Maria tem o olhar a atravessar a fechadura, porque foi à fechadura que reparou pela primeira vez que o nada se movia lá fora. Franziu a orelha. Como um ponto de carvão numa folha parada, o tempo não se movia, nem se chovia, nem se fazia em vento de cada vez que ela olhava para fora da casa sem porta.
Uma casa triangular, mesmo sem vestígios de porta mas com um minúsculo buraco da fechadura na parede que aponta a sul. Foi nessa mesma parede que Maria nasceu. Com os pés encostados à parede e o tronco no chão, ao fim da décima nona força saiu de uma mulher, Maria. Não foi fácil. Com as pernas de recém-menina a baloiçar e a cortar a meta em primeiro lugar, a cabeça explodiu em raiva por não ter sido ela a mais velha do corpo. Entre lágrimas e sorrisos da mãe anjo, Maria viu-a ir para o vértice norte da casa, lugar céu, número estrela para nunca mais de lá sair… recém-orfã, antes de conseguir ser menina.
Parada no seu corpo, hoje passados muitos anos, olhou pela fechadura e reparou pela primeira vez que o nada se movia lá fora.
Na parede noroeste, através da rachadura, ela esmaga os olhos e repara que lá fora, o tudo não se mexe. Franziu as pestanas. Ana nasceu aqui. Com as costas e a parede coladas e os pés a rachar o chão, ao fim da vigésima terceira força saiu de uma mãe, Ana. Pela ordem natural, a cabeça ganhou o orgulho e quando se preparava para gracejar com Maria reparou que ao sair as pernas tinham ficado lá dentro, e o lá dentro é quando a gestação come a carne e o osso e da gula resultam cotos redondinhos e brilhantes. Entre lágrimas e sorrisos de mãe-demónio, Ana viu-a ir para o vértice este da casa, lugar roda, número enjeitados para nunca mais de lá sair… recém-enojada antes de conseguir ser filha.
Agitada no seu corpo, hoje passados muitos anos, olhou pela rachadura e reparou pela primeira vez que o tudo não se mexe lá fora.
Pendurada na parede nordeste que se arrasta todos os dias num sul e num noroeste, está a fotografia emoldurada de Mariana e, através da mesma, ela vê uma paisagem morta no tudo do nada…Assim, sem razão ou emoção, franziu a ponta do nariz e não se lembra de como nasceu. Na casa triângulo sabe que o único vértice livre, o oeste, está vazio, sem mãe, sem útero, placenta, cordão umbilical, parto, sangue… Apática no seu corpo, olha para as outras duas paredes e ri de tristeza. Talvez tenha nascido da geração espontânea entre o pó atrás da moldura e a cal da parede, num namoro que acabou em veias e pele agarradas a estacas. Olhou para a paisagem pela última vez com as órbitas oculares e reparou que em alguns dias a cabeça chora a idade. Nos outros dias, arrasta-se pelo chão com as mãos a palpar caminho para o tronco que nos sonhos vê umas pernas a tracejado, como se fosse possível fazê-las existir com o carvão do lápis.
Lá fora o nada e o tudo sonham com os habitantes da casa em bico. Esperam parados, na ansiedade de sentir saudades de quem não conhecem.
brrrrrrr (arrepio)
ResponderEliminarquando ganhares o nobel da literatura lembra-te dos dias bons que nos dedicaste por aqui
ResponderEliminarhá dias em que só devia existir tempo para te ler tempo para sentir o tanto que tens la dentro...
ResponderEliminaro resto não tinha expressão
Inês...que mais te posso dizer?
ResponderEliminarHabituaste-nos a um nível tal...e NUNCA desiludes.
Fantástico.
É um dos melhores textos que tenho lido, em qualquer lugar, de qualquer escritor. Comentar mais a genialidade da tua escrita é redundante. O Nuno tem razão. :)
ResponderEliminarPerfeita escolha de banda sonora.
Ass. Bicho d'Ouvido
(Perfeita escolha da banda sonora sugerida por JGMefisto.) :)
ResponderEliminarInês, mais uma vez elevaste a barra.
ResponderEliminarDe há alguns textos para cá noto que estás menos interessada na fantasia e mais na vida dita real, ainda que os teus cenários e personagens pertençam a outras dimensões. Neste momento tenho a sensação que a tua escrita está cosida à realidade com fio de nylon... uma ligação forte e, no entanto, quase imperceptível... de uma enorme beleza.
Só não insisto naquilo que já sabes porque prometi que não o faria.
É-me difícil comentar os teus textos sem cair nos adjectivos (altamente elogiosos) mas que na verdade são lugares-comuns. Tens a capacidade de reparar nas pequenas coisas, mas mais do que isso, tens a capacidade de as transformar, apenas porque as vês com os teus olhos (no teu mundo), em algo muito maior do que um conceito instituído ou o significado num dicionário. Consegues encontrar e explorar, minuciosamente, o pormenor da pequena saliência no canto superior direito junto à mancha cor de mel. Depois juntas tudo, como mãos que moldam plasticina, em palavras (desde espirro a nós ou nódulos) que só tu consegues puxar com essa "corda", vêm todas juntas como se fosse fácil tê-las assim tão harmoniosamente (e com tanto sentido) unidas. És assim PONTO
ResponderEliminar"Talvez tenha nascido da geração espontânea entre o pó atrás da moldura e a cal da parede, num namoro que acabou em veias e pele agarradas a estacas. Olhou para a paisagem pela última vez com as órbitas oculares e reparou que em alguns dias a cabeça chora a idade. Nos outros dias, arrasta-se pelo chão com as mãos a palpar caminho para o tronco que nos sonhos vê umas pernas a tracejado, como se fosse possível fazê-las existir com o carvão do lápis."
"Esperam parados, na ansiedade de sentir saudades de quem não conhecem."
ResponderEliminarAdorei o texto...simplesmente fabuloso! E a ultima frase, de tamanha profundidade, que me arrepiei.
Parabéns!
Till, há imagens esmagadoras que amalgamadas nas tuas palavras, se as ouvisse, me eram estranhamente doces. É uma crueza sussurrada, morna. Um cadinho com tanto de muito. Matéria prima depurada, lascada, rendilhada, decantanda.
ResponderEliminarGosto tanto, mas tanto mesmo, do que sublimemente (nos) escreves.
Bem Hajas.
A reler -te) e a escutar CocoRosie.......de olhos em bico, mas fechados, eu de tanto gostar, de tanto entender e de não ter mais palavras, porque são supérfulas. aqui e agora.
ResponderEliminarE sim....as saudades mais dolorosas são do que sabemos nunca ter...