perturbadoramente fantasista, que insistia em viver num mundo de ilusão paranóica de que o ex-marido não a tinha abandonado, mas sim morrido, e que por vezes voltava à noite para fazer amor com ela na cama que compraram juntos. Tinha-lhe sido diagnosticada depressão grave e estava em casa com baixa psiquiátrica há mais de 5 anos.
A meia-irmã Paula, filha de outra relação que a mãe tivera mais cedo, era enfermeira no serviço de oncologia do hospital central. Também ela uma personagem curiosa. Muito atraente, embora não fosse exactamente bonita. Tinha um corpo magro e aparentemente débil, cabelo muito escuro e liso, olhos afundados nas órbitas escurecidas por anos de olheiras e angústias. Tinha um sorriso magnífico, discreto e encantador, enternecedor, capaz de fazer qualquer homem fixar-se na sua face que de repente se iluminava com uma doçura fulminante. Era sol de pouca dura, e a sua fragilidade irrompia com frequência à flor da pele, desfazendo o sorriso em milhões de estilhaços amargos. Paula raramente era vista com mais alguém fora do serviço. A excepção era a Mafalda, uma amiga um pouco mais velha que ela, que fazia 23 anos no dia em que a interroguei. Conheciam-se dos tempos de liceu, onde Mafalda era a estrela ‘teen’ que coleccionava namorados como se fossem troféus, e Paula a ‘craniozinho’ que lhe dava explicações em troca de um possível arranjinho com alguém que estivesse disponível para a amar.

Mafalda tinha uma irmã quase da mesma idade, a Irene, que era agora ajudante de salão de cabeleireira. Tinha trabalhado com a irmã como caixa no hipermercado, mas não aguentava a rotina de embalar as compras em silêncio. Era uma mulher muito activa, na boca de alguns a palavra era ‘vadia’ ou ‘leviana’. No entanto havia já quase 2 anos que vivia com o ex-padrasto da Paula, o Dias da oficina. Conheceram-se num bar de engate, onde mais podia um homem de 53 anos feitos arranjar uma miúda de 25 disposta a aturá-lo?



Acto III – Amar/Arma



À medida que procedia com a investigação e desenhava os perfis das pessoas próximas do Artur, ia desvelando alguns factos perturbadores. Fossem boatos ou não, talvez me ajudassem a desenhar o perfil do Artur e compreender como pudera ele ter chegado a um fim tão macabro.
O que constava era que, no verão desse ano que agora entrava no final de Novembro, Artur conhecera o filho mais velho do Dias, o Victor, de 33 anos. Este tal Victor vivia na Alemanha, onde supostamente trabalharia em mecânica de automóveis, tal como o pai. No entanto, o que se diz é que ele vivia de negócios muito negros ligados ao mundo da pedofilia e tráfico de drogas. Um ‘belo rapazinho’, segundo consegui perceber pelo seu já longo cadastro. Ao que tudo indica, Victor e Artur tiveram algum tipo de relação, muito escondida, que não se tratou de simples amizade casual entre meio-irmãos.

Segundo me consegui aperceber das conversas com Paula, Artur tinha uma amiga, uma senhora mais velha, que era uma espécie de segunda mãe (ou mãe de substituição, como dizia a Paula).
Tratava-se de uma arquitecta que vivia num casarão junto à praia. Paula conhecia-a bem, pois via nela um modelo do que se haveria de tornar: rica, excêntrica... e completamente só. Segundo ela, a Sr.ª Arquitecta (era assim que ela a tratava) rodeava-se de objectos de arte requintados, provenientes de todo o mundo e arredores, prestando uma devoção quase doentia aos seus animais de estimação, desde os cães que lhe guardavam a casa, à Iguana que tantos calafrios causavam a Paula. Esta contava que, sempre que Artur andava mais frágil ou desequilibrado ia a correr para casa da Sr.ª Arquitecta e vinha de lá sempre mais calmo e seguro. Mas desde Junho que a tal arquitecta partira numa viagem à volta do mundo, dizia-se que ela sofria de um enorme desgosto que nunca a ultrapassara, mas que ninguém sabia bem o que afinal se tinha passado, pois só à 7 anos é que ela vivia naquela comunidade.

Não foi difícil ligar Victor com Artur. Passados menos de 3 dias de investigação, recebo notícias do laboratório criminal de que foram encontrados vestígios de pele e de sémen no corpo de Artur, e que o DNA destes correspondia ao de Victor. Sem dúvida, este estivera no Motel com Artur no dia da sua morte.
Mais duas semanas de investigação, entrevistas, interrogatórios e referências cruzadas permitiram-me chegar à triste conclusão: Artur de facto suicidara-se. Os seus 17 anos não tinham a maturidade suficiente para admitir perante todos a sua homossexualidade. E para piorar a sua angústia e dor, o seu primeiro e único amante fora o seu meio-irmão. Depois de terem passado parte da noite juntos a fumar crack e envolvidos em actividades sexuais, Victor deixou Artur só no quarto de Motel. Mas esqueceu-se da arma que sempre trazia no bolso do blusão, rotina de ‘dealer’. Ou talvez não se tivesse esquecido, mas teria sido Artur que a surrupiara num instinto pré-programado…
O resto é demasiado doentio e triste para contar. Artur não conseguiu lidar a sua própria identidade sexual e, num acto de desespero ou de delírio tóxico induzido pelo crack, introduzi-o a pistola do irmão-amante no seu corpo e, num simbólico acto final de encenação, disparou...

Esta era a história sórdida que tinha para contar. Mas a minha própria história ainda teria um capítulo cruel para me acrescentar…



Acto IV – (A)mar sem fim


Há 15 anos atrás tive uma relação amorosa extremamente intensa durante um ano com uma professora de Geometria Descritiva do liceu onde tinha aulas. Eu tinha 18 anos e estava a preparar-me para a admissão na faculdade.
Vivemos toda a plenitude do amor proibido, do secreto romantismo dos amantes, da emoção e da luxúria. Mas eu sabia que mais tarde ou mais cedo tudo iria ser descoberto, e que ambos seriamos crucificados pelos nossos actos, perdendo para sempre a honra e ficando eternamente marcados a fogo. Temia mais por ela do que por mim. Então decidi optar pela única saída possível, a única alternativa que me parecia resultar na altura…

Foi no final do verão, em Setembro, nas semanas em que o vento de nortada agita as águas para causar marés vivas. Fomos até à ‘nossa’ praia, num dia que foi o dia mais feliz da minha vida. Acordámos juntos, e juntos passámos todo o dia. Perdi a conta do tempo entre corpos, das horas que nos deixámos ficar nos braços um do outro, que prometemos amor eterno... e impossível...!
No fim da tarde, após o por do Sol disse-lhe que ia nadar. Ela olhou para mim e viu o vazio que me enchia o olhar. “Estás a mentir!”, disse-me. “Queres abandonar-me!”. Eu virei a cara e num acto encenado de desespero respondi-lhe que a ia deixar, a ela e ao mundo. Ela gelou e não se conseguiu mexer, nem dizer uma única palavra. O pânico e o horror tolheram-lhe todos os sentidos, a alma dela submergiu num inferno negro para não voltar a ser vista. Beijei-a uma última vez e entrei mar adentro.
Ela não gritou, não ergueu um braço, nem sequer teve força para chorar. Viu-me desaparecer diante dela, que estacou impotente enquanto contemplava em câmara lenta o meu desaparecimento, enquanto o mar me engolia...

O plano foi perfeito, o desaparecimento progressivo da luz do Sol impediu que ela me visse a nadar por trás da ondulação tremenda que se abatia sobre a costa. E assim morri para ela e o seu mundo, e fui ‘ressuscitar’ noutra costa, com outra vida e outro nome. Fiz o curso de Investigação Criminal e mudei-me para uma nova cidade.

No dia em que terminou a investigação da morte do Artur decidi voltar para casa de avião. Eram 16h45m e encaminhava-me para a zona de embarque, faltava ainda 1 hora e meia para o meu voo. Ouvia-se no sistema de som “O voo KLM 722 proveniente de Reykjavik acaba de aterrar”. “Islândia”, pensei eu em voz alta. Era um dos meus destinos de sonho quando era adolescente. Contava a toda a gente que ainda um dia havia de lá ir.

No lobby daquele imenso aeroporto, por entre uma amálgama de gente de várias nacionalidades, por entre viajantes de todos os cantos do mundo, contra todas as probabilidades... cruzei-me com ela, acabada de chegar de Reykjavik, aquela que eu deixei no areal soprado pelo vento de nortada, aquela que me tinha dado como morto. O reconhecimento mútuo foi imediato. O sobressalto fez-me sorrir nervosamente, tentando obter algo de volta.
Mas o que recebi em troca foi uma expressão gélida de desgosto e infinita dor. Durante os 5 segundos que ela me olhou fixamente senti 14 anos de dor, tristeza e imensa culpa a serem descarregados nos meus olhos. Depois virou-me a cara e abandonou-me, tal como eu o fizera naquele fim de tarde, e entrou pelo mar de gente adentro, e nunca mais a voltei a ver.
Hoje pergunto-me se terei feito o que devia. Questiono-me sobre que direito tinha eu de tomar a decisão que tomei. Mas ficou claro para mim de que amei e fui incondicionalmente amado.

Eu sei que nunca te esquecerei, minha querida… tal como agora sei que tu serias tão mais feliz se me tivesses esquecido…

mudança de estado


Pareceu-me sempre fácil.

As conversas entre nós eram água de nascente, fluíam naturalmente, sempre. Alimentavam-se de memórias, saberes, cumplicidades, viveres mútuos e escorriam, sempre. Umas em queda abrupta. Convertiam-se em farpas de gelo, estalactites de palavras agudas. Rasgavam as minhas certezas, derrubavam os meus sólidos confortos e, ao derreterem, inundavam-me de tristeza e desassossego.

Outras não. Nos momentos em que o calor de dois corpos acolhia tépidas vontades, a sintaxe anatómica do amor expressava-se em frases de entendimento. E as verbalizações de dentro de ti enchiam o ar vazio, para num voo se aninharem aqui, dentro de mim, e escreverem textos de paixão.

As conversas entre nós não se deixavam pensar. Tudo era instinto, impulso, resposta a estímulos que a razão não compreende.
Tacteaste os meus sentidos, lambeste as minhas palavras, sugaste-me as emoções. Levaste a receita dos genuínos amantes, e obrigaste-me a esquecê-la.

Parece-me tão difícil agora. Como um dia cinzento nas ruas lavadas de lama ou uma noite em que o tecto negro da insónia nos esmaga.

Difícil.

E não encontro o caminho de volta.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Neo Crustáceo



Se pudesse escolher não ia. É um daqueles apertos que não passa nem com uma inspiração profunda. Inspirar ainda faz doer mais. Às vezes consigo algum consolo quando suspendo a respiração mas depois é bem pior, o ar que esteve cá fora impaciente para poder entrar ainda faz mais estragos. Penso “respira com cuidado, suavemente, sem presa”, mas cada vez que penso tenho lágrimas a atropelarem-se dentro de mim para conseguirem sair.
E se um raio caísse em cima de mim? O “ir” deixava de ser uma decisão minha, já não era eu que desistia. Ia ser uma espécie de “chegou a hora mas como podem ver, não estou em condições de ir, por isso, não vou!” Mas não, estas coisas não são assim e a bem ou a mal, eu sei que vou. Eu sei.
Posso falar contigo? Tens alguns minutos? Não precisas de dizer nada, escuta, só te peço que escutes.
Está cada vez mais perto, sinto isso. Depois, vai ser sempre assim, sempre esta ansiedade, sempre este aperto e eu… eu nem queria isto. Nem sei porque estou aqui. Posso voltar para casa? Levas-me para casa?
Leva-me para longe deste caranguejo. Lá em casa não o vejo tão nitidamente, mas aqui não sei como fugir dele. E agora? Luto de mim para mim? Ele conhece as minhas fragilidades, sabe onde atacar, sabe onde dói mais.
Leva-me daqui! Não te peço mais nada… Eu sei que não posso fugir, mas não tenho de estar aqui hoje, amanhã volto. Leva-me…

Um dia disseste-me que íamos viver para sempre. Eu concordei contigo, mas agora já não quero. Já não quero viver para sempre. Assim não. Leva-me para casa e deixa-me viver lá a minha não eternidade.

Invenção de uma dor



As pedras não se quebram.
Se ao menos as pedras se rompessem.
O dia apaga-se no meu permanente naufrágio.
Feridas cansadas de se chamarem feridas
No amanhã que devia ser um corpo incompleto.
Dias como vésperas de dias iguais.
Porque todos os dias perco o que um dia perdi.

domingo, 11 de abril de 2010

Aqui desta Janela



Célia era uma mulher simples, bonita dedicada a sua casa e aos filhos.
Dia a dia, o avental e o lenço na cabeça e o chinelo de dedos compunha o visual dela.
À tarde, recebia o marido, toda perfumada e pronta, para servi-lo!

Os passeios eram escassos, vez por outra acontecia uma viagem, para visitar parentes.
Um dia, debruçada na janela, sonhou e como por encanto viu lá fora um mundo diferente.

Quem quiser ver novos horizontes, precisa olhar com o coração aberto e a consciência generosa... Para ver o que é real e além das aparências.
Para ver, não só as coisas do mundo, mas a luz que anima a própria vida.
Para perceber que há algo além do que os cinco sentidos podem captar.
Para ir além de si mesmo...

Ah, é preciso ver com o coração... Para não se enganar!
Para aprender a lição que o amor tem para dar.
Para apaziguar as emoções e se sentir integrado consigo mesmo.
É preciso ver com o coração... Para compreender outro coração!
Para perceber que há outras consciências, sem o corpo físico, também olhando os corações e o que cada um carrega por dentro.
E ela compreende e torce pelo melhor, pois vê o Divino em cada ser.
Sim, é preciso ver com o coração, para além do mundo, lá na casa das estrelas... Para perceber outros corações, que vêm de outros, em suas naves reluzentes, para tocarem outros corações, na mesma luz...


Quando o amor fala, o ego cala se!
E só fica o silêncio da compreensão serena e pacífica.
Quem vê com o coração, sabe...
Mas, é preciso ver com o coração...

Célia acordava...despachava se a correr e seguia para a janela e sonhava...

As lições da sabedoria custam caro!
Ninguém ganha ou perde nada.
Viver não é estar ao sabor da sorte ou do azar.
Viver é muito mais!
Em determinadas datas, os homens comemoram algo e trocam presentes.
Hoje recebi um presente...veio um pássaro e levou os meus sonhos nas suas asas...
Amanhã cá estou eu e esse pássaro volta com os meus sonhos todinhos realizados para mim!

É todo o dia... Sempre! era igual...É a vida.
E só vivendo é que se aprende...

Célia ainda estas a janela?

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...