sábado, 12 de março de 2011

5.4 (Conclusão)



Quatro passos para mudar. Mudar quem pensamos que somos, mudar o que não fomos, mudar a sensação de vazio que nos preenche, mudar o ritmo a que bate o coração inquieto.
Sempre me interroguei acerca da necessidade quase permanente que temos de encenar a nossa vida, em vez de a viver, porque será assim tão mais importante parecer do que ser?

Queria-te perguntar, porque me olhas assim? Não sou eu o teu reflexo, serás tu o lado de lá do espelho onde eu me perco sempre que sonho, sempre que mergulho na noite clara da nossa memória paralela, onde desconstruímos prazeres, descodificamos desejos, desconectamos anseios, desfazemos certezas e desmultiplicamos os dias em miríades de pequenas parcelas de interacção externa entre mim, tu e os que estão simultaneamente dentro e fora de nós?

Sempre me perguntei, porque temos que negociar, negar ou aceitar defeitos e vícios, nossos e dos que por nós passam e através de nós se reflectem? Sempre te quis perguntar se subirias comigo à montanha da nossa incerteza e não-existência, envoltos em oníricos pesadelos e melodias distantes que nos ensurdecem entre ondas de silêncio e palavras desgarradas de sentido.

Sempre quis descobrir qual de nós seria o mais forte, quem é o quem que é real, quão real é quem me projecta sobre este espelho diante espelhos, onde a minha persona se fractura e multiplica ad infinitum entre espaços dentro de espaços que se encaixam sucessivamente sem que nenhum seja verdadeiramente real, nem os que se projectam no ponto de fuga imaginário do mundo dentro de mundos, nem eu que me escondo do lado de fora de algo, certamente o reflexo de qualquer coisa que eu nunca poderei verdadeiramente capturar, entender, reflectir sobre mim mesmo e descobrir quem é de entre nós o mais fraco, a sombra dentro de sobras de luz que se perdeu nas esquinas abruptas onde de mim me escondo e por onde salto felino para me assustar quando passo enfim distraído pelo meio das ondas de sons do pensamento absorto.

Dou um quarto passo e vou mais além. Além do que acreditava ser dogma, o incontestado, o inaceitável. E aceito-me. Finalmente percebo o que não poderia compreender de outra forma e aniquilo-me. Destruo em mim o fascínio pelas coisas belas, liberto a criança-espelho da pesada pena de ter que se assumir pelo que dela esperam e exigem, sem dela esperarem que se revele como é, como realmente somos. Aceito a dor como uma outra forma de amor e de eucaristia. Celebro o Universo na sua intangível magnitude, reconheço que nada sou mas no entanto, reconheço-me como único e irrepetível, pois esta é a verdadeira beleza das coisas, a unicidade e a multiplicidade, verso e reverso, Cosmos e partícula, amor e dor, sem um não existe o outro, sem mim não existiria eu nem o reflexo que projecto sobre este mundo construído imperfeito. Pois não me cabe a mim entender a imperfeição, a sua natureza e utilidade, que já não contesto nem desafio.

Chego uno ao topo da Montanha, admiro os cinco horizontes que se estendem em perpétua plenitude e inquietação, o Universo perante mim.

Deste lado do espelho tudo vejo, pois sei agora que faço parte da matéria negra que mantém o delicado equilíbrio das coisas belas que para toda a eternidade hão-de ressoar em imperfeita melodia...

sexta-feira, 11 de março de 2011

Duche



Tu, tão formosa e cheia de graça, detrás desse vidro fosco cuja sombra clara me rouba o fôlego. Como se o brilho da tua pele me tornasse baço e oleoso, na mesma medida em que o gel te lava a alva pele de fada. Como se inflacionasse a minha flácida barriga de pouca cerveja e de muita fome de vida. Barriga de bicho do mato, sem letras nem óculos de ver a mesma vida, astigmatisada. Abdomenizo-me até à hiperventilação, enquanto tento pescar no mar revolto da minha trapalhice, 250 gramas de conversa de circunstancia.

Sais do duche, olhas-me esperando algo que já vomito ainda antes de abrir a boca e rebobinar mentalmente a alegadamente bela tirada com que pretendia quebrar o gelo. Sinto as têmporas dilatarem com o ricochete da tua toalha turca, com o reflexo esbranquiçado do teu olhar trocista de observadora atenta.

-"Desculpa hoje, cada vez que abro a boca ou entra mosca ou sai..."

E não acabei, inibido com a vergonha de me envergonhar. Como se estivesse preso no corpo de há 20 anos atrás, mas com a graça triste e deprimente da meia idade.

Encolheste os ombros, e viraste costas ao isco reles que usei, vestiste o piscar de olhos superficial, com que tentas içar-me do abismo de qual só vês um décimo.

-"Deixa lá, tens suficientes truques de magia para nem precisares de falar. Dorme!"

Escalaste os saltos agulha e enquanto abri e fechei os olhos, nem o vento da porta senti quando saíste.

Que frio tenho desde sempre!

segunda-feira, 7 de março de 2011

Instantes finais






III



Tento reconhecer-me num raio de sol


o vento agita a musica



dentro de mim,



confrontos sangrentos



a pele rasgada,



o corpo em febre



uma gota de água...





...a paisagem é agradável



pedaços de céu



um bando de aves



em torno da minha árvore



ensaio o voo



os telhados amontoam-se



continuo parada





ruas em prédios



multidão anónima



Lisboa



sem rio





já não há segredos



tudo foi dito



o mistério das flores



desvendado



o luar mágico



assim



o bosque secreto das palavras



sem nexo,



o tempo



devora o dia



i



n



d



i



f



e



r



e



n



ç



a ?!





Não sei o que sinto,



orgulho ferido



espelhos liquefeitos no olhar



pressa de viver



um breve gostar



sem saber de quem





a transparência do olhar



(verde)



provocou



a confissão



estranha,



confusa,



as palavras jorraram



numa tempestade



de Sol



o vermelho das faces



e dos morangos.





Silêncio.



O não entender.





Continuo perdida





Uma pedrada



no charco.





Amanhã



quero um olhar





mesmo que de outra cor.



domingo, 6 de março de 2011

Ritual.Rotina



Gostava de lhe morder a polpa dos lábios até ficar em sangue, em carne viva, e era sempre assim quando chegava ao enorme e vazio apartamento antigo dele, no centro da cidade. Beijava-o até doer aos dois. Gostava do sabor adocicado da hemoglobina dele, do perfume que se lhe desprendia do hálito, de lhe sorver o fôlego.

- Não sabes beijar como as pessoas normais, caramba? Tem de ser sempre até à hemorragia? – perguntou-lhe ele, da terceira vez - Que forma mais estranha de amar...

- E há outra?

Enterneciam-na as erecções inesperadas de rapazinho, sempre que o abraçava. Depois beijava-o, como se faz aos miúdos quando se magoam.

- Pronto... já passou.

Despia-o como se a roupa estivesse encharcada em ácido, com a mesma urgência dos incêndios, como só se é capaz quando se chega carregada de culpa. Pedia-lhe sempre que, por favor, não fosse gentil, não fosse como um animal dócil porque ali quem precisava de ser amansada era ela. Entrelaçavam-se como duas árvores, membros, ramos, troncos, mãos, pontas dos dedos a vibrar como folhas na nortada. Ela procurava-lhe o côncavo dos ossos salientes da bacia, da cova feita pela clavícula, encostava o ouvido ao peito liso e tenso a pulsar, sentia-se subir e descer com ele.

Era profundamente feliz sempre que estavam juntos e, ao mesmo tempo, profundamente triste. Todas as quintas-feiras, a mesma viagem até casa dele, no intervalo para o almoço, a mesma sensação de quase morte a invadi-la como uma infecção e um único antídoto para isso.

Também era feliz com ele quando não tinham tempo para mais do que um café. Sem outra intimidade que a de um olhar, sentavam-se à mesa, falavam e riam dos pequenos gestos diários que não conheciam um ao outro porque nunca tinham acordado juntos ou adormecido a ver os mesmos documentários, quando o serão se arrasta penosamente pelas paredes da casa. Quem diz que intimidade é isso é um perfeito idiota, costumava pensar. Não se pode deixar a intimidade instalar-se completamente, como um hóspede que vai prolongando a sua estadia indefinidamente e acaba por nos tomar conta da casa. A intimidade é uma sanguessuga, dizia-lhe ela.

- Isso é um contra-senso. - respondia ele, que era um idealista doce. – Assim é só sexo e masturbação intelectual.

- E de que pensas tu que é feita a paixão?...

Um dia, farto de ser um furo no horário, deu em lutar por ela. Apareceu-lhe no trabalho com um ramo de flores semi-murchas e entregou-lhe para as mãos a chave de casa.

- A partir de amanhã gostava de te ouvir entrar ao fim da tarde, como se fosses ficar para jantar e dormir, como se não te importasses de fazer disso rotina.

Voltou as costas e foi embora sem esperar uma resposta.

Soube logo que nunca mais o veria, como só percebe quem parte carregado de culpa.

5.3

“Olha nos meus olhos e não digas o que vês. Diz-me por favor o que não vês”


A criança-prodígio a todos maravilhava com os seus discursos sobre a beleza das coisas, sobre a amizade que nos une e narrava os dias de felicidade em que as ruas eram pátios vivos de brincadeiras e jogos entre meninos e meninas, em alegre convívio e sob o atento mas sereno olhar vigilante das mães, avós e vizinhas que se abeiravam dos parapeitos para assomar o rebuliço que fazia pulsar a cidade.

A criança-prodígio conta-nos de coisas que deixam mais leve o coração, conta-nos de coisas que assim queríamos que fossem contadas, daquela exacta maneira, com aquele exacto desfecho em aberto, com aquele preciso tom de que precisa de dizer o que tanto precisamos de ouvir contar. Homens e mulheres, professores, doutores e gente de todos os ofícios, credos e cores se junta, para a ouvir contar sobre a beleza das coisas, os dias felizes. Então o menino conta como foi, conta como é o mundo que existe na sua mente, lavra os campos da memória colectiva com o arado da sua imaginação e loucura infantil, leva-nos a saber mais sobre o mundo de que ele nada sabe, só sonha e descreve com minúcia e textura, a criança que tem o prodígio de nos fascinar é tabula rasa, pois cria a beleza das coisas que não experimentou, narra a felicidade que não viveu, pulsa uma luz volátil que nos deixa em rebuliço sem saber porquê, leva-nos ao desespero porque queremos entrar pelas ruas e pátios onde ela brinca alegre e desprendida. Esta criança é um espelho mágico que nos mostra que Branca de Neve é e será sempre a mais bela, que nós somos feios, pequenos, egoístas e mesquinhos, nada sabemos sobre a beleza das coisas, filtramos a amizade e envenenamos as relações com desconfianças, traições e jogos de poder, convívios que não passam de lutas ferozes dissimuladas, seja o ringue um jantar da empresa, um baile de debutantes ou uma defesa de tese de Doutoramento.

Olhamos para o menino-espelho e vemos tudo aquilo que mais tememos: o que não temos dentro de nós. O menino-espelho é deveras o ungido, o escolhido, Zoroaster, o filho do nada infinito, a fusão da verdade-mentira, a ilusão do pensamento não-linear, a ilusão da realidade impossível e, contudo, impassível. Ele é a ponte que temos que percorrer, entre o poço das bestas e o voo dos anjos, entre o abismo e a montanha. Por ele temos que subir a montanha, conhecer o outro lado do espelho, a verdade, a minha, a tua e a que é como é.

A criança mágica, o prodígio da Natureza que se senta perante nós e nos conta histórias do passado que não tivemos e do futuro que ela não poderá ter é a luz do mundo, a salvação da peregrinação cega ad nihilo, a prova de qua a nossa civilização entrou em Reductio ad absurdum, ela própria existe porque não pode existir, é o derradeiro reflexo do que nada reflecte porque absorve toda a luz disponível, tornámo-nos vórtices de matéria e energia, buracos negros em instabilidade gravitacional que ameaçam destabilizar todo o universo e provar, de uma vez por todas que afinal, a teoria foi assassinada pela prática e irá colapsar como uma supernova, esmagada pela sua própria massa e gravidade, mas cuja destruição inevitável irá gerar todo um novo fluxo de energia, conhecimento e luz.

O grande desafio de provar o que não é passível de ser provado, por demais evidente ser improvável é que nós somos a prova de que o Universo é infinito, senão pelo menos à escala da nossa imaginação e maior, muito maior que a nossa ciência. Deus joga aos dados com a menina dos caracóis dourados e o universo encontra o seu equilíbrio por fim, tal como deve ser, nem muito frio, nem muito quente, mas com as condições exactas para que a vida prospere e exista quod est demonstratum. Porque não percebemos então que a multiplicidade de personagens é ao fim de contas um arco-íris, o espectro desdobrado, a descoberta de Newton que deixou Keats à beira de um ataque de nervos, escrevia o Poeta sobre o despropósito com que o Físico destruía a beleza das coisas: “Philosophy will clip an Angel's wings, Conquer all mysteries by rule and line, Empty the haunted air, and gnomed mine - Unweave a rainbow, as it erewhile made The tender-person'd Lamia melt into a shade.“ Mas, oh pobre poeta que na tua campa és esmagado pela força da maça de Isaac, tudo o que nos quiseste dizer é que há coisas que não devem ser explicadas, maravilhas que foram feitas para maravilhar, não para desdobrar, medir, pesar, cortar, descrever, analisar, sintetizar, formular, dissecar, teorizar, violar.

A mente de Deus é e deve para sempre permanecer inacessível, pois nada poderemos compreender sobre tudo o que é em absoluto para além da nossa compreensão. Então fragmentamo-nos, como as cores do arco-íris e para além delas e formamos todo um espectro de seres que se aglutinam para parecerem um só, para além da violência do vermelho e da angústia do violeta, espalhamo-nos por entre o vão das ondas que nos desenham nas areias dos tempos e somos. Somos homens e mulheres, professores, doutores e gente de todos os ofícios, credos e cores se junta, para criar a História, não como ela é mas como a pintamos. Até que um dia nasça da Natureza um milagre, o prodígio, a criança-espelho que nos mostre a salvação, que tudo pode mudar se encontrarmos a matéria negra que não vemos mas que nos mantém unidos e separados, estáveis num universo em expansão, onde o futuro demora menos a chegar mas que permanece inalcançável, onde a seta percorre espaços cada vez mais curtos sem que acerte de uma vez no alvo mas em que já descobrimos: não existe um alvo.

Olhamos para o espelho e vemos as coisas simples. Um universo de harmonia das esferas, uma infância feliz num berço civilizacional simplificado, o retorno à Terra-prometida, o regresso ao que nunca existiu.

Por tudo isto e mais que não sabemos dizer admiramos a criança-espelho. Olhamos para dentro de nós e sabemos que o indivisível é na realidade a união dos opostos. Dois a dois subimos a derradeira montanha que nos mostrará a linha do horizonte onde se esconde elusivo o divino. O mundo mudará no dia em que luz e trevas sejam compreendidas pelo que são, verso e reverso, uma sem a qual a outra deixa de fazer sentido. E o espelho que tanto admiramos dobrar-se-à sobre si mesmo, libertando a criança aprisionada num reino de fantasia e verdade, para que da montanha possa descer apenas um de nós e nenhum de entre nós.

Chegamos ao fim do terceiro dia. A madrugada canta e embala a criança. Já não há espelhos entre eu e ela. O mundo reajusta-se e volta ao seu estado de equilíbrio, onde tudo é como deve ser, absolutamente perfeito.

Cimento




Ao sair, deixei de respirar,
a atmosfera violeta
apaga-me a luz da consciência,
sinto o sangue jorrar pelos olhos fora.

Passo daqui a pouco nessa esquina obscura
de onde me fazes tropeçar,
regurgitar, vomitar, a minha incapacidade de expressar
todo o silêncio que vela o espantalho oco da minha inexistência funcional.

Quero meter os dedos pelos olhos dentro
e berrar até emudecer,
partir para outro pântano longínquo,
e por lá nadar habilmente como faço nesta piscina de cimento.

sábado, 5 de março de 2011

Transparência



Vejo em ti:
Esse egocentrismo do teu silêncio.
Esse superior desinteresse pelo mundo.
Essa tua altivez no nunca pedir.
Essa autoconfiança dos que acabarão sós.
Essa tão característica disposição para o desastre.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Chá das horas mortas



Quando te vi, tu e ela, pela primeira vez, a tua língua de trapos estava dilatada de anos e esses anos encarregaram-se de amputar a respiração do teu coração fraco. Nesse dia não fiquei muito tempo a olhar para ela. Olhar para ti sempre me deu mais prazer aos sentidos.
Mais tarde, o teu tronco surpreendeu-me a jorrar de um sangue que te agasalhou de coágulos até à exaustão da grande circulação. Manchei todo o meu branco mas, ainda assim, não deixei que ela me falasse. Preferi escutar-te e com isso lembrar-me do quanto me pediste para ficar perto de ti.
Próximo da hora das estrelas, os teus membros inferiores encharcados até aos joelhos de tosse produtiva planearam ceder à força do aperto e antes que conseguisse descalçar-te aquela bota, já ela te tinha vestido collants cor de vazio. Para a próxima prometo-te que a deixo entre o murro pré-cordial e os lençois da tua cama.
Quando o sol já ia a rebentar no escuro da noite, senti o peso apertado da tua mão leve no meu braço e antes de acalmar as tuas lágrimas frágeis, ela inspirou-te e na mesma sucção quase me levou contigo. Fiquei agarrada aos teus membros superiores mas não consegui a atenção dela, escorregou-me mais uma vez entre as pupilas dos dedos.

Agora, quando pouco sobra de ti, não sei quantas mais vezes me irás morrer no mesmo dia.
Agora, se ela quer tanto atravessar-se no meu caminho, prefiro que me convide (de uma vez por todas) para um chá, longe daqui e das pálpebras que tenho de fechar constantemente por sua causa. Prefiro acertar contas pessoalmente… a água já está quente há muito tempo.

5.2



Permite-me que te diga, meu amor
Que para além das torpes palavras de meu torpe discurso
Existe toda uma inexplorada dimensão de meu ser
E, ainda mais além, para além do que me possas dizer
Todo um outro ser por te contar, por te dizer, por te falar
Pois quando digo o que te digo, meu amor
Sem trauma, profecia, dogma ou queixume
Sei que sabes que nada sei de ti, pobre de mim
Apaixonado por uma chama sem lume, fria como o brilho das estrelas
Cresço daninho por entre os campos do teu peito
Deserto de mim, de finas areias fustigado
De teu amor em mim não encontrar em nenhum lado

Permite-me que te escreva, meu amor
Que no Mundo inteiro não há salvação, nem terá que haver
Resta nada mais que aprender a destilar o sentimento de nunca ter
Sofrer pelo que que te disse um dia em sonhos
Entre arrepios medonhos me envolvo de pensar
Que um dia terei ousado por fim sentir,
Sonhar
Viajar entre a bruma da tua manhã, invisível entre suspiros
Nos teus olhos cravejados de luar, sem que nunca o saibas, nunca leias
Os torpes versos que tenho eu escrito, doido por tos contar
Mas que jamais os irás encontrar
Pois onde estás, meu amor, nada há para ver
Sentir já não é sentir, nem sofrer é sofrer
Quando o manto frágil de tudo o que nos pode proteger desaba
Acaba

Permite-me que te deixe flores, meu amor
A adornar a pedra fria que te afasta para não mais te ver
Que sussurra baixinho nas noites do meu viver, inquieto
Sem que no Mundo haja nada mais para salvar
Guardar da ira dos que amar não sabem, amar não podem
Porque amar é dos Homens o superior consolo
Quando são amados, por outros amores adorados
Vivem os homens enfeitiçados, dançam com as suas sobras e reflexos
Abraçam o espelho do Eu amado, reflectido no Tu desejado
E o Mundo esquecem de assombro e enfado
Que por tudo o que seja não estar a vosso lado
Ser amado e o Ser amado, entrelaçados num infinito espiral
Que estilhaça e corta como vidro quebrado
Se o amor que nos ama jaz frio a nosso lado
Por incúria, má fortuna, ira ou pecado

Permita-me que te abandone, meu amor
Em teu espelho não verei meu reflexo jamais
Nem agonia e dor cambiarei por tua essência
Pela ténue existência de um homem como, que o sou
Inspirado que era pelo reflexo no teu olhar, fiquei a saber
Do que era ser amado, do que era amar, refulgir
E brilhei no espelho da tua alma limpa e pura, com esplendor
Até a dor não aguentar jamais e decidir
Que teu lugar não era para ocupar ou preferir
E preferi tomar o teu lugar, estilhaçar
Espalhar os pedaços do espelho que me fazia sentir perfeito
Que outro lugar, meu amor, para além da mentira de teu mirar
Poderia um homem imperfeito se rever sem pecar
Tendo porém que que te confessar, embora aceite jamais como verdade
Que nada substituirá a dor de saber
Que imperfeito para sempre terei que ser
Sem reflexo que possa esta escuridão adornar

O Universo te acolherá em bons e ternos braços, meu amor
Saberá melhor que eu o que te contar sobre os homens
Que nesta terra de sal e ferro teremos ainda que descobrir
Que os anjos têm que se fazer merecer, sentir, aceitar
Por aqueles que anjos não sabem reconhecer, valorizar
E porque eles, nós, eu, não merecemos por ti viver
Deverás tu por nós morrer

Aos olhos do Homem justo, o criminoso rouba a vida aos inocentes
Mas que justiça há num mundo que não reconhece a inocência
Em que os homens precisam de espelhos para se sentirem completos?
Em que as sombras devoram a luz que emana das criaturas,
Em que fechamos os olhos para não ter que aceitar, compreender
Que só para além da luz poderemos um dia em boa verdade viver?

Então que morram anjos, que se destrua toda a pureza
Que nada reste de beleza, perfume ou poesia
E num simples dia possa o mundo acabar por compreender
Que se é sofrer que tanto valoriza e concede graça
Pois que sofra e em mil pedaços se desfaça

No anoitecer da alma um homem deu dois passos na escuridão que nele crescia
E assumiu, com Deus como sua testemunha indiferente
Que esta noite nunca conheceria um novo dia, um amanhecer
Deverá o Divino se compadecer, simpatizar com sua obra terrena
Ou assumir-se em pleno como espectador do Eterno
Será assim que é o Inferno?

E na madrugada sem fim que prestes termina
Um homem simples emerge em meu lugar
Afasta-se do espelho para nunca mais voltar…

terça-feira, 1 de março de 2011

O brandir da Espada



O brandir da espada,
o grito libertador,
o peito fremente, fermenta a populaça no agitar das bandeiras,
Ovação, triunfo, aclamação.

Respirar fundo,
olhar em volta,
esgares sem convicção,
o perfil lunar da face ascendente.

Cai o pano

Descende da face lunar, o perfil sem convicção,
esgares em volta, um olhar, fundo, respira.
Aclamadas as bandeiras agitadas,
Fermenta a populaça num triunfo ovacionado.

Fremente, o peito liberta o grito da espada brandida, outrora.
Como um pano caído. Escarlate.

Era uma vez



Era a primeira vez que Dê andava de avião, estava feliz, e suspirou de prazer no momento da descolagem e nesse exacto momento Agá pariu um filho no táxi parado no trânsito da A5, o motorista ainda chamou o 112 mas teve que suar as estopinhas para enfrentar aquele imprevisto, ele com 22 anos , novato na vida e na profissão, o táxi era do pai e nele fazia uns biscates para ajudar o curso de Direito. Quando o momento chegou viu uma criatura com uma aragem de cabelo preto espigado que nascera aos gritos nos seus braços, parecia saudável pensou ele tão feliz ficou com o suor colado nas costas, nunca julguei que isto me iria acontecer e ela é tão bonita. No hospital foi muito bem tratado, sentia-se uma espécie de herói, pancadas nas costas, sorrisos, você vai ser o padrinho era o que a mãe dizia, vai ter o seu nome, chama-se Francisco não é, ela vai chamar-se Francisca, eu até gosto muito do nome, ele sentiu o calor empapar-se no corpo, pegue na sua afilhada, sou muito desajeitado, vá, segure-a assim uma mão aqui a outra ali, não custa nada, vou tentar, é linda e parece estar a olhar para mim, se calhar está, quem sabe se ela sabe, há mistérios que ultrapassam a mente humana.
Em tudo isto pensava Francisco, à janela da casa na Graça, um rés do chão daqueles mesmo rentes à rua onde vivia sozinho, desistira do curso, adoecera, era velho de pensão mínima boa tarde senhor Francisco, está melhor? Estou mas é velho, resmungava, mau feitio, tinha um pequeno jardim nas traseiras com duas árvores que nem sabia o que eram, sentava-se às vezes num banco do largo a ver os turistas.
Dê voltou seis meses depois, o negócio correra bem, ainda pensou no que teria sido feito de Agá, mas entretanto conhecera uma mulata com quem casara e lhe tratava da casa.
Agá nunca mais procurou Dê, Agá empregou-se numa lavandaria no centro de Lisboa, o negócio prosperou, ela tinha jeito para os negócios, mais tarde comprou o estabelecimento, abriu uma loja de roupa, vivia bem, a Francisca casou-se com um motorista de táxi, um homem bom que lhe deu 3 filhos lindos, todos rapazes com cabelo preto e espigado como ela.
Agá procurou Francisco , tinha mudado de casa, perdera-lhe o rasto, contava ao marido, ele encolhia os ombros, olha, passou, passou, não te atormentes, tens razão, tens razão, mas há coisas que a gente conserva na memória.
Francisco estava à janela, vendo passar os eléctricos com turistas, sentava-se no banco do largo da Graça com as mãos entrelaçadas, voltava a casa e observava aquelas árvores estranhas e a luz e a sombra que faziam desenhos estranhos e o Tejo que ao fundo lhe dava uma tirinha de água, e os sons de gaivotas que ele ouvia com os seus sonhos.
Agá deve estar velhota e eu nunca a esqueci talvez por isso nunca tenha casado com a Ermelinda, talvez tivesse nascido ali há tanto tempo naquele táxi um amor sem razão por uma coisa tão simples ,como uma coisa qualquer, que terá sido feito da Francisca. A ternura faiscava-lhe nos olhos baços, sentia aquele calor e os olhos dela olhando para ele, tinha a certeza que olhou para ele.
Isto tudo pertenceu ao passado, ou nem ao passado pertenceu, terá acontecido, ou não aconteceu? Será assim, terá sido assim?
Agá sempre viu em Francisco o homem subitamente amado,nem se entende porquê, Francisca viu o pai que nunca tivera, a mãe contara-lhe tudo porque se apaixonara por ele, acabou por afeiçoar-se-lhe e casaram-se numa festa de Santo António por graça, Agá trabalhou numa lavandaria e expandiu o negócio, Francisco terminou o curso de Direito, e foi um advogado de êxito. Francisca teve 3 filhos de um homem bom e que era motorista.
Os filhos de Francisca adoram o avô. Ele é um homem alto e grisalho e muito sábio, são uma família que vive numa casa antiga na Graça, cheia de afectos.
Não há elevador, o que não interessa para coisa nenhuma.

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...