domingo, 18 de abril de 2010
Girando...
Deviam fazer uns 5 minutos que ela girava na porta, entrando e saindo, sem conseguir decidir-se: ficar ou ir? O que é que tinha vindo fazer ali, afinal? Era um bâton que vinha comprar? Ou um perfume? Tentou lembrar- se: precisava mesmo de um bâton? De perfumes ela sempre precisava, costumava dizer que não tinha sofisticações, apenas o gosto (que estranha misturança de sentidos!) pelos bons perfumes.
OK, a situação começava a ficar horrível! Uma parte do cérebro colava na sensação de que alguém com certeza viria reclamar 'isto não é um lugar para brincadeiras', a senhora está a atrapalhar o bom andamento da porta giratória, esta a sentir se bem? ela odiava a possibilidade de ser abordada em geral, de ser repreendida fazendo alguma coisa errada em particular,nada era pior do que o olhar duro 'dos outros'.A própria imagem da mais elegante compostura. Sobretudo, não perder jamais a tal compostura. Ainda mais ali, numa terra que nem era a sua. Ridícula a última frase, aquilo era Londres, aquela era a porta giratória da Harrods e ela era ou costumava ser uma mulher perfeitamente adequada para ambientes assim. A não ser pelo fato de que hoje não conseguia parar de girar.
Com certeza, iam pensar que ela tinha algum problema, ia acabar numa camisa de força, se não conseguisse decidir-se: entrar ou sair? Pensou no espanto do marido: 'sim, sim, sua mulher veio hoje à tarde, não, não, é do tipo manso, mas louca total, mas mansa, ah, sim, obrigado, vou já, o senhor disse mansa?
Andou pelas ruas geladas desde de manhã. Nada de galerias hoje, nada de museus, apenas andar, sentir o vento congelar a ponta do nariz. Sempre gostara das margens dos rios, 'go with the flow', dizia a placa anunciando os passeios de barco pelo Tâmisa. O filho sempre reclamava do tempo. Onde tinha ela lido isso, que falar do tempo era coisa tão inglesa? Em Portugal também não se falava do tempo, só das tragédias que o tempo traz.
Era um bâton ou um perfume que tinha vindo comprar? Podia aproveitar, ver se achava qualquer coisa para levar para a filha. E girou na porta, mais uma vez. Caramba, começava a ficar preocupada, e se fosse um sintoma exótico de alguma doença neurológica? 'Doutor, não consigo parar de girar!'
Viajava de férias com o marido férias, modo de dizer, que ela vivia de férias, mas, sim, sobrava tempo, muito tempo. porque não conseguia parar de entrar e sair da bendita porta giratória da Harrods?
Agora tinha certeza, já via o reflexo do fato preto do segurança no vidro. Ai, Meu Deus, ele vai prender me. `I beg your pardom, madam, posso ajudá-la?´ e sem esperar uma resposta, pegou gentilmente no seu braço e resgatou-a enfim da vertigem do carrossel.
Devidamente depositada no passeio que o gelo cinzento fazia brilhar, uma parte dela se indignava. O moço alto olhou para ela ou através dela: não se preocupe, senhora, muitas pessoas da sua idade têm medo destas portas, e ela viu perplexa o seu reflexo nas pupilas escuras a cara simpática de turista, cabelos brancos, óculos modernos, rechonchuda, sim, ombros tímidos, sorriso afável. Posso ajudá-la a chamar um táxi? Ela sentiu ganas de lhe responder torto, idosa??! Medo da porta?? justo naquele momento travesso em que esteve num jogo de sedução com a loucura...Ela, uma mulher sempre tão civilizada?
Deu um pontapé na neve com a ponta da bota e virou-se. Não responder, tinha sido uma vitória afinal...
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