domingo, 7 de novembro de 2010

Redenção (Acto II de III)



Eu lembro-me perfeitamente desse dia...

Aquilo que eu não me lembro é dos dias anteriores. Mas se os tentasse reconstruir, pegando nos destroços e peças soltas que me invadem a mente seriam algo assim:



9h15.
- Oi. Hoje atrasaste-te, não apareceste ao primeiro tempo. Nem parece teu, adoras Filosofia!
(Olho para trás e a única coisa que me lembro dela naquele momento é da sua expressão inquisitória. Como se eu tivesse que lhe contar tudo, explicar por que carga de água me ‘baldara’ a Filosofia.. Achei a atitude insuportável, ter que me explicar, ter que me justificar, ter que dar satisfações a mais alguém… afinal quem é que ela pensava que era, minha dona? Minha mãezinha? Que raio, era só uma namorada, porque é que para as mulheres tem que ser tudo tão claro? Branco ou negro, dizem elas. Detesto isso. Detesto que me controlem. Odeio que… bem, acho que é melhor parar)


12h43.
– Falta muito para esta seca acabar?
- Calma, mais dois minutinhos e estamos livres. Ficas sempre irritado quando temos duas horas de matemática antes do almoço. – (sorriso).
- Mas agora tens que fazer sempre comentários ao que digo ou deixo de dizer? Há sempre uma sentença no fim de cada coisa que te digo, sempre uma observação qualquer! Ou porque não vim de manhã, porque me farto desta merda, porque estou sem paciência, porque antes era mais atencioso e meigo contigo… irra, não te podes limitar a ver as coisas como elas são, só isso? –
- Vocês ai, algum problema?
- Não professor, está tudo bem. Eu é que fui a culpada pela agitação.
- Tu, sempre tu! Tu isto, tu aquilo, tem sempre a ver contigo, és o centro do universo, a menina perf…
- Oh rapaz, mas que parvoíce vem a ser esta? Não se trata assim uma menina, haja respeito. Ontem andavas só atrás dela e agora é isto? Mas o que é que tens na cabeça?
(Soa o toque de fim de tempo)
- Peço desculpa, vou-me já embora. (baixa a cabeça enquanto se levanta, pega no seu caderno e desaparece pela porta, sem olhar para trás…)



22h23.
A casa está mais sossegada por fim.

Isto aqui é como um covil, apertado, sufocante, asfixiante. Sinto-me a enlouquecer. Não quero mais saber de amor, é horrível, deixa-me nauseado, doente, fraco. É demasiado intenso para mim, demasiada pressão. Eu amo-a, até demais. Só penso nela, no seu corpo macio, no sorriso lindo que me encanta, na voz doce que me embala, naqueles olhos profundos onde me apetece viver para sempre. Mas não a entendo. Ela está comigo porque sim, porque o outro gajo de quem ela fala, o tal que está no 11º ano, o alto, louro e de olhos azuis como aquele jogador de futebol lorpa que ela adora, está sempre a descrevê-lo, que enjoo… uff.

Se ele viesse ter com ela, com o seu ar de Adónis dourado, idiota, se ele viesse ter com ela, era na hora. Deixava-me. Sou só um consolo e estou p’ra aqui apaixonado, a bater mal de amores!...

Sou um idiota, mas que estúpido, porque é que eu alinho nisto? Sou como sou, gosto do que gosto, já nem me importo com os outros, com o que dizem de mim, com as alcunhas de ‘freak’, ou qualquer que seja a inspiração daquele dia. Não suportam quem os desafie, quem não alinhe nos seus joguinhos e pertença à sua tribo.
E agora deixo-me cair nas mãos desta rapariga tóxica? Ela não me ama, quanto muito suporta-me! É falsa, só pode. Eu nem faço o estilo dela!... Não conhece nada do que eu gosto, diz que as minhas t-shirts são esquisitas, que raio de bandas são aquelas, pergunta-me sempre…

Quem me dera que simplesmente parasse. Sei que mais um destes momentos e o meu coração desfaz-se em pó. Demasiada expectativa. Demasiado esforço. Demasiado tempo a chorar por ti. É sempre o mesmo. No fim acordo só comigo próprio. E tu ficas onde estás. A milhas e milhas daqui, para lá deste mar imenso que sempre nos separará. E eu nunca encontrarei a minha casa no seio de nenhuma mulher.

Sou um visitante, não um inquilino. Chega. Vou matar este sentimento. Amanhã mesmo.


Não foi amanhã. Foi passadas duas semanas.

Pelo meio fomos ficando junto, passamos bons bocados nos braços num do outro, horas perdidas a trocar afectos. Mas a insegurança crescia, em vez de desaparecer. E a inquietude pairava no ar. Era como se atmosfera estivesse carregada de vapores de gasolina, saturada, prenhe de medo e ansiedade. Bastava uma faísca e tudo explodiria. E não foi preciso muito.

Poucos dias depois das aulas terem acabado, no dia em que ela completava dezasseis primaveras o dique rebentou. Não foi preciso muito, dirão. Ela virou-se para mim e perguntou-me se a amava. Ri-me. Ri-me com ar de gozo e espanto, tal era o horror causado por tal pergunta. Disse-lhe que não. Que não amava ninguém, que nunca amaria ninguém, que estava apaixonado por algo, mas que não era por ela. Estava apaixonado pela ideia romântica de mim mesmo, de ser uma alma solitária, que deveria estar só.



E fiquei só.

Nessa noite ela foi para casa, para junto dos seus pais, como sempre fazia, todos os dias. Jantaram, cantaram-lhe os parabéns e comeram bolo. O pai deitou-se de seguida. Como sempre. A mãe ficou a ver novelas até tardíssimo. Como sempre. Ela fez algo diferente.

Foi cedo para o seu quarto, não sem poucas horas antes ter ido buscar algo ao móvel dos medicamentos e guardado esse algo na gaveta do seu toucador. Fê-lo assim que chegou a casa, não fosse mais tarde faltar-lhe a coragem. Curiosidades do destino. Nessa noite a mãe adormeceu sem comprimidos, estava tão sonolenta que nem se lembrou da mama sintética. Quando a mãe a procurou, já de manhã, ela não respondeu.


Foi encontrada deitada na sua própria cama. Azul, quase violeta. Como a fita para o cabelo que ela usava quando criança.


Eu matei-a...

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