sábado, 3 de abril de 2010

Fada do Lar



Estás à espera de quê para te ires embora? Hã?... Não te disse já que não te queria aqui, que me estorvas? Vai! Empecilho... Travas-me a vida toda, tu.
E não chores! Pára com essa lamechice estúpida, que quando te vejo chorar só tenho vontade de te bater. Já sei... sou uma besta, não mereço o ar que respiro, não consegues conceber como alguém pode ser tão cruel... ok, poupa-me à lengalenga. Sabes, pouco me importa aquilo que concebes ou deixas de conceber. Fartei-me dos teus olhos de cão pedinte, da tua figura paquidérmica a virar os dias à espera mais amendoins para tocar a sineta. Da tua apatia, do teu conformismo, da tua pacificidade, dos dias sempre iguais, das tuas falhas, das tuas perguntas, das tuas promessas de que vais mudar e, agora sim, tudo será diferente, tudo será como eu quero. Nunca tiveste nem terás capacidade para me bater com a porta na cara, de me dizer 'ó meu filho da puta, com quem pensas tu que falas?'. O teu servilismo incomoda-me, o teu amor incomoda-me. Não quero um amor assim, preciso... sim, agora vejo isso... durante todos estes anos precisei de quem me pusesse na linha e tu nunca tiveste estofo para isso.
Cresce. Já és mulherzinha, caso não tenhas reparado. Não vives mais debaixo das saias da tua mãe e a vida não é um chá de bonecas.
O que têm as outras que tu não tens? Não é o que elas têm, é o que eu não tenho por ti: tesão. Já não tenho vontade de te morder quando sinto o teu cheiro e a tua pele perdeu a firmeza, já não há luas cheias nela, nem me transformo mais num animal uivando a ela quando soltas o cabelo. Aliás, deixaste de o soltar, agora és uma anã, uma criaturazinha encolhida no canto do quarto com medo, em vez de te agigantares para mim e de me rasgares a garganta com os teus dentes. Estive anos à espera que me rasgasses a garganta com os dentes e as costas com as unhas. Estive anos à espera da minha fada do lar, da minha musa, do meu carrasco, julguei realmente que, com um pouco de crueldade, tu mudasses, porque eu sei que tu só aprendes assim, a mal. Tens falta de pai, é o que eu te digo. Ele não te soube educar para seres senhora de ti e não teres que ouvir merda de tipos como eu. Ele, minha querida, tirou-te o escudo e a espada e lançou-te às feras.
Ainda aí estás? Credo, não aprendes, mulher!.. Podem lançar-te esterco à cara, dizer que têm nojo de ti, deixar-te sozinha por dias que não atinges. Pensas que te engano? Deixa-me rir... Julgas que isto é amor disfarçado de raiva, que no fundo não posso viver sem ti e que mais dia menos dia te telefono a perguntar por onde andas, se queres beber um café. Coitada, tenho pena de ti. Isso não vai acontecer. Não me vou esquecer de ti, já o fiz há anos.
Agora vai. És um empecilho, uma pedra no meu sapato. Não quero olhar mais para a tua cara. Fazes-me perder a fome, tu, com o teu ar de rafeira a mendigar migalhas de afecto.
E não julgues que não sei que estás aí, nas escadas, atrás da porta da rua, a chorar e a pedir para voltares.
Eu sei que estás...
Eu sei que estás...
Consigo ouvir as tuas lágrimas a bater no chão e a despedaçarem-se.
Consigo ouvir-te...
Eu sei que estás aí...

Clara?... Estás aí?...

4 comentários:

  1. excelente!!...tenho pena dele triste... ainda bem que as fadas do lar têm um dia que resolvem ver luz!:)

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  2. Como uma pessoa tem a capacidade de desculpar as suas acções pelas não acções dos outros. Como uma pessoa pensa que se inventar desculpas consegue ter o controlo de tudo. Espero que a Clara esteja muito longe do lado de lá daquela porta da rua e que ele ao abri-la só encontre o vazio que ela deixou... ia fazer-lhe bem. Ia fazer bem aos dois!
    Um texto com asas de fada :)

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  3. quando a alma não mostra sinais de se vergar sob tamanha pressão tende cuidado, pois subitamente ela parte...

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  4. Ele é fascinante. Será um homem que espezinha a mulher para sentir que é superior a alguma coisa? Será um homem no limite das suas forças, a lutar de forma perversa para que a mulher que ama saia da apatia? Será um homem destruído, que não sabe viver sem paixão a reagir em auto-defesa? Uma só personagem, tantas leituras. Muito bom.

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