Nascera de olhos abertos, crescera a rasgar páginas e quando lera aquela frase, ainda um jovem, parecera-lhe que fora escrita como epígrafe da sua vida: “A beleza está nos olhos de quem vê”. Percebera que para aceder ao sublime bastava olhar em profundidade.
De facto, nunca escutara todos os andamentos de qualquer sinfonia, nunca se encrespara com o acre do limão salgado, nunca perdera os seus dedos nas crinas de um cavalo, nunca se entregara só pelo cheiro de um corpo. E... honestamente... não planeava fazê-lo. Só queria ver em absoluto. Ser, durante toda a sua vida, um esteta da cor, um mestre da luz e da sombra, um filósofo da proporção.
Tornara-se, sem hesitação, pintor.
Viajava pelo mundo à procura de sensações fortes, naturalmente visuais e belas, que refundia a óleo e a carvão. Abstraía-se do resto. E quando as mãos estendidas, o sangue seco, o bolor, o pó da terra, as moscas e as unhas negras se tornavam insuportáveis, recolhia aos seus museus, ao Louvre, ao Hermitage, ao Prado, ao Tate, onde o êxtase era impoluto e servido em salas vazias.
Numa dessas visitas, vira-a. Um manequim articulado, cuidadosamente colocado na posição perfeita. Contemplava a “noite estrelada”, tão absorta que parecia querer tornar-se uma pincelada de Van Gogh. Aproximou-se e, sem entrar no seu campo de visão, perguntou-lhe se não achava sublimes aquelas estrelas, se não era admirável a forma como o holandês conseguia o paradoxo de representar a noite através de efeitos de luz. Ela sorriu um esgar e, sem se virar, respondeu que provavelmente o tipo teria sido astigmático. Depois colocou os seus óculos exageradamente escuros no rosto e prosseguiu a visita, ignorando-o.
Ele seguiu-a à distância pelas salas do museu, pelas ruas de Nova Iorque, até ao Metropolitan, até ao Guggenheim, até ao vestíbulo do hotel, até ao aeroporto, até à próxima cidade, até ao próximo hotel, até ao próximo museu. Partilhavam gostos, percursos, rituais.... e ele sabia-a sua igual.
Queria-a. Queria-a em pleno. Ansiava pela jugular entre os dentes, pelo lento estilhaçar da camada de verniz damar. Era uma questão de tempo porque saberia insinuar-se e era um amante incomum, viciante... Não lhe interessava a mera excitação fisiológica. Interessava-lhe a escultura dos corpos, os contrastes da pele, o olhar que os seus homens e mulheres lhe dirigiam. O olhar de quem entrega o último pedaço de inocência. Ele queria aquele olhar nos olhos dela. Olhos perfeitos, como os dele. Olhos que, afinal, ele não conhecia porque ela protegia-se atrás dos óculos escuros que só tirava quando se perdia nas telas.
Teria prolongado aquela tempestade de areia por mais tempo, esperando que o desejo o garrotasse, que a posse se tornasse urgente, condição de vida... Mas ela cansou-se do jogo. Um dia, sem aviso, sem que anteriormente tivesse indiciado que sabia da sua sombra, voltou-se, caminhou até ele e tirou os óculos negros. O que ele viu naqueles olhos sem cor foi a negação seca, foi desprezo pelo vulgar, foi sarcasmo, foi intangibilidade. E foi o reflexo do seu próprio olhar de adoração e de entrega.
Ele só queria ver a sua beleza espelhada nos únicos olhos que sabia absolutos e iguais aos seus. Mas vira apenas o pouco que era. E foi nesse dia que passou a perceber todas as coisas como ilusões ópticas, espectros de luz, simples radiação electromagnética. Foi nesse dia que esqueceu qual o uso a dar às palhetas e aos pincéis. Foi nesse dia que deixou de olhar. Foi nesse dia que cegou.
Excelente domínio do ritmo, uma cadência assombrosa, frase após frase...
ResponderEliminarBem vinda Helena, Troia e toda a Grécia estão a teus pés!
Excelente início, remate em grande. Muito ritmo e domínio de escrita (frases curtas e poderosas). Gostei muito do teu pintor e da tua estreia. Bem-vinda. E venham mais contemplações. :)
ResponderEliminarSão pinceladas exactas, pinceladas de artista! Gostei muito Helena :)
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