Sentada no banco do pendura, a cabeça apoiada para trás, a folhagem densa das árvores na beira da estrada corria-lhe um filme inteiro de reflexos na cara. O céu de Abril, azul azul, pontuado por nuvens a viajarem em sentido contrário. O silêncio. O barulho surdo do motor da carrinha e os pássaros. A paisagem de um verde demasiado intenso, desfocado, a passar-lhe pelos cantos dos olhos.
Não estava ali. Há quanto tempo andavam? O homem não ia parar nunca?
Susana saiu de um semi-transe para deitar um olhar rápido ao condutor: o boné de pala, os óculos escuros, a camisa aberta para um peito seco e envelhecido de onde pende uma corrente grossa. E ela podia jurar que, no bícepe esquerdo, conseguiu descobrir-lhe uma aquelas tatuagens que se fazem na guerra ou na tropa, quando pararam para comer naquele tasco de camionistas à beira da estrada nacional. Ele passa a língua pelos lábios ásperos. Acende um cigarro com o travo dos mata-ratos de taberna e um meio sorriso suspenso, uma euforiazinha contida de chegar a qualquer lado que só ele sabe.
É o primeiro trabalho dela. Sim, pode considerar-se o primeiro, se não contarmos com o Oscar, o marido da tia, que há uns dois ou três meses a apanhou desprevenida na despensa, dobrada pela cintura, a catar da cesta da quinta as batatas para o almoço de sábado. Enquanto as mulheres escamavam o peixe e trocavam desgraças de soleira de porta, ele saiu de manso para se roçar nela. Cravou no chão os tacões das botas de lavoura, enormes e marciais, enquanto lhe segurava as ancas por trás: “Moça... estás boa para a estreia...” Ela endireitou-se, mais em fúria pelo atrevimento que por susto. “Tio, sente-se lá que já lhe chego um copo de vinho.”
Mas à tarde, durante a renda das comadres e a sesta dos homens, não lhe escapou, ao pé do tanque. Virou para ele os olhos de lince enquanto lhe desapertava o cinto: “Se é isto que quer, ao menos faça as coisas bem feitas.”
Três minutos depois, o homem meteu-lhe na mão vinte escudos: ”Prós teus botões.”
Por isso, não se pode dizer que tenha sido bem um trabalho, antes uma compensação pela maçada, uma gorjeta pela estreia auspiciosa. Fada dos dentes, versão quatorze anos.
Por isso, não se pode dizer que tenha sido bem um trabalho, antes uma compensação pela maçada, uma gorjeta pela estreia auspiciosa. Fada dos dentes, versão quatorze anos.
Arnaldo – é esse o nome do condutor — veio recomendado pelo tio Oscar. Já o tinha visto na tasca, junto com os outros homens, em tardes de bagaço e sueca, quando os pensionistas interrompem o silêncio da cartada, atirando vazas à mesa numa fúria muda, como reis que jogam fronteiras à sorte. Arnaldo foi simpático quando ela foi até à taberna, atrás do pai, que encontrou a jogar com o mesmo ar circunspecto dos ministros, acompanhado do cunhado.
— Pai, vá a casa, que o rendeiro está lá para falar consigo.
— Mas não pode esperar, isso?! O homem vem sempre na pior altura, raios o partam!
Oscar convidou-a a ficar e matar a sede da corrida num copo de gasosa enquanto o pai saiu porta fora, num resmungo, esquecendo-a. Arnaldo sacou logo da carteira:
_ É bonita, a garota. Como te chamas, cachopa?
— Pai, vá a casa, que o rendeiro está lá para falar consigo.
— Mas não pode esperar, isso?! O homem vem sempre na pior altura, raios o partam!
Oscar convidou-a a ficar e matar a sede da corrida num copo de gasosa enquanto o pai saiu porta fora, num resmungo, esquecendo-a. Arnaldo sacou logo da carteira:
_ É bonita, a garota. Como te chamas, cachopa?
E pronto, dali ao passeio de carro foi só o tempo do tio se aperceber das potencialidades do negócio e das suas qualidades de artista de circo. Semana atrás de semana, vinha para lhe provar o gosto, para a apanhar quando os outros não viam, não estavam ou não queriam saber, para misturar o cheiro ocre dele com o cheiro a erva dela, para lhe mexer entre as coxas e lhe enterrar os dentes no pescoço, para no fim se surpreender ao vê-la afundar-se nele, sentada no seu colo como quem monta um potro, até ele se transbordar nela num esgar de quem morre.
Para o passeio com Arnaldo não foi às escuras, apesar do Oscar só lhe ter dito no domingo, à saída da missa. “Terça-feira vens ter comigo às Fontaínhas, às duas. Não te preocupes que eu já tratei de tudo com os teus pais.” Mas, nesse dia, ela não apareceu à hora combinada. Levantava da mesa os pratos do almoço quando a mãe lhe lembrou:
— Não devias ir para a horta com o teu tio?
— Já não sou precisa.
— Como não és precisa?!... Fez tanta questão, que precisava muito de ajuda, que tinha as batatas todas para apanhar e ninguém para o trabalho...
— Ó mãe, se lhe digo que o homem me dispensou!...
Nunca imaginou o desaforo de ele lhe aparecer em casa mal as palavras lhe saiam da boca, as botas de capataz a cruzarem o pó do terreno, lá ao fundo, ao fim do campo, a avançar em direção a ela, como uma tempestade que chega devagar para depois varrer tudo de fúria e arrancar telhados.
— Vim buscar a miúda. — disse cuspindo fumo.
A mãe, numa vergonha medrosa:
— Ó Susana, francamente! Quando voltares a gente conversa, rapariga. Leve-a lá Oscar. — E assim que o cunhado virou costas, pegou-lhe com força pelo braço — E tu não te atrevas a chegar antes do sol posto. A ver se o trabalho te verga essa língua mentirosa. Uma vergonha destas... Onde já se viu!...
Odiou-a profundamente, naquele momento. A sua estupidez, a subserviência, a cegueira negligente. Cerrou os punhos num silêncio furioso.
— Julguei que tínhamos um acordo, Susana...
— Qual acordo, seu filho da puta!? E o seu amigo vem de brinde, é?
— O meu amigo vem do que eu te mandar fazer, se não queres que conte aos teus pais que andas a dar a rata ao primeiro que te pague uma gasosa.
— Faça isso, seu cabrão! Faça! Eu levo-o ao fundo comigo. Você queima-se, juro-lhe!
— Tem juízo, rapariga!... Achas que alguém vai acreditar em ti? Mas... quem és tu? — parou a meio do caminho e olhou-a como se olha uma rês de gado. — Basta-me dizer que te apanhei com um desses fedelhos da vila e mandam-te servir para Lisboa em três tempos. Ao passo que, se fizeres o que te digo e estiveres caladinha, sai daqui toda a gente contente: eu, tu e o Arnaldo — a boca dele cheirava a incêndios, a noites escuras, quando se aproximou para lhe dizer ao ouvido — Vais fazendo uma poupançazita jeitosa, vais tendo prós alfinetes, e um dia sais daqui de vez. Não era isso que tanto querias? Sair daqui?... Ir para Lisboa? Pois bem... é trabalhares para isso. Só depende de ti. E depois... é só um passeio de carro. O Arnaldo gostou de ti, achou-te jeitosa e esperta, quer levar-te a passear. Não vem mal ao mundo por isso... ou vem? Não digas que enjeitas assim a sorte de uma tarde bem passada. Leva-te à vila... compra-te um gelado e tudo... Hã?! Diz lá se não é bem melhor que passares a tarde a arrancar batatas...
Portanto, aqui vai ela, cordeiro de sacrifício, bilhete na carreira para Lisboa assentadinho na mente como uma certeza a cumprir o mais breve que possa. Encosta a cabeça para trás no banco e goza a viagem, as sombras da ramagem na cara, como um filme mudo, a passarem por ela com os dedos transparentes. É o seu primeiro trabalho. O primeiro de muitos. Arnaldo há de parar o carro num barranco perto da barragem e ligar o rádio na emissora nacional e passar-lhe a mão pelo joelho e dizer todas as deixas vulgares que ouvirá o resto da vida, a respiração descompassada, o resfolegar de besta ansiosa, “és tão bonita... és tão bonita...”, o suor a correr da testa e as mãos de cavador a conspurcarem tudo à sua passagem. E ela há de ceder e abrir-se num vórtice a crescer para ele, para o engolir, um vórtice no meio dela a sugá-lo como matéria negra. Depois, vai sair daqui direitinha a Lisboa, deixar para trás a sopeira da mãe e o seu sonambulismo estúpido. E vai ter uma modista só para ela. E sair para jantar aos dias de semana, como a mulher do dono da herdade, embrulhada num casaco de peles dentro de um carro preto. E comer carne todos os dias.
— Julguei que tínhamos um acordo, Susana...
— Qual acordo, seu filho da puta!? E o seu amigo vem de brinde, é?
— O meu amigo vem do que eu te mandar fazer, se não queres que conte aos teus pais que andas a dar a rata ao primeiro que te pague uma gasosa.
— Faça isso, seu cabrão! Faça! Eu levo-o ao fundo comigo. Você queima-se, juro-lhe!
— Tem juízo, rapariga!... Achas que alguém vai acreditar em ti? Mas... quem és tu? — parou a meio do caminho e olhou-a como se olha uma rês de gado. — Basta-me dizer que te apanhei com um desses fedelhos da vila e mandam-te servir para Lisboa em três tempos. Ao passo que, se fizeres o que te digo e estiveres caladinha, sai daqui toda a gente contente: eu, tu e o Arnaldo — a boca dele cheirava a incêndios, a noites escuras, quando se aproximou para lhe dizer ao ouvido — Vais fazendo uma poupançazita jeitosa, vais tendo prós alfinetes, e um dia sais daqui de vez. Não era isso que tanto querias? Sair daqui?... Ir para Lisboa? Pois bem... é trabalhares para isso. Só depende de ti. E depois... é só um passeio de carro. O Arnaldo gostou de ti, achou-te jeitosa e esperta, quer levar-te a passear. Não vem mal ao mundo por isso... ou vem? Não digas que enjeitas assim a sorte de uma tarde bem passada. Leva-te à vila... compra-te um gelado e tudo... Hã?! Diz lá se não é bem melhor que passares a tarde a arrancar batatas...
Portanto, aqui vai ela, cordeiro de sacrifício, bilhete na carreira para Lisboa assentadinho na mente como uma certeza a cumprir o mais breve que possa. Encosta a cabeça para trás no banco e goza a viagem, as sombras da ramagem na cara, como um filme mudo, a passarem por ela com os dedos transparentes. É o seu primeiro trabalho. O primeiro de muitos. Arnaldo há de parar o carro num barranco perto da barragem e ligar o rádio na emissora nacional e passar-lhe a mão pelo joelho e dizer todas as deixas vulgares que ouvirá o resto da vida, a respiração descompassada, o resfolegar de besta ansiosa, “és tão bonita... és tão bonita...”, o suor a correr da testa e as mãos de cavador a conspurcarem tudo à sua passagem. E ela há de ceder e abrir-se num vórtice a crescer para ele, para o engolir, um vórtice no meio dela a sugá-lo como matéria negra. Depois, vai sair daqui direitinha a Lisboa, deixar para trás a sopeira da mãe e o seu sonambulismo estúpido. E vai ter uma modista só para ela. E sair para jantar aos dias de semana, como a mulher do dono da herdade, embrulhada num casaco de peles dentro de um carro preto. E comer carne todos os dias.
Já não me lembro quem afirmou que o escritor tem de dominar as palavras. Num texto não pode surgir "montanha" quando o que queremos dizer é "colina" porque senão quando surgirem montanhas não teremos palavras para as descrever. É isso que eu sinto na tua escrita, o controlo total das palavras... cada uma no seu local exacto. Excelente.
ResponderEliminarQuanto às personagens tenho a sensação do contrário. Crias e permites que elas evoluam sozinhas e fujam ao teu controlo, não é?
olá sandra. Muito obrigada pelas tuas palavras. Tive bastantes dúvidas em pôr aqui este texto, justamente por ser um registo que não conhecia em mim. Assustei-me um bocado quando o reli, no final. Está na gaveta há uns meses, se calhar por causa dessa falta de controlo sobre as personagens. Valeu pelo feedback. Abraço.
ResponderEliminar...e se eu te disser que tens aqui um bilhete para uma carreira como escritora?...
ResponderEliminarTive o enorme privilégio de ler este texto, não editado (...) em primeira mão e, assim que terminava a última linha lembrei-me de Jorge Amado, inevitável, foi como se tivesse assistido ao piloto de uma novela, mas atenção, ao contrário do que isso hoje em dia possa soar, estou a elogiar!
Proponho-te que um dia nos provoques para escrevermos a sequela deste texto, um desafio "à moda antiga", que me dizes?
Já tinha saudades de ler-te por aqui :)
ResponderEliminarAinda bem que saiu da gaveta, porque é daqueles textos em que chegas ao fim completamente "woow", corta a respiração...
Parabéns Bicho d`Ouvido!
Muito obrigada, Nuno e Inês. :)
ResponderEliminarQuanto à tua proposta, Nuno, acho que está na altura de mais um desafio, sim. Não sei é se aquele que sugeres será boa ideia. Mas, por acaso, tenho alguma curiosidade em saber que destino darias tu à Susana... hehehe. :D
Senti o mesmo: "woooww!!"...
ResponderEliminarSó me assola uma inquietação: que um tema destes, apenas por ser por via de um texto tão bem escrito, provoque intensa excitação física... parece que nos torna a todos pessoas perigosas, mesmo sabendo o leitor que foi levado a essa excitação antes de se aperceber do contexto... mea culpa, serei ainda + amante do socioconstrutivismo positivo do que da boa literatura, mas adoraria ver o talento das pessoas criar bolas gigantes de felicidade que mal cabem no peito (ou o que fôr), mas não tão bom e tão destrutivo que o torne ainda mais eficaz! ...é que eu senti-me "biológica-óbviamente" excitada com um dos temas que "humana-visceralmente" mais me repulsa, antes de o saber e depois, já estava!... quase me senti um pouco abusada, parece até essa a intenção (ou então é do xixi que me está a dar!! ;)
Pode parecer um comentário absurdo mas deixo uma "história": quando estudei animação (área hiper-mega-trabalhosa e que só se faz por amor à camisola, pq se anda sempre na penúria), conheci vários realizadores; numa área assim, os projectos de filmes são projectos de vida. Entre várias histórias semelhantes, um deles contou que, quando o seu filme que durou 10 intensos e muito pessoais anos a fazer foi para as salas, as pessoas saíam dele tristes, deprimidas. Ele sentiu que não tinha valido a pena. Mas "cada macaco..."
É só uma opinião, espero que apesar de tudo, te caia bem. Muitos parabéns! ;)
Muito obrigada, Ana.
ResponderEliminarÉ este estilo de comentários que aqui se quer: construtivos e fundados na sensibilidade.
O tema é cinzento, a paleta do crime nunca é feita só de pretos e brancos. A mim o assunto também me perturba – se calhar foi por isso que escrevi sobre ele... e que me assustei no fim, com o resultado porque, como disse a Sandra, as personagens começaram a fugir um bocado ao meu controlo, tomaram vida própria.
Acho que não quis fazer dela uma vítima. Ela é uma sobrevivente que nutre um misto de ódio e de Síndrome de Estocolmo pelo tipo que a fez passar por aquilo. E que tem uma visão bem pragmática da vida: se ela só lhe dá limões em vez de laranjas, faz limonada para vender aos sedentos.
Obrigada por vires aqui, leres e comentares. :)
...hum, desconfio desse pessoal, os pragmáticos... :D Mas se realmente ela o conseguir, então não quero ser com'a Barbie, quero ser como ela, q'eu cá por mim, confundo-me toda com os limões e as laranjas!! ;)
ResponderEliminare es tão bonita ...tu es tão bonita...Miuda gira Cristina,pq quem escreve assim como tu tem um dom!!:))
ResponderEliminarCada vez que leio um texto teu a minha admiração pelo que escreves e, especialmente pela forma como o fazes aumenta... Mais um texto brilhante... São estas coisas que me fazem sentir grato por integrar este grupo fantástico.
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