(NdA: texto anteriormente publicando nas notas pessoais da página de facebook do autor)
Com um gesto lento e tão longo como tinha sido o seu dia, eleva a sua mão direita em direcção ao rosto cansado. Ela é tão bela como sempre fora, pele suave e delicada, morena e cremosa como o leite com um ligeiro toque de café. Olhos grandes, amendoados, castanhos cor de mel, pestanas encurtadas pelos pesados óculos que tem que usar no seu dia-a-dia. A mão agora desliza para trás, dedos abertos para desembaraçar o cabelo escuro e levemente encaracolado. Daqui não o sinto, mas aposto que os seus cabelos têm aroma a frutos silvestres com um travo doce a baunilha. Conheço esse aroma de cor. Era o que eu sentia quando era a minha mão que desenleava o seu cabelo sombrio e sedoso.
Com um gesto lento e tão longo como tinha sido o seu dia, baixa a sua mão direita em direcção ao toucador e abre uma pequena gaveta ornada com um puxador de marfim. Retira os pesados óculos e pousa-os sobre o toucador. Olha-se ao espelho e demora, demora um tempo infinito a se reencontrar. Mas o espelho está vazio. Ela está a olhar para si própria, mas sente-se nada, vazia, a flutuar em perpétua desolação. A mão procura algo, primeiro devagar, busca com firmeza e estanca de súbito. Encontrou o que procurava.
São 22h21.Estamos a 16 de Junho, dia do seu décimo sexto aniversário, e ela está só, no seu quarto, que a acolhe desde que saiu do berço que ainda hoje está guardado no quarto dos pais. Ela está sozinha. Não deveria estar. Ninguém deveria ficar abandonado a si mesmo, especialmente neste dia. Hoje a palavra é fria. Cortante. As palavras foram cruéis, insensatas, duras, más. Maldade, pura maldade. Porque tanta crueldade? Afinal o que é isso do ‘amor’? Não era suposto ser respeito, carinho, afecto, ternura, compreensão… ? Porque é que ela foi magoada de forma tão violenta. Nem uma nódoa negra ou escoriação no seu corpo de pele morena e macia. Mas a sua alma sangrava, deitada no chão, chorava, deitada na lama que cobria o chão, soluçava, com a cara enlameada.
São 22h46. Ela está só no seu quarto. Não deveria ser assim, não hoje, não neste dia. Ela sente-se morta por dentro. Mas ainda respirava, pois quando encostou a cara redonda, nariz pequeno e faces pálidas, quando encostou a boca ao espelho este embaciou com o seu suspiro. A mão esquerda também se juntou ao encontro e veio aninhar-se junto dos cabelos pendentes, encostados ao espelho que agora tinha uma mancha que se distendia e encolhia com o ritmo profundo dos seus suspiros. Porque ela suspira, ela sabe. Sempre suspirou por ele. Suspirava que ele notasse que ela o olhava. Que fingisse que não o via quando ele passava e lhe lançava um sorriso de menino travesso. Que ele soubesse que quando ela elogiava aquele jogador de futebol que era alto e loiro e de olho azul, estava a pensar nele, um miúdo meio freak, com roupas de bandas estranhas que mais ninguém conhecia, moreno como ela, cabelo negro e meio despenteado, sorriso torto e de olhos castanhos profundos. Como a admiração que ela tinha por ele, profunda como o mar. Onde ela se afogava cada vez que ele lhe tocava.
São 23h19. Ela está só no seu quarto. Não deveria ser assim, não hoje, não no dia em que ele foi cruel ao ponto de lhe dizer que não a amava, que não amava ninguém, que nunca amaria ninguém, que estava apaixonado por algo, mas que não era por ela. Estava apaixonado pela ideia romântica de si mesmo, que era uma alma só, que deveria estar só. Mas era mentira, ela não acreditou nele. Ela amava-o com toda a força com que os seus braços o conseguiam abraçar, ela amava-o. Com todo o carinho com que o ouvia falar de bandas estranhas que mais ninguém conhecia. Os dois, morenos e apaixonados, abraçados em beijos infantis, em beijos doces e suaves, como a pele dela. Ela amava-o quando lhe perguntava se ele gostava da sua roupa nova e ele dizia que ela ficava quase tão gira como a sua actriz favorita. Quase. Nada mau, supunha. Mas chegaria. O quase? Quase que gostava dela? Quase que a amava? Quase que lhe oferecia o seu coração. Mas nunca o fez. E hoje deitou fora o dela e fê-la sangrar. Não por fora, não havia uma única nódoa negra ou escoriação. Mas a alma dela sangrava. Abundantemente. E o sangue escorria, por entre a lama.
São 23h41. A mão procura algo. E encontra. Ontem a gaveta estava vazia, tinha apenas uma fita de cabelo antiga, que ela usava quando tinha sete, oito anos. Era azul, quase violeta. Aconchegava-lhe os cabelos, pois quando ela era menina os caracóis eram maiores, mais rebeldes, mais soltos, mais vivos e brilhantes. Hoje são frágeis, pequenos, débeis, submissos, enfraquecidos e mortiços. Tal como o seu olhar. A fita já não estava na gaveta. Ela deitou-a fora, junto com os sonhos que tinha construído. Com sete, oito aninhos, o mundo era um enorme parque de diversões aberto e divertido. O parque fechou, o carrossel já não gira e gira, já não cheira a algodão doce e em vez das músicas alegres do realejo só lhe soam os sons agrestes e violentos que algumas das bandas mais estranhas que ele lhe dera a conhecer. A fita está no lixo mas a gaveta não está vazia. Tem lá dentro um frasco. A sua mãe dará por falta dele, mas mais tarde, quando terminarem as novelas e ela for para a cama. Afinal, comprimidos para dormir não são boa companhia para a sua mãe ver novelas. Nem para ela. Muito menos hoje, dia do seu décimo sexto aniversário. Dia em que se sentia morta por dentro. Abandonada à sua sorte. Profundamente triste. A vogar em perpétua desolação.
São 23h58. Faltam dois minutos para terminar o dia do seu décimo sexto aniversário. Ela olha no espelho e diz:
‘Por favor, pára! Não escrevas mais, pára antes que seja demasiado tarde outra vez!’
São 23:59h. Dia 16 de Junho, dezoito anos depois. O tempo parou. Vejo o cursor a piscar mas não percebo o que se passou.
Não fui eu que escrevi o parágrafo anterior…
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