domingo, 14 de novembro de 2010

Cristal (Eternidade em III actos)

Acto II: A Duquesa



Ela representava os restos mortais de uma linha aristocrática extinta e esquecida. O sangue que lhe corria nas artérias empedernidas pela velhice avançada era o último vestígio dos Khroner, a família maldita que regera aquele pequeno condado durante mais de quinhentos anos. No entanto, Angela era uma mulher altiva, muito segura de si e que nunca hesitava em fazer-se valer dos seus privilégios de derradeira Duquesa de Khroner. Era a primeira a ser atendida nas lojas da aldeia ou da vila, era-lhe reservado o que de mais refinado havia para degustar e o que de melhor recorte havia para vestir ao seu corpo encurvado e senescente. Ela era gentil para quem se dirigisse a ela como Sr.ª Duquesa, admitindo mesmo que por uma vez ou outra se dirigissem a si como Sua Senhoria ou Sr.ª Khroner. Em relação a este último epíteto, o melhor era não abusar, pois mesmo Angela não gostava de ouvir o apelido infame demasiadas vezes, por muito estatuto que este tivesse.


Naquela manhã fria de Novembro, a Duquesa acordara com um solavanco violento que a fez erguer da cama repentinamente. Qual louva-a-deus bêbado, esbracejou inconsequente em busca dos óculos enquanto volteava a cabeça para um lado e para outro numa tentativa desesperada de perceber o que se estava a passar nos seus aposentos embebidos na obscuridade da pré aurora. Mas apenas o silêncio ensurdecedor se sucedeu ao tremendo baque abafado... E contudo, Angela sabia que já não estava sozinha...


Levantou-se com a calma a que noblesse oblige e iniciou o seu ritual diário de toilette. Ao dirigir-se ao espelho de madeira de cerejeira do século XVII que tinha sobre o toucador com igual antiguidade verificou algo muito invulgar. A sua imagem não aparecia nítida e contrastante com o luminar bruxuleante das velas espetadas no tridente de prata brasonado dos Khroner. Ela mal se vislumbrava na superfície de cristal e prata, apenas uma névoa aparecia, e rodopiava no sentido contrário aos ponteiros do relógio, arrastando o tempo consigo para um ponto branco baço que era o centro de toda a actividade. Angela assustou-se e num acto de pânico atirou com o castiçal para o chão.

Felizmente, as velas apagaram-se com o embate, não causando maiores estragos. Na penumbra de seu boudoir ela tentava recuperar lentamente o fôlego, quando subitamente lhe ocorreu uma antiga história que seu tio, o venerável Conde de Chambourcy, lhe contara.



O Vaso Eterno

Era um segredo antigo, dos tempos imemoriais que se sucederam à queda do Império Romano, quando os bárbaros saqueavam os despojos de Roma, Antioquia, Mediolanum, Carthago, Lutecia, Londinium... e o mundo civilizado entrava na agonizante primeira fase da idade das trevas, a era Medieval.

Era o início da Escola Universal Alquimista, onde sábios romanos, persas, orientais, árabes, hebraicos, gregos, germanos, egípcios, normandos entre outros se uniram pela primeira e última vez. O intuito final era atingir os segredos maiores da magia divina, da alquimia dos soberanos do Universo, o segredo da imortalidade da alma, a Pedra Filosofal. Numa primeira fase, muitos destes sábios morreram em resultado de experiências mal sucedidas, de misturas mortais de componentes, vítimas de conspirações entre facções...Ah, sim, a humanidade sempre fora pródiga em traição e jogos de poder.

Gaudentio era um patrício romano, filho bastardo de um poderoso senador e da sua amante dalmace, uma digna representante do povo eslavo que tanto sangue e suor romano exigiram em troca do controlo de suas terras a sudeste dos Alpes. Os seus antepassados maternos eram artífices do metal, fogo... e cristal.

Gaudentio aprendera com sua mãe alguns dos segredos incontáveis de como tratar, talhar e polir cristal e, como curioso inato, aprendera nas ruas e mercados muita da sabedoria antiga dos múltiplos povos que antes enxamearam a gorda e velha Roma. Era um virtuoso da magia prática com seres e objectos e aquilo que hoje se poderia chamar de um brilhante químico. Sabia quais os segredos que o fogo revelava, quais os elementos que viviam no âmago do cristal, e como os poderia invocar. No seu laboratório trabalhava juntamente com um foragido príncipe nardo e um velho alquimista egípcio. Juntos, trabalhavam o cristal na perfeição e criaram a solução para o tempo de espera que dizimava os clarividentes anciãos que aguardavam e desesperavam pela descoberta da matéria mágica que lhes conferiria vita aeterna, a Pedra Filosofal.

Gaudentio, Augutinius e El-Ashmeed construíram um vaso mágico de cristal, onde a alma se poderia refugiar durante séculos ou milénios até que fosse descoberto o segredo da carne imortal. Só então se poderia proceder ao transvase, o acto de passar a alma guardada no vaso para o novo corpo imortal.
O tempo tratou de fazer desaparecer completamente a Escola de Gaudentio e seus pares, e levou consigo o mistério do Vaso Eterno...




Angela sabia que era feita de carne mortal, e sabia que o fim estava próximo. Aquele estranho e insano episódio matinal poderia não ser mais do que um sonho que se arrastou para além do fim da narcose nocturna, mas era sem dúvida um aviso.

A Duquesa de Khroner não iria durar muito mais tempo na superfície da terra...

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