Formato "post-it no espelho do quarto"
Lâmia, queridinha....
Passei por cá para garantir que tudo corria de feição com o pequeno e dar uma ajuda se fosse preciso.
Tomei a liberdade de levá-lo para casa do seu tio Hades. Não esperes acordada. Já sabes que quando aquele galhofeiro começa a brincar com as visitas é uma eternidade. Aproveita, tira os olhos das órbitas e descansa. Precisas de um sono de beleza. Ultimamente andas com um aspecto horrível, monstruoso.
Já agora... Se o meu marido, por acaso, passar por aí como de costume, diz-lhe que traga meia dúzia de ovos, um ramo de salsa e beladonas frescas. O meu stock acabou hoje. Não consigo recusar nada às crianças e os teus filhotes, realmente, adoram frutos silvestres.
Ta-ta
Hera
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
terça-feira, 29 de outubro de 2013
Desafio: "Recado Hell-o-ween"
Formato "post-it na porta do quarto do filho mais novo"
Meu pequenino,
Da tua mamã do coração,
Lâmia
Meu pequenino,
Desculpa mas tive de sair antes de acordares.
Se acordares, tens o pequeno-almoço preparado em cima da mesa da cozinha. Se depois de comeres ainda tiveres pulso para isso, tens a tua camisola dos ursinhos engomada dentro do roupeiro. Mas não te esqueças de tomar banho (como o esquentador está avariado, deixei o secador dentro da banheira para aqueceres a água).
Se tiveres tempo, podias começar a amolar e a polir o faqueiro? O papá ontem queixou-se que a faca preferída dele estripa cada vez com mais dificuldade.
Enfim, se quando voltar ainda estiveres aí, corre para o meu abracinho, tenho muitas saudades de ouvir estalar... um beijinho meu em ti.
Lâmia
sábado, 21 de setembro de 2013
Sarabande
A relva sentiu o peso de
um pé, tenta reagir com as plantas de ervas esmagadas pelo calcanhar, mas
sucumbiu à quietude do pé, que parece que tinha chegado para ficar.
Do outro lado, mais à
esquerda de quem segue em frente, uns queixumes semelhantes. Onde estariam os
insectos que a roíam quando os grilos se espantavam e os gafanhotos se
imobilizavam?
Dava jeito ter agora uma
formiga, um colitídeo qualquer ou mesmo uma melga que picasse um dos pés
(preferencialmente os dois).
Algumas folhas sufocavam e
tentavam sair debaixo daqueles pesos inamovíveis, pés gigantes, humanos
certamente.
Sufocavam e
silenciosamente ansiavam para que os pés andassem, corressem preferencialmente,
será que os humanos não sabiam que um dos maiores prazeres, era correrem
descalços pela relva?
(Falando com os botões desapertados) porque os fechos
magoam a
imaginação mais surpreendente.
terça-feira, 4 de junho de 2013
Pobre Edward O. (versão integral)
... no meio da travessia do deserto, donde pouco ou nada brota por estes dias, revisito um dos contos que mais prazer me deu escrever, agora em versão integral. 3-em-1, não é uma promoção maravilhosa?
from the heart,
D.Ü.
Parte I: Edward O.
Edward O. 39 anos.
Vive sozinho num apartamento exíguo alugado na parte mais sombria da cidade. Conhece a senhoria, uma velha senhora que mimetiza a simpática avozinha que nos presenteia com histórias de tamanho infindável acerca de pessoas que ela conhecera e que já há muito são pasto para vermes, algures por entre mármore e ciprestes, haja paciência para a aturar…
Da sua janela vê um muro de alvenaria, antigo e decadente, como a sua alma. Edward O. tem uma vida discreta, da sua habitação para o escritório de contabilidade onde assenta meticulosamente as entradas e saídas de materiais e dinheiros da mais afamada sapataria da cidade. Edward O. regista tudo, meticulosamente, grava a azul metileno o papel amarelecido pelo tempo, velho e gasto, como a sua alma. Bem, quase tudo. Edward O. recusa-se a registar a entrada e saída de acompanhantes que satisfazem o vício do patrão. Não, estas despesas não são declaráveis para fins fiscais, oh não. Além de que a mulher do patrão o matava, sim a ele. Ela acredita que o seu homem é um santo e vê Edward O. como um verme, pequeno e mesquinho, que se alimenta dos detritos rejeitados pelo seu excelso marido.
Edward O. nada tem para contar, a vida escapou-lhe por entre os dedos, secos e ásperos, como a sua alma. Mas Edward O. hoje teve um sonho…
Cena 3: Mensagem
“Não te movas Caminhante. Não ouses saber quem sou nem porque te visito. Deixa fluir a narcolepsia que te enrola o sentir, pois nada há para sentir nas minhas palavras, apenas a mensagem interessa.”
Edward O. era uma erva sacudida pelo vento da tempestade, mantinha-se agarrado a si mesmo, mas ciente de que nada era perante tal força imensa.
“Em três dias a tua vida termina. Despirás tuas vestes e seguirás viagem na escura estrada. Oh pobre Edward, aproveita, aproveita bem estes 3 dias, pois são os teus derradeiros momentos na Terra.”
Edward O. não estava só consigo mesmo e os seus sonhos. Perante ele, abrira-se uma brecha nas muralhas do infinito e Deus era o farol que incendiava a noite com rasgos de âmbar e carmim. Logo a ele, a quem a vida escapara por entre os dedos, secos e ásperos, como a sua alma, fora desvelado o Apocalipse, os dias do fim…
A hora antes da aurora foi tão extensa como as histórias que a sua senhoria lhe contava, sempre que o apanhava a entrar ou a sair de casa. Mas valeu-lhe sentir na baça retina o primeiro brilho do dealbar. E à medida que o fulgor aumentava, renascia algo em Edward O. Algo vibrante e inquieto. Era vida, vida que lhe escapava e agora pulsava forte…
Cena 4: Os dias do fim
Dia 1.
Edward O. regista tudo, meticulosamente, grava a azul metileno o papel amarelecido pelo tempo, velho e gasto, como a rotina que ainda o prende.
Regista tudo, a entrada e saída da menina do dia, que vem alegrar a manhã do patrão. Aponta a despesa no seu livro sob o tema ‘Outros Serviços – solicitação de prostitutas’. Pousa o seu livro e redige a sua carta de demissão. Cerra-a num envelope cinza claro e dirige-se até à secretária do patrão. Pousa o envelope sem dizer uma única palavra ao chefe que, ainda a apertar o cinto, se sobressalta com a sua presença, enquanto tenta disfarçar ao dizer para a jovem que o acompanhava “As botas de veludo estão muito na moda este ano, a senhora vai-se sentir magnífica com elas”. A jovem desfazia um pequeno riso enquanto olhava parva para Edward O. Este sorriu de volta para ela. Curioso, Edward O. estava certo de que haveriam passado anos a fio desde que sorrira pela última vez…
Confiante e altivo, segue porta fora, passa pelo salão da sapataria, cumprimenta os clientes e empregados uma última vez, com uma vénia ligeira e um ‘até sempre meus caros’. Caminha com a aura excelsa de quem se despediu de um verme pequeno e mesquinho. Ao sair esbarra-se com a mulher do Patrão. Pede-lhe perdão. Primeiro pelo encontrão. Depois, pelos anos de ocultação e vergonha a que se submeteu. Atónita, esta deixa cair o seu caniche de colo e, mais violentamente, a si mesma, esparramada na carpete de feltro da sapataria que erguera como altar a seu divino esposo.
Edward O. 39 anos. Desempregado. Vive o seu primeiro dia na cidade, debaixo do Sol. Livre do cheiro a papel amarelecido pelo tempo e do travo a azul metileno. Azul agora, só o do céu que o cobria.
Dia 2.
O tempo voa e com ele levanta as folhas das árvores e a poeira dos anos perdidos. A água que agora te molha não é para beber, são as lágrimas que nunca derramaste, a saliva dos beijos que ficaram presos nos teus lábios, o suor de um dia de Verão passado no campo a apascentar ovelhas, a chuva que te haveria de molhar, enquanto rodopiavas a mulher dos teus sonhos, agarrada a teus braços, a suspirar por ti, enquanto carregava teu fruto em seu ventre.
Hoje vais observar as crianças no jardim, puras e doces como as camomilas que perfumam o ar. Tu és uma delas, estás mesmo ali, de mão dada ao mais pequeno, para o ajudar a subir ao banco de pedra, a gritar que te passem a bola para marcares golo, a ver no carreiro as formigas a carregarem sementes com cinco vezes o seu tamanho, a sujares os calções de lama sem te lembrares do ralhete que irás receber ao chegar a casa…
Irás dormir exausto de tanta excitação e brincadeira. E este será o dia mais feliz da tua vida.
Dia 3.
Edward O. acorda pouco após o nascer do Sol, mas hoje, não tem pressa que o dia comece, pois quanto mais depressa o inicie, mas depressa se encaminha para o seu fim…
Quando finalmente se resigna e se apronta para abandonar o leito, sente no coração uma pontada de dor forte, como se fosse o gume de uma faca a penetrar lento em seu peito. É a ansiedade que se apodera de ti, oh pobre Edward O.
Vestiu o seu melhor fato, a mais cara gravata italiana de seda e o par de sapatos de couro de búfalo que estava a guardar para o seu próprio funeral. Hoje parecia-lhe ser o dia indicado para os usar. Colocou o seu chapéu e pegou no sobretudo. Deixou as chaves em cima do aparador da entrada. Saiu e fechou a porta, sem olhar para trás.
Ao passar pelo átrio encontrou a senhoria, mas antes que esta pudesse abrir a boca para falar, Edward O. espetou a sua mão aberta em frente dela e disse com calma e suavidade: “Minha cara senhora, deixo-lhe o meu profundo agradecimento pelos anos à sua guarda, mas hoje saio desta porta pela última vez, para não mais voltar. Por favor, trate de que venha alguém mais sorridente e falador para ocupar o lugar triste e oco que ora abandono. Bem-haja, cara senhora, bem-haja.” E saiu pela porta da rua, passando pelo beco em direcção à avenida.
Edward O. passou o dia a caminhar pela cidade, até sair para além dela, caminhou até sentir a lama a cobrir os seus sapatos de pele de Búfalo, foi andando e largou a gravata de seda sob as roseiras bravas e ofereceu o sobretudo a uma velha árvore decadente que parecia gritar por um final aconchego.
Agora estava perante o grande rio, largo e grandioso. Aproximou-se das margens saibrosas e fez planar sobre as águas turvas um par de seixos mais aplastados, tendo o mais ligeiro saltitado quase até à outra margem, do outro lado, para além do seu conhecimento.
O dia chegava ao fim e no peito de Edward O. restava agora a sensação de plenitude e autoconhecimento. Ele soubera finalmente quem era, o que poderia ter sido e o que decidira ser. No que se tornara. Edward O. via-se a si mesmo reflectido nas águas paradas do rio e nada mais lhe trazia angústia ou arrependimento. Aceitara o seu destino.
O Sol cumpria mais uma jornada e puxava agora atrás de si o manto de trevas estreladas que para alguns seria apenas mais uma noite. Em 5 segundos estava terminado o terceiro dia que o Anjo anunciara.
5… 4…
Edward O. suspira de alívio e sorri. Está pronto.
3… 2…
Nada teme. Abraça a morte com a entrega de quem reconhece a própria Mãe.
A última luz que brilha no seu olhar é profunda e infinita. Como a sua alma.
from the heart,
D.Ü.
Pobre Edward O.
(Parte I de III)
Parte I: Edward O.
Edward O. 39 anos.
Vive sozinho num apartamento exíguo alugado na parte mais sombria da cidade. Conhece a senhoria, uma velha senhora que mimetiza a simpática avozinha que nos presenteia com histórias de tamanho infindável acerca de pessoas que ela conhecera e que já há muito são pasto para vermes, algures por entre mármore e ciprestes, haja paciência para a aturar…
Da sua janela vê um muro de alvenaria, antigo e decadente, como a sua alma. Edward O. tem uma vida discreta, da sua habitação para o escritório de contabilidade onde assenta meticulosamente as entradas e saídas de materiais e dinheiros da mais afamada sapataria da cidade. Edward O. regista tudo, meticulosamente, grava a azul metileno o papel amarelecido pelo tempo, velho e gasto, como a sua alma. Bem, quase tudo. Edward O. recusa-se a registar a entrada e saída de acompanhantes que satisfazem o vício do patrão. Não, estas despesas não são declaráveis para fins fiscais, oh não. Além de que a mulher do patrão o matava, sim a ele. Ela acredita que o seu homem é um santo e vê Edward O. como um verme, pequeno e mesquinho, que se alimenta dos detritos rejeitados pelo seu excelso marido.
Edward O. nada tem para contar, a vida escapou-lhe por entre os dedos, secos e ásperos, como a sua alma. Mas Edward O. hoje teve um sonho…
Pobre Edward O.
(Parte II de III)
Parte
II: O Anjo Negro
Cena 1: Crepúsculo
A tarde ia avançada e Hélios beijava a linha do horizonte pela última vez, era chegada a hora de Silene se erguer sob os mortais que dentro de algumas horas se iriam recolher nos braços de Morfeu. Mas Hades espreitava, ansioso e faminto… A hora da ilusão descia sobre nós…
Cena 2: (Não-)existência
O caminho é rigorosamente sempre o mesmo: das traseiras para a ruela, da ruela para a avenida, da avenida para o beco. Mão no bolso. Chave à porta. Átrio, escadas, nova porta. Nova chave. Casa.
Despido o sobretudo e pousado o chapéu, encaminha-se para a bacia e lava as mãos e o rosto. Aquece um pouco de água para o chá e passa a manteiga no pouco de pão que ainda lhe resta da manhã. Sentado no cadeirão, lê mais alguns capítulos d’Os Irmãos Karamazov de Dostoievsky: "Com a força que sinto em mim, creio-me capaz de suportar todos os sofrimentos, contanto que me possa dizer a cada instante: "Eu existo". Entre tormentos, crispado pela tortura, mas existo! Exposto ao pelourinho, eu existo apesar de tudo, vejo o sol e, se não o vejo, sei que está lá. E saber isso já é toda a vida."
Pousados os óculos e exalado um profundo suspiro de consternação, Edward O. decide tomar a noite como berço e aninhar-se entre memórias, escurecidas e gastas, como sua alma. E era a sua alma que mais o fazia temer por tudo o que havia sido, mas mais, muito mais, pelo que não havia sido. Em breves instantes viria o abismo, a profundeza do esquecimento, o sono que tolhe o juízo do inquiridor. Dorme pobre Edward, que a noite escura te ilumine…
Edward O. Só consigo mesmo e os seus sonhos. Só entre as muralhas do infinito e perante Deus. Só. Mas por pouco tempo, pois esta noite, Edward O. era visitado por um Anjo Negro errante…
Cena 1: Crepúsculo
A tarde ia avançada e Hélios beijava a linha do horizonte pela última vez, era chegada a hora de Silene se erguer sob os mortais que dentro de algumas horas se iriam recolher nos braços de Morfeu. Mas Hades espreitava, ansioso e faminto… A hora da ilusão descia sobre nós…
Cena 2: (Não-)existência
O caminho é rigorosamente sempre o mesmo: das traseiras para a ruela, da ruela para a avenida, da avenida para o beco. Mão no bolso. Chave à porta. Átrio, escadas, nova porta. Nova chave. Casa.
Despido o sobretudo e pousado o chapéu, encaminha-se para a bacia e lava as mãos e o rosto. Aquece um pouco de água para o chá e passa a manteiga no pouco de pão que ainda lhe resta da manhã. Sentado no cadeirão, lê mais alguns capítulos d’Os Irmãos Karamazov de Dostoievsky: "Com a força que sinto em mim, creio-me capaz de suportar todos os sofrimentos, contanto que me possa dizer a cada instante: "Eu existo". Entre tormentos, crispado pela tortura, mas existo! Exposto ao pelourinho, eu existo apesar de tudo, vejo o sol e, se não o vejo, sei que está lá. E saber isso já é toda a vida."
Pousados os óculos e exalado um profundo suspiro de consternação, Edward O. decide tomar a noite como berço e aninhar-se entre memórias, escurecidas e gastas, como sua alma. E era a sua alma que mais o fazia temer por tudo o que havia sido, mas mais, muito mais, pelo que não havia sido. Em breves instantes viria o abismo, a profundeza do esquecimento, o sono que tolhe o juízo do inquiridor. Dorme pobre Edward, que a noite escura te ilumine…
Edward O. Só consigo mesmo e os seus sonhos. Só entre as muralhas do infinito e perante Deus. Só. Mas por pouco tempo, pois esta noite, Edward O. era visitado por um Anjo Negro errante…
Cena 3: Mensagem
“Não te movas Caminhante. Não ouses saber quem sou nem porque te visito. Deixa fluir a narcolepsia que te enrola o sentir, pois nada há para sentir nas minhas palavras, apenas a mensagem interessa.”
Edward O. era uma erva sacudida pelo vento da tempestade, mantinha-se agarrado a si mesmo, mas ciente de que nada era perante tal força imensa.
“Em três dias a tua vida termina. Despirás tuas vestes e seguirás viagem na escura estrada. Oh pobre Edward, aproveita, aproveita bem estes 3 dias, pois são os teus derradeiros momentos na Terra.”
Edward O. não estava só consigo mesmo e os seus sonhos. Perante ele, abrira-se uma brecha nas muralhas do infinito e Deus era o farol que incendiava a noite com rasgos de âmbar e carmim. Logo a ele, a quem a vida escapara por entre os dedos, secos e ásperos, como a sua alma, fora desvelado o Apocalipse, os dias do fim…
A hora antes da aurora foi tão extensa como as histórias que a sua senhoria lhe contava, sempre que o apanhava a entrar ou a sair de casa. Mas valeu-lhe sentir na baça retina o primeiro brilho do dealbar. E à medida que o fulgor aumentava, renascia algo em Edward O. Algo vibrante e inquieto. Era vida, vida que lhe escapava e agora pulsava forte…
Cena 4: Os dias do fim
Dia 1.
Edward O. regista tudo, meticulosamente, grava a azul metileno o papel amarelecido pelo tempo, velho e gasto, como a rotina que ainda o prende.
Regista tudo, a entrada e saída da menina do dia, que vem alegrar a manhã do patrão. Aponta a despesa no seu livro sob o tema ‘Outros Serviços – solicitação de prostitutas’. Pousa o seu livro e redige a sua carta de demissão. Cerra-a num envelope cinza claro e dirige-se até à secretária do patrão. Pousa o envelope sem dizer uma única palavra ao chefe que, ainda a apertar o cinto, se sobressalta com a sua presença, enquanto tenta disfarçar ao dizer para a jovem que o acompanhava “As botas de veludo estão muito na moda este ano, a senhora vai-se sentir magnífica com elas”. A jovem desfazia um pequeno riso enquanto olhava parva para Edward O. Este sorriu de volta para ela. Curioso, Edward O. estava certo de que haveriam passado anos a fio desde que sorrira pela última vez…
Confiante e altivo, segue porta fora, passa pelo salão da sapataria, cumprimenta os clientes e empregados uma última vez, com uma vénia ligeira e um ‘até sempre meus caros’. Caminha com a aura excelsa de quem se despediu de um verme pequeno e mesquinho. Ao sair esbarra-se com a mulher do Patrão. Pede-lhe perdão. Primeiro pelo encontrão. Depois, pelos anos de ocultação e vergonha a que se submeteu. Atónita, esta deixa cair o seu caniche de colo e, mais violentamente, a si mesma, esparramada na carpete de feltro da sapataria que erguera como altar a seu divino esposo.
Edward O. 39 anos. Desempregado. Vive o seu primeiro dia na cidade, debaixo do Sol. Livre do cheiro a papel amarelecido pelo tempo e do travo a azul metileno. Azul agora, só o do céu que o cobria.
Dia 2.
O tempo voa e com ele levanta as folhas das árvores e a poeira dos anos perdidos. A água que agora te molha não é para beber, são as lágrimas que nunca derramaste, a saliva dos beijos que ficaram presos nos teus lábios, o suor de um dia de Verão passado no campo a apascentar ovelhas, a chuva que te haveria de molhar, enquanto rodopiavas a mulher dos teus sonhos, agarrada a teus braços, a suspirar por ti, enquanto carregava teu fruto em seu ventre.
Hoje vais observar as crianças no jardim, puras e doces como as camomilas que perfumam o ar. Tu és uma delas, estás mesmo ali, de mão dada ao mais pequeno, para o ajudar a subir ao banco de pedra, a gritar que te passem a bola para marcares golo, a ver no carreiro as formigas a carregarem sementes com cinco vezes o seu tamanho, a sujares os calções de lama sem te lembrares do ralhete que irás receber ao chegar a casa…
Irás dormir exausto de tanta excitação e brincadeira. E este será o dia mais feliz da tua vida.
Dia 3.
Edward O. acorda pouco após o nascer do Sol, mas hoje, não tem pressa que o dia comece, pois quanto mais depressa o inicie, mas depressa se encaminha para o seu fim…
Quando finalmente se resigna e se apronta para abandonar o leito, sente no coração uma pontada de dor forte, como se fosse o gume de uma faca a penetrar lento em seu peito. É a ansiedade que se apodera de ti, oh pobre Edward O.
Vestiu o seu melhor fato, a mais cara gravata italiana de seda e o par de sapatos de couro de búfalo que estava a guardar para o seu próprio funeral. Hoje parecia-lhe ser o dia indicado para os usar. Colocou o seu chapéu e pegou no sobretudo. Deixou as chaves em cima do aparador da entrada. Saiu e fechou a porta, sem olhar para trás.
Ao passar pelo átrio encontrou a senhoria, mas antes que esta pudesse abrir a boca para falar, Edward O. espetou a sua mão aberta em frente dela e disse com calma e suavidade: “Minha cara senhora, deixo-lhe o meu profundo agradecimento pelos anos à sua guarda, mas hoje saio desta porta pela última vez, para não mais voltar. Por favor, trate de que venha alguém mais sorridente e falador para ocupar o lugar triste e oco que ora abandono. Bem-haja, cara senhora, bem-haja.” E saiu pela porta da rua, passando pelo beco em direcção à avenida.
Edward O. passou o dia a caminhar pela cidade, até sair para além dela, caminhou até sentir a lama a cobrir os seus sapatos de pele de Búfalo, foi andando e largou a gravata de seda sob as roseiras bravas e ofereceu o sobretudo a uma velha árvore decadente que parecia gritar por um final aconchego.
Agora estava perante o grande rio, largo e grandioso. Aproximou-se das margens saibrosas e fez planar sobre as águas turvas um par de seixos mais aplastados, tendo o mais ligeiro saltitado quase até à outra margem, do outro lado, para além do seu conhecimento.
O dia chegava ao fim e no peito de Edward O. restava agora a sensação de plenitude e autoconhecimento. Ele soubera finalmente quem era, o que poderia ter sido e o que decidira ser. No que se tornara. Edward O. via-se a si mesmo reflectido nas águas paradas do rio e nada mais lhe trazia angústia ou arrependimento. Aceitara o seu destino.
O Sol cumpria mais uma jornada e puxava agora atrás de si o manto de trevas estreladas que para alguns seria apenas mais uma noite. Em 5 segundos estava terminado o terceiro dia que o Anjo anunciara.
5… 4…
Edward O. suspira de alívio e sorri. Está pronto.
3… 2…
Nada teme. Abraça a morte com a entrega de quem reconhece a própria Mãe.
A última luz que brilha no seu olhar é profunda e infinita. Como a sua alma.
Pobre Edward O.
(Parte III de III)
Parte
III: A Cidade Esfomeada
Cena
1. Onde estás Edward O.?
Dia
após dia após dia. Edward O. acordava cansado de vazio, podia confirmá-lo
sempre que olhava ao espelho. Nada olhava de volta, a não ser um profundo e
negro buraco, onde um dia esteve sua alma. Não havia surpresas, excitação ou
alegria. Edward O. era um escravo da rotina, retido dentro de si mesmo,
esquecido do ser que um dia nasceu de sua mãe, esquecido pelo mundo, perdido
dentro de pesados maços de livros e processos.
Onde
estás tu, Edward, onde te escondeste? Ainda te posso ver ai, por de trás esse
baço olhar, escondido pelos milhares de anos que te pesam nesses ombros
descaídos, com as palavras presas nos lábios hirtos de pesar, agarrado a nada,
esse nada que te enche o peito e te sufoca, dia após dia após dia.
Cena
2. A mancha de tinta
“Rapaz,
tens aqui as facturas e os balancetes do primeiro trimestre. Confirma tudo, eu
vou ali receber uma sobrinha que veio de fora, não quero ser interrompido,
compreendes?”
Lá
dentro, no salão, uma mãe trás o seu menino, talvez com 6 ou 7 anos, para
comprar uns sapatos de cerimónia. Ela é austera como o seu negro traje de
viúva, rígida como uma raiz de cerejeira, de olhar furtivo e aterrador.
Segue
com impaciência os movimentos do petiz, o seu braço tenso como uma mola, pronto
a disparar um tabefe à primeira desculpa. Eis que surge o primeiro, mal o
infeliz gaiato ousa coçar o nariz… Este não chora, grita ou sequer soluça.
Apenas se encolhe e olha para o chão. Olha para os seus pés e suspira.
Edward
O. vê tudo, regista cada momento daquele triste quadro, toma nota, em sua
mente, grava-o a ferro e compara. Compara com a memória da sua infância. Com a
memória de sua mãe, austera como o seu negro traje de viúva, rígida como uma
raiz de cerejeira e tão afável como um violento incêndio de Agosto. Será que o
menino pelo menos conheceu o pai? Ou terá este também morrido na guerra, lá
longe, para além do mar, demasiado longe para cantar baixinho e adormecer o
bebé, aninhado em seu berço, a criar sonhos e memória frágeis e
assustadas.
Está
frio, tanto frio… Será que o menino sabe que a sua mãe também tem frio, sozinha
no seu espartano leito, sem o calor de seu homem, levado para longe em nome da
pátria, muito para além da desolação e dor que esmaga este coração de mãe e o
deixa seco e atrofiado, como sua alma.
Não,
o menino ainda não sabe o que lhe falta, ainda é feliz, pois acaba de esboçar
um sorriso para sua mãe que por um fugaz momento, quase sorriu de volta. Quase.
Edward O. franze a testa e tenta recordar-se da última vez que sorrira, mas é
em vão…
Volta
à sua secretária, ainda meio absorto pelo constrangedor episódio. A distracção
leva-o a derrubar um tinteiro e a espalhar uma pequena mancha de azul metileno
sobre o papel amarelecido. Num gesto rápido e quase atlético, consegue apanhar
o tinteiro antes que haja mais estrago. Senta-se e retira os óculos para
esfregar os olhos. Ainda meio atarantado, olha para a mancha, que alastra
devagar. Retrai-se na cadeira e tenta focar a visão, abrindo com força os olhos
e piscando vigorosamente. Quase diria que a mancha tenta mover-se na sua
direcção, se aproxima para lhe dizer algo, para lhe sussurrar um segredo
incontável. Parece até mudar de cor, tornando-se espessa e negra, com um
formato cada vez mais improvável, parece quase… um anjo!
A
tarde termina abrupta e veloz, o Sol aproxima-se do horizonte e é chegada a
hora de ir para casa. Não há qualquer ilusão, apenas o peso de mais um dia que
se aproxima do seu fim…
Cena
3. O Rio
A
violência da cidade encandeia-nos, com gritos de âmbar e carmim, rasga por entre
as muralhas do exílio que nos auto-impomos, esconde-se ao anoitecer e desperta
os lobos do seu torpor. A noite cai e a cidade está esfomeada…
Edward
O. lembra-se vagamente de um tempo em que as crianças brincavam no jardim, os
mais velhos davam a mão aos mais pequenos para os ajudar a subir ao banco de
pedra, os rapazes gritavam enquanto se digladiavam por uma bola de trapos e as
meninas brincavam às mamãs com as suas bonecas de faces de porcelana.
Parecia
impossível que ali houvesse medo, raiva, luxúria ou simplesmente, falta de
sentimentos de compaixão e solidariedade de uns para com os outros. Hoje é cada
um por si, esfomeados, encadeados pelo brilho ruidoso do farol que os orienta
em direcção ao lugar que lhes é reservado, assumindo a posição de eleitos,
escravos e senhores, todos se empurram e esmagam quem se lhes atravessar.
O
caminho é rigorosamente sempre o mesmo: das traseiras para a ruela, da ruela
para a avenida, da avenida para o beco. Mão no bolso. Chave à porta. Átrio,
escadas, nova porta. Nova chave. Casa.
Mas
hoje vai ser diferente…
Começou
a chover ainda a tarde ia a meio e, meu Deus, como chovia! A ampla avenida
parecia agora um largo e negro rio, impossível de atravessar, onde apenas
alguns carros mais afoitos tentavam em desespero cruzar, quais seixos
aplastados a rodopiar saltitantes, ficavam pelo caminho, não conseguindo chegar
à outra margem.
Edward
O. encolhia-se, quase desaparecendo dentro de seu sobretudo e escondido pelo
chapéu, desaparecia de vista em direcção a um atalho, uma ruela estreita e
sinuosa, ladeada por decrépitas roseiras e velhos choupos. Mas, há medida que
subia a íngreme e soturna ruela, Edward O. sentiu que não estava só, alguém o
seguia.
Subitamente,
sente no coração uma pontada de dor forte, como se fosse o gume de uma faca a
penetrar lento em seu peito. É a ansiedade que se apodera de ti, oh pobre
Edward O.
Cena
4. Um segundo
-
Senhor, por favor, tem lume? -
Mas
quem é que se lembraria de, a meio de um voraz temporal, perseguir Edward O.
para lhe pedir lume? Olhando à sua volta, perscrutava a escuridão mas nada via.
Sentia-se como uma erva sacudida pelo vento da tempestade, mantinha-se agarrado
a si mesmo, mas ciente de que nada era perante tal força imensa. A força do
destino.
-
Por favor, tem lume? Pode ajudar-me?-
Edward
O. virava-se lentamente para o homem atrás de si, vendo-o primeiro com o canto
dos olhos, conseguia descortinar apara além da sua retina baça um enorme vulto
negro que lhe apontava uma arma.
-
Devagar agora. Dá-me a tua carteira e o que tiveres nos bolsos do sobretudo.
Mexe-te homem, sem surpresas nem sobressaltos. Passa-me já tudo o que tens! –
Edward
O. 39 anos. Sozinho no mundo. Contemplava o Anjo Negro que o viera libertar.
Sentia algo vibrante e inquietante dentro de si. Era vida, vida que lhe
escapava e agora pulsava forte!
-
Mas estás parvo ou quê? Mexe-te idiota, passa para cá essa carteira, tu não me
desafies! Queres levar um tabefe? –
Num
acesso de clarividência e autoconhecimento, Edward O. tomara uma decisão. Olhava
fixamente o seu formidável oponente e, com o olhar iluminado de um inesperado
fulgor, sorri e empurra-o contra a parede!
Num
segundo, Edward estaria livre. Assustado e atónito, o pobre assaltante dispara
inadvertidamente a arma ao embater contra a parede, mas à medida que o dedo
pressiona o gatinho e a bala inicia a sua viagem rumo ao coração acelerado e em
êxtase de Edward O., este sonha com tudo o que sempre desejara, com o homem que
gostaria de ter sido, com a glória de ser honesto consigo mesmo e a certeza de
que era o dono de seu próprio destino...
Edward
O. 39 anos. Jaz morto no chão de uma ruela. Qual cordeiro sacrificado aos
lobos, a cidade acaba de o devorar. À medida que o sangue escorre, arrastado
pela chuva em direcção ao grande rio que alaga a grandiosa avenida, a sua alma
desprende-se de um corpo gasto e vazio.
Finalmente,
é livre…
sexta-feira, 5 de abril de 2013
Dedos de perfume
Há em ti
um aroma a sorrisos pueris sempre que o teu olhar me acaricia as mãos
pousadas nas memórias que nos levam para as manhãs em que te acordo com um
respirar mais acelerado porque há em ti um sabor a pétalas que me inebria o
sexo húmido pelo teu (en)canto e me grava na pele relevos primaveris, como os
rios que saltam as margens em tempestades de nós, como os cavalos selvagens em
desabridas corridas nas planícies que formam uma ponte entre as nossas almas
que t(r)ocamos cada vez que nos perdemos e achamos, um no outro, tu em sintonia
com os sussurros murmurados ao meu ouvido esquerdo quando o meu corpo se ergue
sempre que o teu se esvai em mim.
E
agora______________Apetece-me que me sorrias nesse encanto
com que me esqueces e te esqueces de nós nos dias em que os telefonemas escasseiam
e os olhares se dispersam em luzes fugazes de raios lunares, porque o sOl é
nuvem que não passa. apenas eu num passo-a-passo com o tempo que não me deixa
deixar-te. mesmo
quando as tuas mãos são as minhas mãos, tão pequenas, tão tuas, a
fechares-me o vestido de pele nua, a apertares-me o colar de pérolas
e o pescoço no sexo sem tabus, aroma a petúnias cultivadas no teu jardim de
Verão, onde ao poucos as cores são códigos para o amor que demora. são dedos, ágeis, longos e firmes que me
emprestas quando estou longe, dedos de espanto, escancarados de prazer, quando se
passeiam em mim, apertando-me os mamilos, despertando sensações de toques
de guitarra dedilhada pelos teus dedos entrelaçados nos meus, que
escrevem sms quando o
decalque do teu corpo descansa em mim. à distância de quantos dedos quiseres. dedo que me apontas pela verdade que
lembro. dedo que estico
quando te quero indicar o caminho de regresso, sabendo que partida pode ser
também meta, nos orgasmos que não teremos, imaginando que NÓS de dedos cegos de paixão, me massajam as
costas tensas pela ausência de notícias. e é quando os teus dedos desenham beijos nos meus lábios que
escondem os perfumes que me deixaste nas coxas, quando os teus dedos e sempre os teus dedos excitam líquidos secretos que
alisam a minha pele que sabes tocar, que (te) sei quantos dedos fomos.
domingo, 3 de março de 2013
2 tanka imperfeitos para 1 poeta perfeito
Gumes e arestas
Cortam-me as mãos
Fios de sangue
Enfio a agulha
Coso o meu coração
Espinhos e vértices
Furam-me os dedos
Pingos de sangue
Encho o tinteiro
Escrevo o meu coração
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
Os velhos
De certeza que foi um velho que me pegou isto. É por isso que
não gosto de sair de casa… sei que me vou cruzar com os velhos do 1º direito.
Há dois dias comecei a usar fralda, a não controlar essas vontades básicas. Se antes não era assim, de certeza que foram os velhos, só de respirar o mesmo ar, o mesmo espaço.
Há dois dias comecei a usar fralda, a não controlar essas vontades básicas. Se antes não era assim, de certeza que foram os velhos, só de respirar o mesmo ar, o mesmo espaço.
Depois reparei em como está diferente a minha mobilidade, a minha
quase-praticamente independência de movimento. Agora sou uma alface,
flácida, que só mexe os membros por pequenos impulsos. Fazem-me tudo, inválido,
eu. Sim, eu.
E alguém percebe o que digo? Escapam-me sons estranhos aos dos
mortais não doentes, letras soltas, sons ocos, guincharia… e tudo isto
acompanhado de muita baba a escorrer pelo canto da boca.
(Acabou de sair-me um cocó agora)
Ainda hoje queria apanhar um bocadinho de sol, isso a que
chamam passeio, e tive que ir numa cadeira de rodas. A empurrarem-me, a depender
da misericórdia de alguém que faz um frete e assim conquista o seu lugar no céu.
Porquê a mim? (cliché, cliché, je sais!) Mas nunca precisei
disto, tanta gente que se cruza com os velhos e não os vejo a ficar assim. O
meu sistema imunitário deve ser muito fraquinho… ou começou a ser. Claro, claríssimo
e mais uma vez a causa deve ser o contágio.
(Se não berrar agora, fico com o rabo todo vermelho, já
sinto a pastosidade a subir-me pelas costas, a transbordar a fralda de velhos.
Berrar! Porque nem cú consigo dizer).
E o comer, custa-me engolir. Só líquidos e mesmo assim
engasgo-me, fico roxo e dão-me palmadinhas nas costas. “Tão? Já passou? Ai, ai,
o glutão!”
Devo morrer em breve e choro a noite toda por isso. Espero
conseguir ir à minha primeira consulta de saúde-infantil. Talvez isto tenha
cura, se os meus pais pagarem a um bom pediatra, talvez ele me cure.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
Pétalas de mármore
são lírios do campo estas letras
com que te espero sentada na penumbra do teu canto bordado a línguas de fogo
com que me gravas claves de sol nas noites de lua cheia de ti e das saudades
que desprezas mesmo quando a fruta se espalha sobre a mesa num quadro recorrente
de incompreensões sem data.
são rosas meu amor, de espinhos
cravados nos dedos quando te sei rei, dum condado inventado pela memória com
que construímos o passado num amanhã debruado a ouro sobre o azul do teu olhar.
são cravos de paixão pela
liberdade que conquistamos cada vez que respiramos num assombro de dança,
tango em ri(s)os virgens de flores decapitadas.
são pétalas de mármore,
cristalizadas pelo suor do teu corpo no meu, quando ainda não éramos nós...
Somos nós, para sempre.
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
Cieiro
Depois de pôr o batom do cieiro nos lábios, a menina com
chuva olhou-se ao espelho.
Deitou um pacote de açúcar na cama e despejou-se em cima.
Hoje não tem vontade de sentir-se bem.
Chama-se menina com chuva àquela que por coincidência ou super
poder leva chuva para onde vai. Certa terra em dia de Verão leva com chuva se
essa menina para lá for. Certa terra em dia de Inverno fica sem chuva se essa menina
de lá partir.
Levantou-se pegajosa, vestiu-se e foi correr. Os poros
vomitavam suor salgado que nauseadamente escoriam no meio de tanto doce. Olhou
para o céu… “se ao menos a água que cai fosse exsudado das lesões por humidade
que as nuvens têm.” Chorou. Muito.
Já em casa e de olhos inchados, usou bolinhas de algodão
embebidas em lixívia e passou suavemente pelas pálpebras. Aclarar as ideias.
Sentou-se no sofá e esperou pelo sol. Esperou e quando chegou ao “u” fartou-se e
foi fazer bolachinhas. Amassou, enformou e pôs canela por cima. Esperou pelo
tempo com mais paciência, tirou as bolachas do forno e comeu quantas o estômago permitiu
para que depois as pudesse obrigar a sair pelo caminho inverso.
A campainha tocou e a menina com chuva não ouviu.
Tinha acabado de entalar um dedo na porta do armário e olhava
a unha estalada. Fez o curativo com álcool (na verdade foram 20 minutos com o dedo
mergulhado).
À noite jantou cubos e gelo. Guardou os bocadinhos de dentes
que cederam dentro do saleiro e pensou ir deitar-se. Pegou no saco do
lixo, encheu-o até metade com água da chuva. Já no interior da arca frigorífica,
meteu-se dentro do saco. Em posição quase fetal e só com um braço de fora, esticou-o e com a ponta dos dedos conseguiu fechar a arca.
Adormeceu com alguma facilidade. Ainda bem.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
Jantar
Isto sabe-me tão bem como sal nas aftas.
Andava o cloreto de sódio preso na toalha da mesa.
E depois soube que tinhas trauteado músicas com a cabeça dos
dedos nessa toalha. E pronto, isso bastou para cair de lábios nesse lugar. Era
só um beijo, o mais próximo de ti que se conseguia. Mas ardia muito. De lacrimejar.
Varri com a mão as migalhas do pão mais aquelas que se
colaram à toalha e que por isso deixaram nódoas. Segui com o dedo a marca
redonda do copo tinto. Sei que brincaste nervosamente com a ponta do guardanapo
e por isso fiz dele bolo alimentar só para saber o paladar da tua inquietação.
Era descartável.
Raspei o prato onde comeste para dentro do meu e os restos prenderam-se nos dentes do garfo. O som dele a bater no prato era como
se num casamento pedissem pelo nosso beijo. Outro.
Lavei à mão, com espuma de limonada entre os dedos de cada
vez que os apertava para reanimar a esponja.
Não varri o chão. Não tenho atenção suficiente para desfazer
as tuas pegadas debaixo da mesa, da cadeira. Aquilo que me garante que o teu
peso em sola esteve ali. Quero deitar-me e pensar à noite que irei tomar o pequeno-almoço
na marca dos teus pés. No colo delas.
Nessa manhã, já com a loiça seca no escorredor, sem a tua
saliva (ou resto dela) passei o dedo com força no teu prato e obriguei-o
a cantar tudo aquilo que as tuas garfadas lá deixaram. Senti-me tão má, tão de ânimo
tremido. Débil.
Depois. A faca da manteiga arranca bem as vistas. Escrevi o
amo-te na manteiga e raspei por cima para comer-te em torradas.
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