A minha mãe contou-me que no dia em que me foi apresentar
à floresta, ainda agarrada ao seu peito, fui com olhos verdes e voltei com
olhos cinzentos. Nessa noite ela fez um defumadouro e lavou a soleira da porta
com orvalho de Maio. Contou-me,
ainda, que nunca vira uma criança trazer tantos ossos, espinhos, teias e
carcaças abertas de animais para casa. Ela queimava-os discretamente enquanto
os seus lábios murmuravam um esconjuro silencioso.
A
minha mãe tem um dom. O seu sangue, que deveria ser o meu, é tão limpo que ela
consegue ver o brilho argênteo que há em tudo o que pode restabelecer a
essência da vida. Quando entrávamos nos bosques ou íamos às montanhas, as suas
pupilas dilatavam como se estivesse no breu, salvo os momentos em que se dobrava
para apanhar hipericão ou calêndula, quando segava zimbro e carqueja ou quando
colhia pilritos e papoilas.
-
Eu estou às escuras, filha, para poder ver. Tu também tens de aprender a
deixar-te cobrir pelo véu.
E
continuava pacientemente a tentar explicar-me como usar a foice na losna ou
como secar a arruda enquanto me afastava das amanitas e da erva do diabo .
Eu
caminhava ao seu lado, sem coragem para lhe dizer que o meu véu era branco e
que contra ele via a luz plúmbea de tudo o que traz em si o hálito da morte.
Onde
ela cheirava mostarda e cânfora eu era percorrida por enxofre e amoníaco.
Sentia no meu corpo os bolores, os fossos, os miasmas, o sabor das águas
paradas e da cadaverina nos animais putrefactos. Conseguia ver as larvas, os
salitres e a peçonha dentro das víboras e lacraus. Nos claustros de pedra das
montanhas sentia o frio de futuros túmulos. E nas pessoas via apenas as
pústulas, as gangrenas, as úlceras nas entranhas, os humores negros….
Fui
crescendo sob a saia protectora da minha mãe. Os vilãos não gostavam dela mas,
como sabia tratar-lhes as maleitas, toleravam o seu carácter quase obscuro.
Comigo era diferente. Não suportavam a náusea que sentiam cada vez que a
minha mente dissecava os seus corpos enfermos e acusavam-me de estar com o
canhoto. Preferiam pisar-me em vez de ouvir os meus avisos e eu aprendi a
calar-me e deixá-los morrer da sua podridão.
Um
dia a minha mãe chegou com veneno dentro dela. Passáramos a manhã inteira a
discutir porque ela apanhara-me a cozinhar dedaleira e esporão-do-centeio na retorta.
Mal abriu a porta, eu gritei-lhe, assustada, que ia ficar doente. Ela sentiu a
vertigem do meu olhar branco no seu interior. Para desviar-me os olhos,
empurrou-me para cima da banca das tinturas.
-
Como te atreves a abrir essa boca para cuspir uma praga? – e antes que eu
pudesse responder – Proíbo-te de falar até ao crescente.
Nessa noite, enquanto a febre se apoderava dela, destruí
todo o arsenal que ela usava para tratar aquela gente indigna. Cada pomada, cada unguento, cada
pedaço de resina. Eu purguei o seu corpo e ela, em delírio, purgou a sua alma
plena de azedume. Por mim.
Quanto
finalmente voltou a si, ordenou-me que explicasse porque fizera aquilo. Não
respondi. Ela não queria ouvir o que eu tinha para dizer e mais valia continuar
sem falar.
-
Sempre soube que tinhas a lua negra dentro de ti. Fiz tudo como mandam os
antigos mas tu não quiseste esperar por Ofiúco, o nosso décimo terceiro. Os
teus pés e mãos esticados quase rasgavam o meu ventre, tal a tua pressa de sair
sob as estrelas do veneno. A tua sombra leitosa tem vindo a crescer dentro
desta casa e eu não consigo ver através dela. Amo-te, mas ambas sabemos que não
podes ficar.
Parti
de imediato, sem um som. Nunca mais falei.
Imagem: Hecate, William Blake
shake the disease, indeed
ResponderEliminarquite emotional and just as lethal
Adoro quando cedes ao dark side. :) Muito bom!
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