Jeff Buckley foi uma gota de cristal num rio imerso de ruídos sentimentalistas.
Sofredor da mediocridade do mundo, celebrava desenfreadamente a dor que o mundo lhe provocava. Deambulava-se pela vida com o desejo ardente de paz e felicidade. Via-se, também, constantemente fustigado pela necessidade de descobrir a essência da vida e do amor. Apesar de toda esta complexidade aliada à sua pessoa, Buckley carregava paletes de exaltação às maravilhas com que a vida nos podia brindar. O mundo via um sonho com pernas passear-se por ele. Era ele, era o Buckley.
O presente é uma rajada de vento futura de um pretérito perfeito cujo alento resume-se ao intento de destruir o que já foi feito. Consciente da efemeridade da vida, julgava que seria sempre demasiado novo para dar pequenos passos e sempre demasiado velho para querer alcançar a poltrona.
Intrigado no que se baseavam os alicerces da vida, edificava sucessivamente sonhos e mais sonhos. Eram sonhos sonhados por um sonho. Eram sonhos de uma vida para uma vida. Edificava-os incessantemente.
Em ode constante ao sentimento, viu desvanecer-se prematuramente num sonho. Buckley arquitectava maresias de fantasias num mundo demasiado pequeno e com tamanho espaço para demasiadas fobias. Era um mundo que o assustava, intrigava, que o deixava estupefacto, incrédulo entre muitos mais vocativos. Assim como o rio que corre e o homem nasce e morre, o génio fica para a eternidade.
As memórias são meras chamas de fogo, que são fáceis de acender mas que tardam em se apagar. Por analogia, Jeff Buckley seria um incêndio em larga escala pois ainda hoje provoca um choro de saudade a muita gente. Jeff conseguiu fazer emergir a sua concepção acerca da vida através de uma maneira genial. Conseguiu com os sentimentos de uma geração flutuassem, juntamente com ele, ao largo do Mississipi. Carregou na sua alma o sonho que prevalece erecto, ainda hoje, em cada um de nós. Foi sublime.
Um último adeus que não foi dito. Uma dor muito além do que está escrito.
Haverá sempre um cristal cintilante que brilha no fundo de um rio. O rio flui, a vida continua. Continua comandada pelo sonho, graciosa. Sonho brio.
Na tenda do chá, onde os pensamentos fervem em poucos malabarismos e as palavras querem-se sem açúcar, trocam-se duas colheres de conversa.
Apesar de não existir uma porta a trancar a entrada, nunca aparecem mais presenças e isso torna a atmosfera da tenda como o interior de um balão de ar quente. Por esse motivo o bule foi dispensado por falta de utilidade e mais tarde foi contratado o sopra-chá, que para além de soprar para dentro das chávenas, não tem consentimento para fazer mais nada. Sopra à vez, de forma neutra e usa um sopro diferente para cada chávena por uma questão de higiene. A água para a infusão, essa, escorre pelas paredes suadas da tenda e deixa todos inquietos com o movimento de bailarina destas. Quem morre de ansiedade são as saquetas que incham de contentamento só por imaginar a água trapezista. Finalmente, as colheres tilintam contra a porcelana murmúrios convexos no mesmo instante em que o vórtice aturdia o olhar do sopra-chá.
Ao fim de algum tempo, o som metálico, ritmado e desencontrado da infusão faz cara de palhaço e todos escondem o sorriso dentro da chávena. Lá em cima, longe dos olhares horizontais, o pires roda na corda bamba, a mesma corda que segura a saqueta do chá...
_É hoje o concerto! Temos bilhetes para um camarote !
_Quantas pessoas podem estar no camarote ?
_ Acho que cinco…
_Tens mesmo o bilhete do camarote? Onde é que o arranjaste ..?
_ Não te digo !! tenho !! e é hoje ! …rias-te …
Esperávamos há meses pelo concerto do Gilberto Gil , ao vivo no Coliseu . Ouvíamos todas as músicas, vezes e vezes sem conta.
O “Realce”, rolava no gira-discos, sempre para o mesmo lado e sem tonturas ! Ouvíamos e dançávamos, horas seguidas, tardes inteiras. Sabíamos as letras de cor.
“Realce …..Quanto mais porpurina …melhor …l ala la ….”
Pulávamos e respirávamos tudo o que era positivo naquelas músicas que só nos faziam crer que tudo, mesmo tudo e apesar de tudo …iria ficar sempre bem .
_ Tens mesmo os bilhetes ??!! Eu nem acredito
- É só um bilhete, só um , parva ! É um camarote …
_E quem é que vai ?
_ Vamos nós todos …
- Mas somos mais que cinco….
_Não faz mal, vais ver que cabemos lá todos .
Doía-me a barriga , a espera dava-me cólicas e formigueiro na boca do estômago… as horas nunca mais passavam !
_ Põe o “Realce” outra vez …
O disco dançava connosco, sem saber o que nos fazia, rodava e rodava . A agulha gasta dava mais carácter aquela voz clara.
_ Jantas cá ?
_ Tenho que telefonar para casa …. A minha mãe vai já dizer que não …mas enfim …não vou perder este concerto nem por nada .
Peguei no auscultador do telefone , era preto e reluzia … disquei os números , 3---1---3---7---6---, naquela altura os telefones tinham poucos números e eu gostava de prender o disco com força e ouvir o ruído da marcação do número.
_ Está …sou eu mãe…Olha ..? Posso jantara aqui … e ir ao concerto do Gilberto Gil , logo à noite ?
_ Olá filha, podes. Claro que podes, tem cuidado. Vai ver o Gilberto Gil que é muito bom. Por favor não venhas tarde.
_Posso mãe??!! Posso mesmo ? – Está bem eu não vou tarde , prometo . Beijinho mãe, obrigada .
Desliguei o telefone e nem queria acreditar …
_ Posso ir ! A minha mãe deixa-me, e posso jantar cá. A que horas vem a tua mãe ?
_ Sei lá, vem sempre tarde …fazemos uns ovos mexidos e vamos , temos que lá estar cedo .
_Embora até ao café ver quem lá está …temos lugar para cinco !
_para cinco…ou mais !! quantos couberem ….
Ríamos sem parar.
Chegámos devagar porque não corríamos , quase nunca corríamos .
Chegámos como quem não quer a coisa.
_Sabem que mais ??? temos um bilhete para um camarote no Culiseu , para ver o Gilberto Gil , hoje …!!
Olharam todos para nós, como se nos estivessem a ver com cabeças de porco !
_ A sério ?!
_ Sim …a sério… quem é que quer vir ?
Todos queriam ir , claro . Mas o bilhete era só para cinco …
_ Os camarotes só têm cinco cadeiras …
_ Não faz mal , ficamos uns em cima dos outros …ficamos em pé !
_ Por mim tudo bem , se nos deixarem entrar …
_ Mas como é que tens o bilhete ?
_ Aranjaram-me …
_Quem ?
_ Um amigo da minha irmã , que conhece o Gilberto Gil ..
_ Mentirosa ! És tão mentirosa …ria-me...
Ninguém acreditou
Dizias isto com um ar de quem não dá importância nenhuma a coisa nenhuma .
Os rapazes olhavam uns para os outros com olhos que falavam …. _ arranjas as cenas para logo ?
_ Ok arranjo, do melhor …
_Ok , mas vê lá o que é que arranjas , não quero gajos a mandarem-se do camarote lá para baixo ! Riam-se ....
Ouvia e não queria saber se queria ouvir ou não.
“ Seja o que Deus quiser, é um concerto …e vou querer rir também !” pensava sem fazer barulho .
Nem comemos nada de jeito, fomos todos fazer ovos mexidos com batatas Pála- Pála , engolimos uma comida sem sabor .
O disco continuava a rodar …sem parar, as colunas estavam no máximo e dançávamos de prato na mão , depenicando bocadinhos de ovo e batatas fritas .
Desacertava-mos os passos ao som dum reage tão suave , tão envolvente …
Apanhámos o 44 que nos deixava na Av. da Liberdade, depois era um instante até ao Coliseu .
Quando chegámos à porta, já se amontoava uma multidão que ansiava por entrar por ali dentro, ainda faltavam algumas horas para o concerto.
Bebemos cerveja num café , mesmo ali em frente , bebemos cerveja até as portas , do Coliseu, abrirem …nem sei quantas cervejas bebemos .
Apagávamos os Sgs Filtros nos gargais das garrafas de cerveja , os rapazes guardavam as pratas dos maços de tabaco , mais tarde faziam os cachimbos .
Entramos todos no meio dum enorme empurrão, quase que não havia controle nas entradas , e nós só queríamos ouvir o “Realce” e o, …”no woman no cry……” ao jeito do Bob Marley , cantarolávamos pelas escadas cima.
Cabíamos todos no camarote, eu fiquei “à janela” , as meninas à frente para verem melhor , os rapazes atrás ..para arranjarem “as coisas” .
Fumávamos cigarros ,…. Naquele tempo fumava-se nos concertos do Coliseu.
O Gilberto Gil entro no palco, as luzes acenderam-se, eu hipnotizei-me , imediatamente, pela enorme estrela dourada , pintada na sua cabeça , quando se voltou …vi que tinha uma Lua do outro lado
As luzes faziam com que brilhassem , faziam reflexos de pequenos cristais de caleidoscópio , eu olhava fascina … e …ia fumando o que me passavam para as mãos , cada vez mais feliz , embriagava-me no som , nas letras e naquela estrela virada para mim .
Não me voltava para trás , só sentia o calor de todos os corpos que se moviam perto de mim , ao som da música . Entre odores e fumo, não sentia mais nada , só o ritmo e o fascínio das luzes .
As luzes faziam brilhar a Estela e a Lua … que pareciam enormes …
Sem me aperceber , batia palmas sem ritmo …
Não acertava o compasso, as mãos não obedeciam ao ritmo da música que se instalava dentro de mim…
olhando para as pessoas , lá em baixo, pela “ janela “ do camarote, via toda a gente a bater palmas num compasso que já não era o meu , as luzes começaram a brilhar com mais intensidade….
Ia batendo palmas , assim como sabia , fumava o que me passavam para a mão , entre cigarros e cachimbos ..Descompassava-me, cada vez mais.
Apercebi-me que me assustava, que já não compassava, que já não me sabia obedecer , que já não “mandava” nos meus gestos, e a partir daquele momento…nunca mais fumei o que não sabia .
Depois de vários retornos ao palco, o Gilberto Gil acabou o espectáculo. Assobios que pediam mais , e mais .
Palmas compassadas que não ritmavam com as minhas .
Saímos no meio duma massa de gente feliz, estavam felizes , pareciam felizes… todos se riam .
Eu deixei de rir, assustada com o meu descompasso,
Voltámos para os Olivais. No caminho cantavam as músicas que ouviram no concerto, eu …estava calada , olhava-os com os olhos muito abertos …esperando que passassem as horas e que me conseguisse ritmar outra vez .
Demorámos imenso tempo a chegar aos Olivais , a mim pareceram-me horas infindáveis , as paragens estavam cheias de gente , que bem nos tinha sabido um carro naquela altura , mas carros ..não os havia assim para toda a gente .
Ríamos por isso mesmo e por tudo e mais alguma coisa
Chegámos ao “prédio” alto, nos Olivais , eu nem sabia como iria para casa …
Ficámos a “matar” o resto do tempo sentados nos degraus das portas , continuavam a fumar …. Eu não queria fumar mais nada . Já não me ria, já não me dava vontade de rir …
_ Vamos até minha casa? Ficamos lá um bocado…
_ Está bem , eu nem sei como vou para casa agora , tenho medo de ir sozinha…tenho que atravessar o Vale do silêncio ….a esta hora …e já foram todos para casa…
Entramos em casa, era mesmo ali, no R/C , do prédio alto, nos Olivais .
Sentimos vozes e luzes na sala do sofá amarelo . Falavam brasileiro, parecia brasileiro , e naquela altura era tão bom ouvir falar brasileiro…
Ouvimos o som baixinho duma guitarra … alguém cantava , assim com uma voz exactamente igual à que tínhamos estado a ouvir durante horas,
Olhámos uma para a outra , incrédulas, abrimos a porta da sala do sofá amarelo .
E sem acreditarmos, vimos quem cantava assim tão suavemente. Sentado no sofá amarelo, acompanhado com mais duas ou três pessoas , estava o Gilberto Gil, horas depois do espectáculo, a tocar ali, naquela casa no meio dos Olivais.
_ Tu estás acreditar no que estás a ver…?
_Não …não estou
Desatámos a rir … mas porque raio é que o Gilberto Gil ali estava ….?!
_-tu sabias que o Gilberto Gil vinha para tua casa ?
_ Eu não !?
“..não …não chore mais …. No woman no cry…..”…. os dedos brincavam com as cordas da guitarra .
Parecia não estar a acreditar no que via
_ Mas olha lá …que raio de coisa esta …mas porque raio está o Gilberto Gil em tua casa …?
“ …quanto mais purpurina …melhorrr….” e recordava a música , e a estrela agora já não brilhava tanto..nem a lua , eram douradas , pintadas a ouro .
_ Espera …vou perguntar à minha irmã … o que se passa aqui …
“realce…..realce….quanto mais serpentina melhorrrrr….”…
.
o susto já me tinha passado, e meio embasbacada , sentava-me na pontinha do sofá amarelo , ele sorria-nos com uns dentes tão brancos e com uma voz que nem se explicava ,,,,
“..não desepera quando a vida fere fere …realce …realce quanto mais serpentina
melhorrrr….quanto mais purpurina ..melhorrr …”
_ Já sei ….já perguntei à minha irmã , parece que o motorista do Gilberto Gil , é amigo da minha irmã…e resolveram vir cá para casa no fim do espectáculo ….
Olhei com os olhos muito abertos ….Desatámos a rir às gargalhadas … sempre queríamos ver se amanhã, os outros acreditavam em nós …
_ hahaha , amanhã ninguém acredita em nós !
Ríamos e ríamos e começávamos a cantarolar as músicas que ele nos tocava , assim como um presente que nos dava , entre cervejas , cigarros de fumo e gargalhadas espalhadas no meio do som .
_ Eu nem acredito … phá! Mas que raio de coisa…e tu sabias disso
_ Eu não …
E assim ouvimos um mini- concerto , depois dum grande concerto, o mais inesperado da minha vida .
Ficámos por ali sentados no chão, encostados ao sofá amarelo , até o Sol nascer e a Lua adormecer...
“Acordei de noite. Estava frio, muito frio, e senti os pés gelados e a alma dormente. Esperei que passasse. Fechei os olhos, enrolei-me na manta pesada. Fiz de conta que não era eu que estava ali. Podia ser que a vontade adormecesse. Não demorou muito tempo, e tive de me levantar. Já é tempo. Arrastei-me até à divisão contígua, os pés descalços quase roxos. Por não conseguir endireitar as costas nem dobrar as pernas totalmente, tive dificuldade em sentar-me. A custo o jacto saiu, e o alívio foi imediato. Só quero voltar a dormir, mas não posso. O dever chama-me e há gente à minha espera. São horas. Talvez devesse cortá-las. São espessas e estão sujas. Mas protegem-me do ar cortante da rua. O mesmo casaco, as mesmas botas pretas. Porque me tremem tanto as mãos? Malditas artroses. Custa-me agarrar esta côdea de pão duro e o café está queimado. Mas, cá vou novamente. Tudo preparado. Toma, come que precisas porque estás grávida. E tu também meu querido. Bebe o leite. Olhe, que desta vez fica mais longe. Consegui guardá-lo a todos, e o saco está cheio desta vez. Ontem ainda tive dúvidas se acabava tudo a tempo, mas apesar deste cão que tenho a morder dentro dos ossos, consegui. É difícil, pois o saco está pesado, os animais já estão cansados e tem fome. Mas fazem-me falta para a viagem. Normalmente passo despercebido, raramente olham para nós duas vezes, mas não nesta noite. As crianças são o melhor, e gostam sempre do que lhes dou. Quase sempre consigo fazê-las sorrir, e é raro alguma me tratar mal.” Quando tocou o sino sentou-se na manta castanha, aberta sobre o primeiro degrau, e enrolou-se. Ajeitou a Maria e o José ao colo, abriu o saco e tirou o mais pequeno. Colocou-o ao lado da perna. Agora apenas restava esperar pelas pessoas. Um casal bem vestido foi o primeiro a chegar. Nicolau estendeu a mão, mas dos dois não obteve qualquer reacção. Passaram adiante e altivos entraram pela porta enorme de madeira de carvalho e ferro. Entretanto foram chegando mais pessoas, famílias, avós e netos, mães, pais e filhos, tios, primos, alegres ou pensativos, outros cabisbaixos e sós. Alguns aproximaram-se e sorriram, estenderam a mão à latinha ou somente pararam a observar curiosos. Chegou uma menina de uns 6 anos. Cabelo castanho, liso, cortado abaixo da orelha, franginha curta, olhos grandes e espertos a espreitar por detrás de uns óculos pequenos cor-de-rosa. Escutou. - “Olha mãe, o Pai Natal sabe tocar guitarra!” - “Não é uma guitarra amor, é um cavaquinho, e não é o Pai Natal!” - “É o Pai Natal sim mãe. Não vês que tem barbas brancas e compridas e um casaco vermelho? E se não fosse o Pai Natal, não estava aqui sozinho a tocar música ao frio na Noite de Natal, não achas? E trouxe presentes dentro daquele saco… achas que ele me vai dar uma prenda?” A mãe sorriu. Como explicar à sua menina, ao seu amor tão puro que em tudo via magia e amor, que aquele pobre diabo era apenas um mendigo, provavelmente sem família e sem abrigo, que tocava músicas à porta da igreja em troca de umas moedas? Abriu a carteira, procurou uma moeda, mas só encontrou uma moeda de 2 Euros, já destinada a donativo na missa do galo, e outra de 20 cêntimos…muito pouco, afinal era noite de Natal, e o homem estava ali sozinho ao frio… lá encontrou uma nota de 5 euros, e após um momento de hesitação (“…este ano as coisas estão más e nas compras de Natal gastei demais…”), resolveu-se a dar a esmola. - “Toma filha, põe dentro da lata, e depois vamos para dentro que está quase a começar.” Mas a menina não respondeu, não se mexeu, nem pestanejou. Estava totalmente absorta na melodia que saia daquele instrumento tão estranho que parecia uma viola pequenina. Mas o que mais a hipnotizava era a agilidade dos dedos retorcidos de unhas escuras do Pai Natal, naquelas cordas prateadas. - “Vá lá querida, vamos para dentro que está frio”. Como a inanição e espanto da menina se mantivessem, deu-lhe uma mão, e dobrou-se para com a outra depositar a nota, mas o mendigo tapou a lata impedindo o depósito. -“Não, obrigado. Aí dentro não pode pôr nada, mas se a menina quiser – olhou para ela com, um sorriso enigmático - pode tirar.” – a voz do homem era surpreendentemente límpida e jovem, enquanto se levantava. Surpreendidos quer pela voz, quer pela elevada estatura de Nicolau, alguns atrasados apressados estacaram a observar a cena. - “Ah! Desculpe, não sabia…pensei…” – balbuciou a mãe num misto de emoções entre o espantado pela intervenção, o envergonhado por ter podido ofender o músico, e o aliviado por voltar a guardar os 5 Euros. - “Eu disse-te mamã, tu é que não acreditaste! É o Pai Natal sim!”. E Clara viu que a cadelinha preta era uma fada bondosa de asas brancas, e que o cãozinho castanho era um duende baixo e gordinho, de ar patusco e brincalhão. - “Podem todos tirar uma rifa”. – Disse o gigante contente, dirigindo-se e estendendo a latinha das rifas à meia dúzia de crianças que o rodearam entre saltinhos e risotas. – “E depois digam-me os números, que dentro deste saco estão as surpresas!”. - “Pai, saíu-me um 2!” – Gritou entusiasmado o João, virando a cabeça para cima enquanto o pai, emocionado pela alegria daquele filho que aos 10 anos já conhecera tantos hospitais tomara tantos medicamentos e fora tão retalhado, como ele, a mãe e os seus dois irmãos todos juntos nunca o seriam, lhe fazia festas na cabeça de caracóis pretos. - “Pai é uma viola! É mesmo o que eu queria! Obrigado!”. E desta vez, as lágrimas dos olhos tristes do João, e cansados de seu pai, foram felizes. - “Avó, eu ganhei um casaquinho, igual ao do Pai Natal, mas cor-de-rosa, a minha cor preferida!”. E a avó, admirada com tudo aquilo, no meio de um sorriso olhou a neta de longos caracóis louros. – “Que bom filha, mas Verinha, olha que é um cavaquinho. E por falar em casaquinho já reparaste que este cãozinho também tem um casaco de malha branco, como tu, eheheh?”. E a idosa senhora fez uma festa à cadelinha. Enquanto distribuía as prendinhas, todos instrumentos de corda feitos à mão por si, Maria, toda vestida de branco, e José, alegremente abanavam as caudas e lambiam as pernas do dono. Todos estavam alegres, bem-dispostos e reconhecidos ao despedir-se do homem. A menina de cabelo liso castanho, dentro do seu coração, agradeceu a Jesus por ter pedido ao Pai Natal que oferecesse música às crianças e tocasse à porta da igreja. Também pediu à mãe que convidasse o Pai Natal a ir cear a sua casa, mas a mãe disse que não, que já era tarde. A Nicolau, doíam-lhe os ossos, mas sentia-se quente por dentro, contente por mais uma vez ter cumprido o seu objectivo, o de fazer sorrir as crianças, o de dar amor e recebê-lo em troca. Mesmo que alguns adultos não tenham percebido que é esse o verdadeiro Natal. Não quis entrar na igreja, e quando a última cabecinha sorridente desapareceu por detrás da porta, pegou nas suas coisas, o saco estava vazio, e pôs-se novamente a caminho, ladeado pelos seus melhores amigos. Calcorreou as ruas, rindo-se de satisfação por ter corrido tão bem este ano, por ter ficado tanta gente feliz. Apesar do que ouvia as pessoas comentarem nas ruas, quando passavam por ele como se fosse um ser invisível a remexer no lixo, que a vida estava cada vez mais difícil e que este ano não haveria Natal. Mas, para além de saber criar belos instrumentos, com os desperdícios das lojas e materiais que recolhera nos caixotes do lixo, e de saber tocar belas músicas de Natal, tinha outro Dom: o de adivinhar o futuro das pessoas que acreditam na magia. Sabia que em breve o João curar-se-ia da doença misteriosa, viveria muitos anos, seria um músico famoso que, em suaves melodias, traria ao mundo um pouco mais de beleza, e que o seu pai poderia voltar a dormir todas as noites sem medo de ao acordar ter perdido o seu filho e a luz dos seus olhos tristes. Sabia que a menina sonhadora que acreditava e via o mundo da magia, no mundo real viria a ser o equivalente a uma fada, uma médica atenciosa que, com as palavras certas, daria esperança aos doentes e coragem às suas famílias, e com o seu Dom, salvaria muitas vidas, trazendo ao mundo um pouco mais de beleza. E que uma outra seria uma bailarina graciosa que a brilhar em iluminados palcos, faria brilhar no mundo um pouco mais de beleza. Nicolau sabia também muitas outras coisas que aprendera nessa noite, e em todas as que já vivera durante quase 1000 anos, e foi pensando nelas até chegar ao seu destino. Apenas o esperavam uma casinha pobre e fria, de duas divisões, em cima da mesa, uma fatia de Bolo-Rei que lhe ofereceram na pastelaria por ser véspera de Natal, e um cafezinho amargo que fizera ao acordar, mas estranhamente não se sentia só nem miserável. Sentia-se, isso sim, em paz e realmente feliz por não ter coisas que lhe desviassem a atenção da alegria simples do seu Natal. Pegou nos cãezinhos ao colo quando começou a chuviscar e lá apressou o passo até chegar a casa, para se sentar a comer o bolo e tocar cavaquinho. No caminho, passou sempre despercebido, porque já ninguém acredita no Pai Natal.
Passava os dedos como quem toca teclas de piano no muro alto Cantarolava baixinho porque não sabia cantar alto Os dedos davam-lhe as notas imaginadas, os murmúrios confortavam-lhe apertos na garganta . Olhava o muro alto, lá em baixo uma praia de pescadores, sempre a assustou aquele muro desequilibrado, nem percebe como ninguém cai dali abaixo, nem percebe como alguém caí assim …de si abaixo !
Tocava um piano imaginário , fazia sons de garganta .
Lembrava a praia , a areia molhada numa noite fria …quantos anos ? .. vinte ? …mais …talvez trinta ...
Lembrou barcos de pesca com pescadores encardidos do sol e do salitre , histórias de marés e de raia miúda , conversas noite fora , encostados a cascos frios… lembrou-se do “Mar à Vista” ….
Passeava encostada àquele muro que nunca entendeu , tocava as notas que sempre gostou de ouvir . E aquela cor , aquela cor de pescadores, encardidos de salitre, aquela cor, que se esbatia na sua memória, não lhe saía da cabeça .
Trauteava rock em teclas dum piano clássico, enorme! Desenhado por ela naquele muro baixo, desequilibrado, perdido no tempo amargurado , agora parecia-lhe tão pequeno , tão perigoso ….sentiu aqueles grãos de areia grossa, húmida, fria, sentiu-a assim, no final dos tornozelos …lembrou-se que era assim ...
Hoje dia estava mais cinzento. Ali, o tempo sempre foi cinzento… naquele dia, o cheiro do peixe fresco agoniou-a, impotente ao tempo …naquele dia as pedras grandes, da calçada que pisava , torceram-lhe os pés ….!!
Tocava piano, em teclas enormes, sem som, deixou de gargarejar sons antigos. Não pares de cantar , nem que seja baixinho, não te cales, não adormeças esses grãos frios de areia grossa , naquela noite gelada , tão passada…
Naquele dia, ali, mesmo ao cimo da praia dos pescadores, a tristeza do que nunca foi , toldou-lhe a voz , embaciou-lhe o olhar !
para muitos é compras para dar à avó, para a avó dar aos outros, para outros que nem se sabe bem quem são, comprar o mundo e despachá-lo em milhões de kilos de papel e fitas
para tantos, uma época de pouco prazer e tanta memória, de quem foi, de quem nunca chegou, do que nunca fomos
e para si, como é o Natal.
Conte-nos.
Eis o desafio: Um conto de Natal, com a sua assinatura.
Era uma vez uma princesa sem nariz. Quando nasceu soltou-se dos braços da ama que, sem intenção, encontravam-se esticados para o lado de fora da janela da torre mais alta. Pela força do impacto a coroa cravou-se na tenra carne de cabeça-bebé e o nariz saiu decapitado. Uma vez que a coroa não se podia retirar, foram feitos dois buraquinhos no ouro liso para que a princesa pudesse ver, mais um buraquinho no sítio do nariz para o ar entrar e sair. O nariz, por sua vez, foi pisado por um cego que passou junto ao local no momento exacto em que o apetrecho da respiração se colocou entre o chão e a sola do sapato do homem em questão. Não nasceu cego, um dia estava ele ainda na idade do “já parece um homenzinho” quando adormeceu debaixo da máquina de costura da melhor costureira gaga do reino que, sem intenção, soltou duas agulhas em direcção aos olhos fechados, que fechados ficaram e fechados se mantêm e talvez fechados morram. A costureira nem sempre foi gaga, estava ela a tirar as medidas de umas calças para o coveiro sem um braço quando este, sem intenção, deixou o susto de morte sair da manga atada da sua camisa. O susto sem mais demoras entrou directamente para o espelho das provas da costureira e esta, cada vez que se mira nele fica com os pensamentos dobrados e repetidos. O coveiro, esse, ficou sem braço há pouco tempo e por uma questão de camaradagem, quando o seu amigo mudo pediu uma “mãozinha” para o ajudar na plantação de trigo. Assim sendo, como a plantação era muito grande, o amigo, sem intenção, deixou a foice cair um bocadinho mais acima da mão. Nada que se compare ao que sucedeu à língua do amigo mudo. Estava ele a pescar no rio da corrente solta, enquanto o seu gato sem cauda dormitava à espera do cheiro do peixe fresquinho. Como o dia correu mal, o gato, sem intenção, comeu a língua do dono e chamou-lhe um figo. Figo porque nunca gostou de carne. A história da cauda começou quando o gato se quis fazer amigo do ratinho sem orelhas. Esse ratinho morava com o rei da Rússia e esse rei fazia colecção de garrafas. Um dia, eram tantas as garrafas que o ratinho, sem rolhas e sem intenção, roeu a cauda do gato e assim conseguir tapar todas as garrafas. As orelhas do ratinho sempre foram de espiar através das portas, até que um dia o buraco da fechadura sem chave revoltou-se com o coscuvilheiro e, sem intenção, imitou uma chave e rodou cortando ambas as orelhas do ratinho. Quando a fechadura foi construída, foi-lhe concedida uma chave, mas numa noite aflita, um coração sem ama, trancou-se na torre mais alta do castelo e guardou, sem intenção, a chave no bolso das coronárias de sangue azul.
São estes momentos que fazem a minha inutilidade. Quando fico sentado numa cadeira, a desenrolar os novelos do tempo. Igualmente agora sinto, essa fragilidade colossal crescer dentro de mim. E a ferida que volta á carga, e arde, e arde… por não te ter dentro de mim! Já lá vai o tempo… o tempo em que te encontrava no tecto do meu quarto, fechado na doce utopia de ganhares uma forma literal no papiro. E eu sorria, e sorria, quando sentia as tuas botas de couro pisarem o meu Jardim interno. Foi contigo, e foi nas tuas rugas que aprendi a disfarçar as cicatrizes de essência. Tu eras os pregos que estavam nos cantos dos meus rasgados lábios... Tal qual se dizes a tua arte, fingida!
Hei hei hei ....... não estamos muito activos por aqui...::)
Toca a escrever .....beijinhos
Vou promover o blogue nas páginas do Face
beijos
Teresa Queiroz
estás aqui ? segues ao meu lado ? ...não conheço quem me abraça , não conheço o seu som estás aqui ? estás ao meu lado? já não te oiço !
não te vejo ... já não te sinto nunca mais te senti ... nem vejo a tua sombra estás aqui ? segues ao meu lado ...? nunca mais te consegui tocar assim como quem já se esqueceu do som..
abraça-me ..só porque te conheço revira-me dá-me voltas .... grita.me ou sussurra-me ... não me morras tal como prometes-te ...
não andas por aqui ! nunca mais te senti ao meu lado .... já nem sombra me és se calhar eu nunca mais te quis e asseio o teu abraço ? só porque já não sei quem me abraça outra vez ...
embaciam-me os olhos estás por aqui ? segues ao meu lado ? não te cheiro não te vejo
fizeste-te em nada tal como um dia me prometeste que farias ....? reviraste.me ... não te oiço ! nunca mais te vi ... deixei - te morrer... tal e qual como tu querias ...
abraça-me só porque te conheço o afago ... nunca mais te quero lado a lado .
Teresa Maria Queiroz Julho 2011 foto - Sonja Valentina