domingo, 19 de janeiro de 2014

Bolo de Laranja com Trovoadas Dentro



Quando o teu avô me viu pela primeira vez, era domingo e ele andava a passear de bicicleta. Passou por mim e pela tua tia, vestidinhas de missa, e disse que eu tinha olhos de trovoada. Vi-o afastar-se agarrado ao guiador, a olhar para trás com um sorriso de sorte e certezas, até desaparecer à esquina dos Armazéns Abel Pereira da Fonseca.

Depois passou a vir escudado pelo teu tio Sebastião, como um Dom Quixote com o seu Sancho Pança, como se eu fosse um moinho de vento. Sentavam-se na sala mobilada com a poltrona velha que a patroa nos tinha dado, mesa e duas cadeiras. Ele, com o cabelo bem penteado em ondas de Clark Gable, solene no seu melhor fato como se fosse tirar o retrato. O Sebastião e a tua tia Natércia iam para a cozinha fazer café e namorar à vontade e nós ficávamos ali, de joelhos juntos, a olhar um para o outro clandestinamente e à vez, um parto difícil de palavras a embrutecer-nos. Era sempre eu quem rachava o silêncio ao meio:

 – Fiz bolo de laranja. Queres?

Sempre achei esquisito como é que um homem que nos diz que temos olhos de trovoada, da primeira vez que bota os dele em cima dos nossos, fica depois calado como um rapazinho quando está a sós connosco na electricidade das matinés. Mas se calhar foi sempre por causa disso que gostei dele – tinha muito mais talento para agir do que para falar.

Não podia compreender que eu não sentisse, como ele, saudades dos montes de fábula negra, com suas cabeças gigantescas de granito, tufos de gestas e ervas rasteiras; do gado a regressar ao fim da tarde numa nuvem dourada de pó a levantar-se sobre as ruas da aldeia, das procissões lideradas por velhotas de buço, devotas de ditador. Não trabalhou nas minas de volfrâmio com vontade de fugir a cada 5 minutos, a sensação claustrofóbica de uma agonia que não passa nem no sono. Não ruminava remorsos de raivas antigas que nunca vazaram, a fermentar por dentro como mau vinho. Mas, se calhar, foi sempre por causa disso que eu gostei dele – tinha a brandura dos que não se deixam inquinar pela vida.

 – Estás com olhos de trovoada, mulher...

A velha poltrona do quarto de costura da Dona Nela, a mesa pequena e as duas cadeiras, nós dois de joelhos juntinhos, lá ao fundo.

 – Fiz bolo de laranja...

Gostava que o tivesses conhecido antes de se tornar no solitário devoto que te fazia o sinal da cruz na testa, à entrada de casa, e consertava rádios na varanda, com peças avulsas compradas aos coleccionadores de nadas da Feira da Ladra. Antes de começar a ir todas as tardes à Igreja de Benfica e a refugiar-se numa bolha imune ao passar do tempo, imune ao rugir do mundo. Mas, se calhar, sempre foi por causa disso que eu gostei dele – tinha muito mais talento para os avessos que para os direitos.

Lembraste de quando ele foi e veio de Benfica ao Beato a pé, numa tarde? Desaparecia depois do almoço e só o voltava a ver ao jantar. Às vezes andava à deriva por Lisboa sem dar conta de onde estava, sonâmbulo a avançar sinais vermelhos, estorvo na corrente a dar encontrões aos operários da Rua Augusta, que iam a caminho do barco das seis da tarde. E quando saia do transe, dava por ele outra vez na Doca do Poço do Bispo, como um velho rafeiro que volta a casa pelo faro. Mas se calhar sempre foi por isso que gostei dele – voltou sempre, guiado pelo norte magnético do instinto ou pelo cheiro a bolo quente.

Foi quando começou a ligar dos sítios mais estranhos – assustado na cabine telefónica de uma rua anónima de Caneças, Carregado, Viseu - que eu soube que o tinha perdido de vez. O teu pai saía do trabalho às pressas e ia buscá-lo onde ele estivesse, a tremer e de bolsos rotos, já sem o casaco, a carteira, os óculos de ver ao perto. Quando chegavam a casa, ia sentar-se na cadeira dele da cozinha e ficava para ali horas, zangado consigo próprio e a tentar traçar a rota que seguira quando saiu de casa, sem bússola nem mapas na memória. Eu ia lá antes de começar a fazer o jantar, passar-lhe a mão na cabeça.

 - Fiz bolo de laranja. Queres?...

A última vez que o teu avô me viu foi num domingo, quase 50 anos depois do primeiro. Estava internado e eu tinha passado a tarde ao quarto de hospital que ele dividia com um nonagenário cansado de viver e um homem mais novo, que coleccionava enfartes. As famílias deles em visitas demoradas e culpadas de fim de semana, falavam baixinho das doenças umas das outras, do Sporting, do casamento da prima Matilde. Em três horas o teu avô disse duas frases. Quando me senti vencida pelo silêncio e pelo cansaço, dei-lhe um beijo na testa e peguei no casaco para sair. Os olhos dele parados nos novelos de nuvens cinzentas, lá fora.

 – Vem aí trovoada...

Já passaram 15 anos mas, às vezes, ainda sinto um sobressalto a meio da tarde, a telefonia sintonizada na Radio Renascença, a chover lá fora e a imagem dele numa rua anónima qualquer de Setúbal ou Rio Maior, a tentar voltar para casa, assustado pelo norte magnético perdido. E eu sem bolo para lhe dar.

2 comentários:

  1. "Clouds come floating into my life, no longer to carry rain or usher storm, but to add color to my sunset sky"
    - Rabindranath Tagore

    welcome back

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  2. Um belíssimo retrato de uma personagem cativante. Excelente, como sempre.

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