sábado, 12 de março de 2011
5.4 (Conclusão)
Quatro passos para mudar. Mudar quem pensamos que somos, mudar o que não fomos, mudar a sensação de vazio que nos preenche, mudar o ritmo a que bate o coração inquieto.
Sempre me interroguei acerca da necessidade quase permanente que temos de encenar a nossa vida, em vez de a viver, porque será assim tão mais importante parecer do que ser?
Queria-te perguntar, porque me olhas assim? Não sou eu o teu reflexo, serás tu o lado de lá do espelho onde eu me perco sempre que sonho, sempre que mergulho na noite clara da nossa memória paralela, onde desconstruímos prazeres, descodificamos desejos, desconectamos anseios, desfazemos certezas e desmultiplicamos os dias em miríades de pequenas parcelas de interacção externa entre mim, tu e os que estão simultaneamente dentro e fora de nós?
Sempre me perguntei, porque temos que negociar, negar ou aceitar defeitos e vícios, nossos e dos que por nós passam e através de nós se reflectem? Sempre te quis perguntar se subirias comigo à montanha da nossa incerteza e não-existência, envoltos em oníricos pesadelos e melodias distantes que nos ensurdecem entre ondas de silêncio e palavras desgarradas de sentido.
Sempre quis descobrir qual de nós seria o mais forte, quem é o quem que é real, quão real é quem me projecta sobre este espelho diante espelhos, onde a minha persona se fractura e multiplica ad infinitum entre espaços dentro de espaços que se encaixam sucessivamente sem que nenhum seja verdadeiramente real, nem os que se projectam no ponto de fuga imaginário do mundo dentro de mundos, nem eu que me escondo do lado de fora de algo, certamente o reflexo de qualquer coisa que eu nunca poderei verdadeiramente capturar, entender, reflectir sobre mim mesmo e descobrir quem é de entre nós o mais fraco, a sombra dentro de sobras de luz que se perdeu nas esquinas abruptas onde de mim me escondo e por onde salto felino para me assustar quando passo enfim distraído pelo meio das ondas de sons do pensamento absorto.
Dou um quarto passo e vou mais além. Além do que acreditava ser dogma, o incontestado, o inaceitável. E aceito-me. Finalmente percebo o que não poderia compreender de outra forma e aniquilo-me. Destruo em mim o fascínio pelas coisas belas, liberto a criança-espelho da pesada pena de ter que se assumir pelo que dela esperam e exigem, sem dela esperarem que se revele como é, como realmente somos. Aceito a dor como uma outra forma de amor e de eucaristia. Celebro o Universo na sua intangível magnitude, reconheço que nada sou mas no entanto, reconheço-me como único e irrepetível, pois esta é a verdadeira beleza das coisas, a unicidade e a multiplicidade, verso e reverso, Cosmos e partícula, amor e dor, sem um não existe o outro, sem mim não existiria eu nem o reflexo que projecto sobre este mundo construído imperfeito. Pois não me cabe a mim entender a imperfeição, a sua natureza e utilidade, que já não contesto nem desafio.
Chego uno ao topo da Montanha, admiro os cinco horizontes que se estendem em perpétua plenitude e inquietação, o Universo perante mim.
Deste lado do espelho tudo vejo, pois sei agora que faço parte da matéria negra que mantém o delicado equilíbrio das coisas belas que para toda a eternidade hão-de ressoar em imperfeita melodia...
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Consegue escrever sobre o lado (de lá... cá) do espelho com uma intensidade pouco comum. Tens palavras que se conseguem agarrar imediatamente e outras que estão do outro lado e vês como que emolduradas... muito tuas e vistas pelo leitor como pinturas espelhadas e brilhantes.
ResponderEliminarO avesso do direito...conheço tão bem o lado de lá do espelho, que me revi no reflexo das tuas palavras.
ResponderEliminar(no entanto alguém me sopra:"não basta sê-lo. É preciso parecê-lo;-))