terça-feira, 18 de outubro de 2011

Outono


Norberto Lobo - Chuva Ácida


Todos os dias ao acordar, a ferrugem dos passos faz-me pensar na humidade que o meu caminho se tornou
Antes de abrir as portas da cave procura a percepção nos livros
e, no fim, deposita a memória no húmus da sua decomposição,
Esquiva, diáfana fantasia entre páginas incontadas.

Hoje, a seiva cria coágulos em todas as ramificações dos pensamentos
A agulha dos segundos cose-me aos batimentos fora de horas do coração,
Corta o teu olhar para o encontrar côncavo
e sorve o álcool antes do mosto dos teus olhos de uva,
Se a luz dourada se derrama em ti como chuva morna.

As tuas mãos enfolhadas de plátano estalam secas na minha face, cada vez que te olho
Permites que a folha caduca seja tua cama, minha sede, abrigo de prazer,
Um bacanal de viver sem outro Deus que a dança, o riso
E embebidos na luz ocre do Sol que por hoje se despede, embriagamo-nos de beijos.
Escondes-te na noite assombrada por murmúrios, amanheces na geada
– Uma moura sem encanto que passeia nua pelo lameiro –
Pintas-te com chocolate e devoras cada palavra que desenhas em teu corpo
– Um esporo de sal e água soprado por uma mulher seca.

A menina cor de sonata comunica pelo silêncio das palavras presas nas linhas das pausas
Sempre preferiu a translucidez chuvosa do vidro
a necrose do teu beijo, os narcisos em Novembro
a carícia saturnina na adaga antes do golpe
que denuncia por dentro uma dor desnuda
Um silêncio que não consegue saciar a flor da carne
Uma alquimia de ouro em matéria morta, de brilho em baço
Mil endechas escritas pela tinta que jorra das carótidas.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Insectos (parte IV de IV)


Parte IV



Uma, e outra, e outra vez. Uma, e outra, e outra vez. Dou a volta à casa e procuro. Procuro quem me veja, quem me sinta, quem de mim sinta falta. Procuro não desesperar, mas desespero, falo comigo próprio e embrenho-me entre sombras, internas e externas, acabo por adormecer, talvez assim me liberte deste sono sem fim. Uma e outra vez penso em ti, penso em tanto que pensei em ti, penso e dói-me só de pensar na dor de tanto pensar. E pensar para quê? Afinal o que é que eu quero, quando já tenho tudo quanto alguma vez poderia querer. Se havia tão pouco que me fazia completo, agora que nada tenho, só poderei ser o ser mais completo ao cimo da terra, articulado comigo mesmo, sentiente de nada para além do débil limite do que me é permitido sentir, quase divino em matéria e forma, absolutamente extraordinário, sem nada, absolutamente nada de normal.

Uma e outra vez recordo, a falta de ter onde me agarrar, a quem me prender, afinal, todo o sonho era vazio e a ilusão a única coisa que era e é real. O que pode então a realidade fazer por um homem? É pela realidade que seguimos quando algo de surreal acontece? Quando nada do que acreditamos ser possível se realiza perante os nossos olhos e nos contempla para além do vazio que neles transportamos? Será esta realidade a vida? E se a vida for apenas o breve acontecimento que sucede entre a morte e o nascer, o renascer, a metamorfose? Será que a vida é mais real quando a vida em morte se transforma? Podemos então, em êxtase, antecipar o acontecimento da emergência de um novo ser? Será a vida um retrato fiel do mito da Fénix, onde nós, envoltos em chamas, bradamos aos céus que nos salvem, gritamos em desespero por um fim do tormento quando, em boa verdade, estamos a ser levados em mão à nova morada do nosso espírito, onde então a vida acontece? E se então, o portador da morte for o Anjo da Vida que nos guia durante a transformação brutal da carne em matéria divina, o sopro silencioso da corpora alata nas nossas veias e nos guia até ao abismo, para que finalmente possamos dar o salto de fé, rumo ao centro do universo, onde tudo finalmente irá fazer sentido?

Uma e outra vez, assumo o sentido de missão, de caçador de fantasmas, de juiz de mim mesmo e de desprezo pelo que sou e serei sempre, para todo o sempre, incapaz de admitir. Admitir que a vida continua e que o sol não gira sobre mim. Admitir que nada tem que fazer sentido para acontecer, terá somente que acontecer. Admitir que o que não sei é infinitamente mais do que o que sei, ou penso saber. Admitir que amar não é possuir, que desejar não pode ser querer e que querer não justifica, nunca, as nossas acções para alcançar. Eu só queria alcançar alguma paz, um pouco de sossego, uma boa noite de sono, sem pesadelos, sem ilusões de um outro futuro, um pedaço, só um pequeno pedaço, de bondade, abertura ao mundo, de normalidade.  

Para trás, para a frente, nesta casa deserta, onde nem eu me encontro, por entre os estalidos da madeira e o pó que tudo envolve, descobri a escuridão e assassinei os meus medos de ser feliz, ao assumir, em definitivo, não ser feliz, nem tampouco infeliz, simplesmente, não ser eu mas ser nada. Para isso tive que fazer escolhas. Para que eu nada fosse tive que algo fazer. Para me anular a mim, tive que aniquilar a representação maior no eu que tardava em desaparecer, desvanecer através dos vidros sujos das janelas desta casa e da minha alma. Tive que me matar. E qual a melhor maneira de me matar? Matar-te.

Então esperei. No dia em que te reencontrei esperei para ver onde te dirigias, no teu voo rápido e majestoso de ser superior, na tua bonomia para com o mundo de larvas incompletas e cobardes que vivem dos restos de seres como tu. Vi que lesta partias e, tão imaterial, que deixavas cair o pequeno papel que tinhas na mão. Apanhei-o e li. Li, era uma morada, uma casa pequena, perfeita para alguém de passagem, só terias mesmo que confirmar com o seu dono que estava disponível. Vi e esperei, um dia, dois dias, muitos dias. Até saber de cor. É a fraqueza das libélulas, os hábitos, gostam de manter rotinas e de voltar ao junco alto onde podem ser vistas e admiradas, de marcar território e afirmar a sua superioridade. É sempre a superioridade, essa falta rude e torpe de modéstia que derruba os heróis e os seres belos e inalcançáveis. Esperei, e consegui.

Já não me surpreendi quando não me reconheceste ao ver-me à porta de teu quarto. Já não me doeu que não gritasses pelo meu nome quando imploraste clemência. Já não me assustou olhar para os teus profundos e apavorados olhos verdes e nem rasto de mim vislumbrar. Já não me custou ver-te partir, para sempre, envolta em mim, com as tuas mãos a segurarem os meus braços, mesmo que só fosse para afastar as minhas mãos do teu pescoço e a suspirar, por uma última vez, até contemplares o céu que se haveria de abrir sobre nós só para ser o palco do teu último voo, transmutada, rumo a casa, a tua casa.

De volta a minha casa, sento-me na cama de ferro e deito-me, deixo-me adormecer porque sei que não vou sonhar. Nada há para sonhar, acabou. Sou livre de nada ser e de nada sentir. Não temo mais o dia seguinte. Não sinto qualquer fascínio pelo cair de uma nova noite, pois não haverá qualquer noite nova depois desta, serão apenas repetições da mesma, vez após vez, após vez...

E quando penso em ti, já nada penso. Nada há para pensar quando estamos sós, livres de qualquer sentimento, em frente só há dragões. Nada para além do grande vazio, do derradeiro passo em frente, nada existe para além do vácuo que me preenche há medida que avanço no meu mergulho, de olhos bem abertos, abismo adentro…

domingo, 2 de outubro de 2011

Insectos (parte III de IV)


Parte III


 

Olá, como te chamas? Eu sou a Joana, mas toda a gente me trata por Joaninha.

Parece que ainda a oiço… voz suave, ondulante como o vento nos seus cabelos, alegre como as manhãs mornas de Primavera, e perante mim a formosa criatura, filha das estrelas, das estrelas que brilhavam nos seus olhos verdes e suaves, como a sua voz, a ondular por entre a floresta de pensamentos que hirtos, mal reagiam ao tom morno da primaveril manhã em que a ouvi. E ainda oiço… por vezes.

Algo devo ter dito, não que tenha qualquer memória de ter dito nada, só olhado, contemplado, maravilhado, completamente enamorado. Mas entre o que não disse, terei certamente dito o que ela queria ouvir, porque dias depois ainda me olhava com os enormes olhos verdes, entre sussurros e sorrisos me enrolava à sua volta, e as palavras fluíam quietas entre os nós pequenos que nos uniam como uma teia apertada, nós que éramos dois mas seriamos um, apenas um nó, pequenino, na gigantesca teia do universo que prende as vítimas em busca de mel, um pouco de água e tanto amor.

Os dias passavam ligeiros e os meninos de 6, 7 anos, brincavam sem nada saber sobre nada do que ao mundo se referia, apenas coisas de crianças, coisas de meninice e amor verdadeiro, daquele que só a inocência faz matéria e a ignorância lei. Sem lei, nem memória de tal coisa e de regras, nem um traço, por entre os muitos que traçámos no pó das janelas das velhas casas do caminho, do nosso caminho, entre ervas e pedrinhas, os nossos passos foram marcados na lama das poças da chuva de ontem, porque ontem, tal como hoje ou amanha, nada haveria para dizer. E contudo, como eu gostava de te poder dizer algo agora…

Um dia acordei, não de um sonho mas de toda uma vida sonhada. Um dia procurei, mas não havia nada. Um dia chamei e não te encontrei.
Meninos, a Joaninha mudou de escola, foi acompanhar os pais para o seu novo trabalho, foi de repente, mas é a vida, os meninos tem que ir para onde os pais vão, ou os mandam, é assim que tem que ser. Agora abram a página 24 do livro de Meio Físico e completem o exercício 3…

Não percebo. Tanto tempo passado e continuo sem perceber. Não percebo porque nada me disse, não percebo porque não me contou na tarde antes de partir que ia partir, na estrada que nos separaria para sempre, partir o meu coração ainda verde, de idade e de esperança. Nesse dia, depois da escola, cheguei a casa, despi a minha roupa, coloquei-a num pequeno monte ao pé da cama de ferro e deite-me, de olhos bem abertos. Olhei para o tecto e lá estava, a aranha, na sua teia, feita de pequenos nós, quieta, bela e ausente, a ondular na suave brisa de Maio, quase indiferente à minha presença. Até que, quase por divina providência, um pequeno mosquito pousa incauto e lança pelo fio da teia uma minúscula mas sensível vibração. Num segundo, estava preso num casulo de seda, envenenado, a sucumbir à doce narcolepsia, enquanto os olhos da aranha brilhavam como estrelas, verdes e doentias, escondidas no mais escuro e perverso canto da minha casa. Tal como o agoirado mosquito, também eu me deixei morrer, devagar, silencioso, abandonando o meu corpo ao veneno do engano…

Os anos passam e não há nada pior que nos tornarmos pessoas normais. Afinal o que há de bom em sermos normais? Não seria tanto melhor sermos excepcionais, inigualáveis, ímpares num universo de seres únicos e irrepetíveis? Não é isso a vida eterna? Que tem de eterno sermos uma sombra de outros, outro entre tantos, tão simples e normais. Mas há uma coisa boa em ser normal, se nada nos distingue, também nada nos identifica, diferencia, não há um dedo mágico a apontar ‘ali vai ele’, uma de tantas formigas num carreiro negro, infinito e infindável, para trás e para a frente, para frente e para trás, para trás, onde me deixei ficar, mais para trás ainda, quando eu olhava naqueles olhos verdes e sonhava, nos dias em que cigarra cantava para a joaninha e fazíamos felizes o caminho incerto da Primavera. Para a frente. No carreiro negro, indiferente, normal.

Até que um dia houve um eclipse, e um sol enorme e brilhante se interpôs entre mim e a noite negra que era o meu dia e a vi. Não acreditava no que via, porque não era possível acreditar que via, muito menos que a via. Lá estava ela, a passar os dedos pela vitrine onde estavam afixados os papéis que diziam o que seria o futuro dos jovens normais que seguem a sua vida, normal. Mais de 10 anos depois, senti um pulsar forte no meu peito, o frio do ventilar na minha garganta, a dor lacerante de finalmente ver luz no meio de tantas trevas. Não consegui dizer nada, ou nada me lembra de ter dito, mas é possível que algo tenha sido dito, porque ela virou-se e disse ‘por favor, pode dizer-me as horas?’. As horas? A que horas se referia ela? Às horas que esperei por ela na estrada da escola? Às horas que dediquei a pensar porque não teria eu simplesmente morrido naquela tarde? Talvez quisesse perguntar.me quantas horas aguenta um ser humano normal, num dia normal, sem perder a sua normalidade e explodir de dor e desejo e paixão e saudade e ainda mais dor, muito mais dor do que qualquer ser normal possa aguentar sem que o coração se desfaça em mil pedaços, espalhados por mil poemas fechados em mil gavetas, por entre mil vezes que se suspira e nada se sente porque gastamos o ultimo suspiro há mil dias atrás… Disse-lhe então as horas, 11:17, mais precisamente. Ela olhou para um pequeno papel que tinha na mão direita e exclamou assustada que estava atrasada. Não resisti e peguei-lhe no braço e olhei para os olhos verdes e infinitos e enormes. Procurei-a mas ela não estava lá. Ela olhou de volta, assustada e ansiosa e procurou, mas não me encontro. Eu ainda estava debaixo de água, entre folhas e sedimentos, perdido na corrente fria do rio, enquanto ela havia mudado, transformado o seu ser, feito a metamorfose e ganho asas, feitas de organza e vitral, pairava sobre mim, olhava para baixo e não reconhecia a larva. Ela era a joia da criação enquanto eu nem sequer me erguera daquela cama onde fique para sempre preso e envenenado. Libertei o seu braço, pedi desculpa, ou pelo menos devo ter feito uma cara de desculpa, porque ela olhou para mim, distante e fria, devorou a minha alma, ou o farrapo que restava dela e voou…

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

porque a poesia vale sempre a pena, aqui fica esta que tem direcção

A tua ausência
priva-me de olhar-te

estás tão distante do meu olhar
mas tão perto de mim

pressinto esse teu aroma
juvenil,
primaveril
neste Outono quase verão.

Por onde andam os teus olhares
Que não se cruzam com os meus.

O fogo da paixão dilacera-me
Rebenta o peito
Da pressão
Da paixão
Da tua ausência...

Onde pairam os teus olhos
Que não se cruzam com os meus.


e porque a música é...
http://www.youtube.com/watch?v=xzrC72Xv6pE&feature=related

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Lado esquerdo do peito




Quando eu me levantei acima das brumas da ilusão, vi uma Luz.
Sim, a Luz d'Ele, que me esperava com um sorriso nos lábios.
Então, Ele disse me: "Se bem-vindo à consciência real.
Que bom que voltaste ao caminho
Em muitas ocasiões, Eu tive que ser duro contigo
Porque a tua arrogância era grande e caprichosa.
E tua cabeça estava cheia de teorias e técnicas de como viver.
Mas, isso não é assim. Porque viver é muito mais do que se imagina.
E não há manual que ensine alguém a amar realmente.
E nem diploma que cure as feridas do coração.
Tu tens me dado muito trabalho, mas, finalmente, o teu ego capitulou.
E o resultado é essa Luz que tu agora vês claramente.
Agora tu sabes que conhecimento não é sabedoria!
E que o Amor real não é emoção doentia nem frieza afectiva.
E o teu coração está tão lindo, mais parece um sol.
Tu soubeste extrair lições das provas que eu te enviei.
Transformaste reclamações descabidas em lindas canções.
E aprendeste a valorizar as coisas simples da vida, como um sorriso.
Eu sei que não foi fácil para ti. Mas, nunca é - para ninguém.
Porque, muitas vezes, o orgulho bloqueia o discernimento e o Amor.
E o preço disso é muito alto: a cegueira do coração e o egoísmo no comando!
Por isso, muitas vezes, Eu sou obrigado a agir de forma dura e directa.
Então, as pistas do Ser se inflamam e o pressionam a mudar...
Sim, sou Eu que faço isso. Projecto as mudanças profundas e verdadeiras.
E, embora o ego seja renitente, Eu nunca desisto. Porque, tudo muda.
E, mesmo no meio à dor das tuas provas, tu sempre foste abraçado por Mim.
Eu esperei o teu despertar, como um Pai espera a volta do filho que se perdeu.
E, com Ele, sempre vem a Luz do despertar real, fazendo o coração virar sol.

A, eu retornei dos escombros do meu ego e voltei para casa.
Porque o meu verdadeiro lar é no Grande Coração.
E o que é maior que tudo. Tudo o que se sente, se vive e não se consegue explicar.
Tudo o que vai preenchendo os espaços vazios daquele que fica no lado esquerdo do peito...

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Insectos (Parte II de IV)




parte II de IV

Sempre me fascinaram, pareciam jóias mágicas aladas, pequenos puzzles de refulgente rendilhado e organza, delicados seres que emergiam das águas escuras e pungentes dos pântanos… lembro-me de ser pequeno, de ser maior do que elas, mas de elas serem igualmente pequenas e, ao longe, tanto maiores quanto eu me sentia, por as ver a voas, cortar rectas entre tabuas e caniçais, pairar, como se o ar para elas fosse a janela do universo onde assomavam curiosas, ansiosas pelo espectáculo único que todos os dias acontece quando Apolo passa ligeiro pelos campos de Ceres.

Mas é aqui que está o truque, a ilusão, o engano. A beleza élfica, o enigma orgânico do metal vivo, do vitral pulsante, da jóia alada, como tudo o que é belo, orgânico e pulsante, tem uma génese, um momento da criação, o volteio suave das mãos do mago quando maravilha a audiência e a todos surpreende: ei-la! Contemplem a beleza maior, o deleite do criador, o segredo da fragilidade, da sensual feminilidade e de toda a virtude deste mundo. Um truque, nada mais. Uma ilusão, sem a qual não queremos viver. O engano que não queremos aceitar como por demais evidente. Assim é, sempre foi, eternamente será. A ascese impossível. O perdão hedónico. O limiar que nunca haveria de ser revelado. Falo pois, desse momento de êxtase e assombro, quando descoberta é a verdade, a origem das coisas, a metamorfose.

Se acreditar, morro, se duvidar, matam-me. Matem-me, não me abandonem nestes campos repletos de tais efémeras criaturas, porque delas eu descobri o segredo. Nada do que é belo pode nascer de nada belo. Nada há de belo na voraz, críptica, insidiosa larva de uma libélula, escondida entre folhas e sedimentos, golpeia a presa incauta e devora-a com enorme violência e satisfação. É assim que cresce, toma forma e ilude o ávido de desejo, inunda-o de desejos, fazendo-se desejar por tudo o que agora é no reflexo lagunar da alma do seu amante.

Se na beleza que contemplas não vires o signo de toda a fealdade deste mundo, serás levado pela corrente fria e serpentina deste rio que a lado nenhum nos leva. Se acreditas nas dádivas de sensualidade e afeição, acredita também no torpor mórbido que lhes deu origem. Se considerares, um só momento, que és o escolhido para desvendar o grande enigma da perpetuidade do ser amado, prepara a tua despedida, porque no amor, bem como em todas as coisas belas e objectos de desejo, a natureza do insecto conhece apenas uma regra: 

Ergue-te, devora e levanta voo...

domingo, 18 de setembro de 2011

Insectos (parte I de IV)

Insectos 

Parte I de IV



Sem que ninguém te veja, sem qualquer som ou movimento suspeito, ergues-te sorrateiro, matreiro, invisível, indivisível. Passas pelo foco do projector sem que a sombra te denuncie. Rastejas junto à parede, sentes no teu ventre a textura áspera da tinta envelhecida. No ar, paira um aroma a bafio e madeira apodrecida e junto à cama de ferro está um monte de roupa velha que outrora fora de uma criança, talvez um menino, 6, 7 anos, ele esteve ali, mas não estava mais. Passas pelos farrapos e esgueiras-te rapidamente para um canto escuro, enrolas-te numa bola de sebo e cotão e murmuras baixinho algo que só tu saberás o que é. Murmuras, cantas para ti e adormeces, embalado num pranto de estalidos e assobios. O dia não tarda a nascer e a luz, toda aquela luz, irá invadir a casa através de frestas nos taipais e buracos no telhado. 

Noutra noite, outra de centenas de outras noites, madrugadas inteiras de solidão que te ampara, aperto que te afaga, afogas-te na miserável sensação de incumprido destino, questionas-te, ponderas, perdes o fio à meada e circulas desorientado sob os tacos velhos e desencontrados do soalho. Procuras por ele, encontras-te a ti, perdes-te entre o bolor e as teias abandonadas e reencontras-te no reflexo distorcido de uma colher de prata, atirada ou esquecida, nota subtil de outras eras, quando eras outro além do que agora és, simplesmente um detalhe que alguém se esqueceu de corrigir aquando da revisão da grande história de Deus. Deus? Deus não tem vindo aqui muito, não senhor, não o tens visto ultimamente, talvez esteja fora em negócios ou se mudou para uma casa mais alegre ou, pelo menos, menos morta. 

Não te assustes pequeno ser, não tremas, é apenas a brisa gelada do inverno que te assola, para todo o sempre desolado, deslocado e preso a um fio, fino, curto e fantasmagórico, que prende o teu ser a esta casa, à tua casa, que te encontrou um dia e te devorou sôfrega e autista. Ninguém te ouve, não vale a pena o silêncio. Ninguém te sente, não tens porque te anunciar. Para quê? A vida é mesmo assim, uma sequência anémica de dias que são noites e noites que são madrugadas eternas, presas pelo mesmo fio, que prende o sol e não deixa que ele te ilumine, que prende a pele dura e seca ao teu corpo mole, que te prende o olhar ao pequeno monte de pequenas roupas da pequena criança, 6, 7 anos, que vivia numa casa, noutra casa, noutro mundo, noutra vida porventura vivida e agora, simplesmente, esquecida.

Um fio, fino, quase invisível, que te prende quando rastejas solitário entre a noite dos dias escuros, onde nem as frestas dos taipais denunciam sombras, nem assombros te iludem por entre o vogar calmo das horas que se esgueiram entre os buracos do telhado e morrem asfixiadas pelos esporos do bolor. Um fio que te serve de guia, para que não te percas no afã quotidiano da busca do que perdeste para sempre e insistes em procurar, procurar, procurar…

Procura por ti, encontra-me a mim, aqui deitado, nesta cama de ferro, a contemplar os dias que passam por entre as frestas dos taipais e me procuram, procuram e procuram, até desistirem, como um dia também tu desistirás de ti e de te procurar em mim... 

Não te assustes, pequeno insecto, se um dia caminhares até ao limiar desta casa e te deparares com o abismo. 

Não te assustes, minúsculo ser, ao contemplar a profundidade e negrume do abismo. 

Assusta-te sim, se sentires que o abismo te contempla…

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Tília



No fundo da tua chávena abre-se uma fissura.
Agora a água do chá já não se contenta com a meiguice da porcelana.
Gosta e espalha-se pela toalha embebida em humores de ontem
e do outro ontem, e do ontem antes do outro.
Queres passar uma cabeça de dedo sobre tudo?
Dizem que ajuda a desencrostar as células mortas
do tempo em que a janela rangia influenza sempre para o mesmo lado
e tu espirravas verbos numa proporcionalidade directa.
Agora a água já não se contenta e não te passa pela garganta
passa pela corda onde penduro a toalha
onde esta seca.
Fica rígida com as conversas peniscas da rua
fica enrugada pelas molas de pernas sem joelhos
que nem mesmo o calor da inflamação consegue esticar.
Pois bem, hoje antes do ensejo do chá recordei:
Tu não és dotado de pulsações.
Atiras os meus pensamentos contra o vidro da janela
e esperas que a luz do sol projecte os meus desassossegos no chão da sala.
Depois, como se fosse possível
dissipas tudo para debaixo do sorriso
e com os pés em cima dele dizes que me conheces bem.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Bom fim de semana

Que a tua voz atormentada de poeta esquecido chegue brevemente aos ouvidos moucos de quem mais nada quer saber...
Que alguém te encontre, para além de mim...
Que outro te reconheça...
Que as tuas palavras alucinadas, escritor velho, façam eco no espaço vazio que se ergue apenas entre nós, que encurtem a nossa distância esticada...
Que ninguém te oiça...
Que nenhum'outra te veja...
E que mais tarde, depois de mais um dos teus fins de semana de indolente promiscuidade, retornem a mim as palavras e sons do teu amor esfomeado!
Que os teus olhos surdos saibam ler o mapa, que os teus ouvidos embriagados vislumbrem o caminho...
Ficarei à espera, qual louca, desbravando um boulevard de sonhos de sábado à noite, qual santa, descansada numa chaise loungue dominical...
Que regresses a casa...
Numa qualquer segunda feira, cedinho de manhã!

sexta-feira, 2 de setembro de 2011





Postal de férias devolvido

Fui à caixa de correio e encontro, enrugado e amarelado, o meu postal, carimbado a vermelho com o texto "destinatário desconhecido".
O postal não tinha chegado a quem de direito, engoli em seco.

"E agora?"

Não conseguia pensar, parei, gelei, fechei...
Volto para dentro da minha casa preferida, directa ao meu quarto, quarto fechado por quatro paredes sem janelas, para nem ter a tentação de sair!

E naquele espaço onde era suposto ter vista previligiada sobre o jardim e a piscina, onde existem espreguiçadeiras e cocktails de várias cores, em copos grandes enfeitados por chapelinhos e palhinhas, estava agora uma prisão de alta segurança.

Tinha entrado de livre vontade mas... não me deixava sair!

"E agora?"

E quando parei no tempo e no espaço vazio, parte de mim experimentou sabores amargos, diferentes, e como numa adição, deixei-me ficar.

Estava fechada em mim, mas ao mesmo tempo estava enebriada pela escuridão, ou seria acomodada, não sei dizer.

Lembro-me do dia, da hora, de cada palavra e seu significado, da rapidez com que o escrevi e principalmente da raiva que transpirava...o meu postal de férias devolvido!

E acordo de um estado de dormência com a mesma pergunta com que adormeci.

"E agora?"

quinta-feira, 1 de setembro de 2011


Mãe,

Desculpa ter saído sem avisar mas tu conheces-me bem e sabes que não consigo conter-me. Tudo o que faço fere-te. Sou um filho maldito, um vírus que não pararia até ver-te morta.

Eu preciso das minhas obsessões. Preciso das nódoas de ferrugem, cinza e alcatrão. Preciso do crude à volta dos tornozelos e debaixo das unhas. O chumbo e o mercúrio acalmam-me. As turbinas, os reactores, os postes de alta tensão são como membros que deveriam ser parte da minha carne. Contorço-me à noite, deitado a imaginar refinarias, altos fornos e explosões de dinamite. Acordo em abstinência e preciso do cheiro dos solventes e da benzina. Todo o meu corpo pede que saia para a rua e o ofereça às águas azotadas e às radiações que o queimam. Rebento a porta e vou à procura da combustão lenta. Quero as mutações genéticas, quero o smog a sufocar-me, quero árvores a cair, quero extingir e extinguir-me. Quero arrancar-te bocados a céu aberto, inspirar e senti-los enegrecer-me os pulmões. Quero tornar-me tóxico. Quero sentir o espasmo da cisão dos átomos. Quero a corrosão, quero mares mortos.

Quero e faço. Sacio-me para que depois venha a calma, o sangue feito pó, a ampulheta onde cai um fio de limalhas. E fico à espera que recomece.

Por isso parti e vim para o mundo ao teu lado. A mais bela das mulheres. Ela sente o mesmo prazer em envenenar-me que eu sinto ao deixar que os seus ácidos fluam. Não trouxe o meu espírito comigo. Estava sempre atravessado no caminho e atrasava-me. Arranquei-o de um só golpe e substitui-o por uma peça mecânica lubrificada e cheia de válvulas. Está algures aí no chão.

Aqui estou bem. Fico sempre no lado escuro, com a recordação das palavras do Marinetti a arder como incenso enquanto, na minha memória, ouço os acordes dos martelos a bater e dos carris a fagulhar, ferro contra ferro.

Um dia volto. Vou cansar-me de mim e acordar numa das tuas florestas nórdicas, numa manhã de geada. Vou tirar a roupa e mergulhar num rio de águas revoltas e deixar que as lâminas de gelo e as pedras acabem de me limpar. E vou finalmente compreender. Compreender-te.

Nessa altura vou querer que me devolvas a minha alma orgânica e frágil. Sei que a guardarás, envolta em silêncio, no fundo de um dos teus oceanos, num local onde nada existe além de ti. E sei que vais cosê-la de volta no meu peito e velar por mim, ao meu lado, até que a tua doce seiva volte a correr-me nas veias.

O teu filho


Imagem : Rust and dirt, Roger McLassus

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...