quinta-feira, 3 de março de 2011

5.2



Permite-me que te diga, meu amor
Que para além das torpes palavras de meu torpe discurso
Existe toda uma inexplorada dimensão de meu ser
E, ainda mais além, para além do que me possas dizer
Todo um outro ser por te contar, por te dizer, por te falar
Pois quando digo o que te digo, meu amor
Sem trauma, profecia, dogma ou queixume
Sei que sabes que nada sei de ti, pobre de mim
Apaixonado por uma chama sem lume, fria como o brilho das estrelas
Cresço daninho por entre os campos do teu peito
Deserto de mim, de finas areias fustigado
De teu amor em mim não encontrar em nenhum lado

Permite-me que te escreva, meu amor
Que no Mundo inteiro não há salvação, nem terá que haver
Resta nada mais que aprender a destilar o sentimento de nunca ter
Sofrer pelo que que te disse um dia em sonhos
Entre arrepios medonhos me envolvo de pensar
Que um dia terei ousado por fim sentir,
Sonhar
Viajar entre a bruma da tua manhã, invisível entre suspiros
Nos teus olhos cravejados de luar, sem que nunca o saibas, nunca leias
Os torpes versos que tenho eu escrito, doido por tos contar
Mas que jamais os irás encontrar
Pois onde estás, meu amor, nada há para ver
Sentir já não é sentir, nem sofrer é sofrer
Quando o manto frágil de tudo o que nos pode proteger desaba
Acaba

Permite-me que te deixe flores, meu amor
A adornar a pedra fria que te afasta para não mais te ver
Que sussurra baixinho nas noites do meu viver, inquieto
Sem que no Mundo haja nada mais para salvar
Guardar da ira dos que amar não sabem, amar não podem
Porque amar é dos Homens o superior consolo
Quando são amados, por outros amores adorados
Vivem os homens enfeitiçados, dançam com as suas sobras e reflexos
Abraçam o espelho do Eu amado, reflectido no Tu desejado
E o Mundo esquecem de assombro e enfado
Que por tudo o que seja não estar a vosso lado
Ser amado e o Ser amado, entrelaçados num infinito espiral
Que estilhaça e corta como vidro quebrado
Se o amor que nos ama jaz frio a nosso lado
Por incúria, má fortuna, ira ou pecado

Permita-me que te abandone, meu amor
Em teu espelho não verei meu reflexo jamais
Nem agonia e dor cambiarei por tua essência
Pela ténue existência de um homem como, que o sou
Inspirado que era pelo reflexo no teu olhar, fiquei a saber
Do que era ser amado, do que era amar, refulgir
E brilhei no espelho da tua alma limpa e pura, com esplendor
Até a dor não aguentar jamais e decidir
Que teu lugar não era para ocupar ou preferir
E preferi tomar o teu lugar, estilhaçar
Espalhar os pedaços do espelho que me fazia sentir perfeito
Que outro lugar, meu amor, para além da mentira de teu mirar
Poderia um homem imperfeito se rever sem pecar
Tendo porém que que te confessar, embora aceite jamais como verdade
Que nada substituirá a dor de saber
Que imperfeito para sempre terei que ser
Sem reflexo que possa esta escuridão adornar

O Universo te acolherá em bons e ternos braços, meu amor
Saberá melhor que eu o que te contar sobre os homens
Que nesta terra de sal e ferro teremos ainda que descobrir
Que os anjos têm que se fazer merecer, sentir, aceitar
Por aqueles que anjos não sabem reconhecer, valorizar
E porque eles, nós, eu, não merecemos por ti viver
Deverás tu por nós morrer

Aos olhos do Homem justo, o criminoso rouba a vida aos inocentes
Mas que justiça há num mundo que não reconhece a inocência
Em que os homens precisam de espelhos para se sentirem completos?
Em que as sombras devoram a luz que emana das criaturas,
Em que fechamos os olhos para não ter que aceitar, compreender
Que só para além da luz poderemos um dia em boa verdade viver?

Então que morram anjos, que se destrua toda a pureza
Que nada reste de beleza, perfume ou poesia
E num simples dia possa o mundo acabar por compreender
Que se é sofrer que tanto valoriza e concede graça
Pois que sofra e em mil pedaços se desfaça

No anoitecer da alma um homem deu dois passos na escuridão que nele crescia
E assumiu, com Deus como sua testemunha indiferente
Que esta noite nunca conheceria um novo dia, um amanhecer
Deverá o Divino se compadecer, simpatizar com sua obra terrena
Ou assumir-se em pleno como espectador do Eterno
Será assim que é o Inferno?

E na madrugada sem fim que prestes termina
Um homem simples emerge em meu lugar
Afasta-se do espelho para nunca mais voltar…

7 comentários:

  1. Sometimes a wind blows
    and you and I
    float
    in love
    and kiss
    forever
    in a darkness
    and the mysteries
    of love
    come clear
    and dance
    in light
    in you
    in me
    and show
    that we
    are Love

    Sometimes a wind blows
    and the mysteries of Love
    come clear.

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  2. Este registo trágico, de homem no seu fim,de amor impossível, tudo me lembra Camões, apesar de todas as outras diferenças. Gostei muito, mas fiquei tão angustiada... «Erros meus, má fortuna, amor ardente...» ;)

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  3. Mais espelhos e reflexos, o luto pelo amor (e inocência?) perdidos, interrogações a um Deus impassível e distante (um deus menor?), continuam bem o tema iniciado no primeiro texto. De uma forma ainda misteriosa, em termos de significado, mas a resposta está algures entre as palavras-chave dos dois.
    Poema muitíssimo bem construído, cheio de imagens fortes, uma delícia de ler e reler. Parabéns.

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  4. Muito rico o "reflexo deste espelho".

    E cuidadosamente sonorizado, também. A melodia encaixa perfeitamente no discurso.

    Parabéns.

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  5. Um texto (em três partes) naqueles que é preciso reler muitas vezes porque nada nele é oferecido. Não se dá sem luta. Temos de permitir que se desenvolva devagarinho na nossa mente.
    Tenho gostado muito dos textos nos quais tens reflectido sobre a condição humana de uma forma mais assumida ....e sempre gostei da forma fácil como viajas entre os géneros. Bonito poema final sobre...a morte das coisas belas.

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