Acto III: A Lenda
Inspirada na antiga história que seu tio lhe contara, decidiu que era hora de visitar aquele homem tenebroso, aquela criatura que tanto transtorno lhe causava. Era hora de ir bater à porta de Mestre Fausto. Ia confrontá-lo, e perguntar-lhe que segredos guardavam aqueles cacos de vidro glorificado, aquela bonecada resplandecente, aqueles incómodos seres de cristal. Tudo na esperança de encontrar entre a parafernália de bibelôs desalmados uma última morada para o seu sopro imortal. O horror alimentado pelo catolicismo vigente de que um Inferno em chamas a poderia engolir para toda a eternidade fê-la tomar atitudes drásticas, tudo em nome da salvação da última das Khroner.
Mal Angela se aproximou da loja de Mestre Fausto ouviu a pesada porta de carvalho ranger e entreabrir-se. Ela sabia que era esperada, ainda que em mais de quarenta anos nunca tivesse posto os pés lá dentro mais do que duas ou três vezes.
- Aproxime-se Sr.ª Khroner, estava à sua espera – disse Fausto, com a sua voz seca e profunda como a caverna da alegoria.
- Salve velho diabo. Fostes vós quem andou a zombar de mim com partidas infantis para me despertar do meu sono?
- Não fui eu, mas sou capaz de saber que tenha sido. Ela passou por mim esta noite para me cumprimentar e disse que ia a tua casa.
- De quem falais? – perguntou Angela tentando passar por mais surpreendida do que de facto estava.
- Da Ceifeira, daquela que a todos visita pelo menos uma vez. –
- Um dos seus bonequitos assustadores, é isso que estais a insinuar? –
- Vossa Senhoria viu do que falo, quando se mirou ao espelho, quando sentiu o seu sopro gélido ao despertar, quando ouviu o cabo de sua gadanha a bater no solo carcomido de térmitas de seu quarto.
- Fantasmas? Pensais que me assusto assim tão facilmente? Não sou nenhuma catraia para me impressionar com historietas de tigres e traças e outras assombrações para tirar sono a crianças, ficai sabendo...
- Não diga mais nada Sr.ª Duquesa. Não é a primeira vez que tenho um Khroner na minha loja a tentar convencer-me que seus intentos são outros dos que o cá trouxeram. Quereis ver uma peça em particular, um artefacto arcaico do tempo das primeiras trevas, um pequeno e delicado objecto, um vaso.
- Não.... Sim,... como sabeis?!
- Foi vosso tio quem mo deixou à guarda, com o aviso de que mais tarde a Sr.ª Duquesa o viria buscar. Pois aqui está ele, este pequeno vaso de cristal antigo. É vosso, para fazerdes dele conforme seja vosso desejo.
Angela olhou para o vaso, surpreendida com o desfecho excessivamente rápido de sua visita. Aparentemente era apenas um vaso de cristal, simples e translúcido, sem nada que o denunciasse como mágico ou com poderes para enganar a eternidade. Fausto sorria tranquilamente, permitindo ao seu corpo magro e alto alguns momentos de descanso num velho cadeirão de veludo carmim.
- Mas estais seguramente a gozar com a minha pessoa. Para que quero eu isto? É alguma piada. Estais a divertir-vos às minhas custas, é isso, não é?
- Adeus Angela, a nossa conversa terminou!
Naquela manhã fria de Novembro, a Duquesa acordara com um solavanco violento que a fez erguer da cama repentinamente. Qual louva-a-deus bêbado, esbracejou inconsequente em busca dos óculos enquanto volteava a cabeça para um lado e para outro numa tentativa desesperada de perceber o que se estava a passar nos seus aposentos embebidos na obscuridade da pré aurora. Mas apenas o silêncio ensurdecedor se sucedeu ao tremendo baque abafado...
Angela ergueu-se e lentamente compôs-se do susto. Acendeu o castiçal de prata brasonado e aproximou-se do espelho de madeira de cerejeira do século XVII. Mirou-se e viu a sua cara pálida e ainda trémula do susto que a despertara. Tinha a cabeça pesada, como acontece quando temos um sonho demasiado intenso e perturbador.
Estava tudo no seu lugar, tudo na mesma... ela procurava por perturbações e parecia que nada se tinha alterado. Mas não era bem assim. Sobre o seu toucador, na intimidade de seu boudoir, havia agora um pequeno vaso de cristal que luzia com a primeira claridade do dealbar frio. Angela aproximou-se dele, primeiro com receio, depois, lentamente, com uma sensação de esperança e desafio. Ela estava pronta a fazê-lo, a tocar no vaso eterno, a saltar para dentro deste e para sempre iludir a morte. Era o momento, ela estava convencida de que era isso que desejava e nada iria demovê-la. Adeus carne fraca, a eternidade de Gaudentio seria o jardim de sua alma. Ângela soluçava e seu corpo tremia de antecipação. Mas a sofreguidão paga-se cara e num gesto de amplitude desmedida fez cair o candelabro no chão, onde a chama das velas foi encontrar pasto para progredir sobre o tapete persa do século XVI. Em menos de três minutos todo o boudoir estava em chamas, ardendo como se fosse o dia do juízo final para a Duquesa de Khroner. Em menos de nada, estava tudo acabado, toda a casa reduzida a escombros e cinzas...
Só no dia seguinte é que a polícia e os bombeiros puderam começar à procura dos vestígios mortais da Sr.ª Khroner. Encontraram apenas os restos calcinados de seus ossos e alguns vestígios do que antes foram os seus pertences. Pouco havia para reconhecer: os suportes da cama antiga, o espelho quebrado com a prata enegrecida pelo fumo e um curioso pequeno vaso de cristal, que dava a ilusão de ter no seu interior uma ténue luz branca a pulsar...
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Foi bom voltar a ler este texto, uma nova viagem por estes teus cenários... que apenas são um pormenor para a estória/destino que carregam. O final que fica sempre em aberto para quem quiser ficar a pensar nele (difícil não ficar a pensar). V*
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