Gostava de lhe morder a polpa dos lábios até ficar em sangue, em carne viva, e era sempre assim quando chegava ao enorme e vazio apartamento antigo dele, no centro da cidade. Beijava-o até doer aos dois. Gostava do sabor adocicado da hemoglobina dele, do perfume que se lhe desprendia do hálito, de lhe sorver o fôlego.
- Não sabes beijar como as pessoas normais, caramba? Tem de ser sempre até à hemorragia? – perguntou-lhe ele, da terceira vez - Que forma mais estranha de amar...
- E há outra?
Enterneciam-na as erecções inesperadas de rapazinho, sempre que o abraçava. Depois beijava-o, como se faz aos miúdos quando se magoam.
- Pronto... já passou.
Despia-o como se a roupa estivesse encharcada em ácido, com a mesma urgência dos incêndios, como só se é capaz quando se chega carregada de culpa. Pedia-lhe sempre que, por favor, não fosse gentil, não fosse como um animal dócil porque ali quem precisava de ser amansada era ela. Entrelaçavam-se como duas árvores, membros, ramos, troncos, mãos, pontas dos dedos a vibrar como folhas na nortada. Ela procurava-lhe o côncavo dos ossos salientes da bacia, da cova feita pela clavícula, encostava o ouvido ao peito liso e tenso a pulsar, sentia-se subir e descer com ele.
Era profundamente feliz sempre que estavam juntos e, ao mesmo tempo, profundamente triste. Todas as quintas-feiras, a mesma viagem até casa dele, no intervalo para o almoço, a mesma sensação de quase morte a invadi-la como uma infecção e um único antídoto para isso.
Também era feliz com ele quando não tinham tempo para mais do que um café. Sem outra intimidade que a de um olhar, sentavam-se à mesa, falavam e riam dos pequenos gestos diários que não conheciam um ao outro porque nunca tinham acordado juntos ou adormecido a ver os mesmos documentários, quando o serão se arrasta penosamente pelas paredes da casa. Quem diz que intimidade é isso é um perfeito idiota, costumava pensar. Não se pode deixar a intimidade instalar-se completamente, como um hóspede que vai prolongando a sua estadia indefinidamente e acaba por nos tomar conta da casa. A intimidade é uma sanguessuga, dizia-lhe ela.
- Isso é um contra-senso. - respondia ele, que era um idealista doce. – Assim é só sexo e masturbação intelectual.
- E de que pensas tu que é feita a paixão?...
Um dia, farto de ser um furo no horário, deu em lutar por ela. Apareceu-lhe no trabalho com um ramo de flores semi-murchas e entregou-lhe para as mãos a chave de casa.
- A partir de amanhã gostava de te ouvir entrar ao fim da tarde, como se fosses ficar para jantar e dormir, como se não te importasses de fazer disso rotina.
Voltou as costas e foi embora sem esperar uma resposta.
Soube logo que nunca mais o veria, como só percebe quem parte carregado de culpa.
Tens uma noção verdadeiramente intrigante do que é a natureza das relações humanas, revelas segredos escondidos à frente de todos, mostras o que toda a gente vê mas poucos reparam.
ResponderEliminarSe o amor fosse fácil de explicar, não haveria poesia.
A novelista que há em ti dá-te mais um safanão e pede para a deixares passar...
Só o Bicho d'Ouvido para escrever assim. Concordo com todo o comentário de D.Ü.
ResponderEliminarTão intrigante como...quase assustadoramente real.
ResponderEliminaradorei
Assino por baixo de todas as outras opiniões. Não é de "queixo caído" porque há muito sei que escreves com muito talento. Agora só falta tirares partido disso, mais concretamente.
ResponderEliminarGostei muito. Senti que assistia a uma cena de um filme. Vi-os envolverem-se. Vi-os afastarem-se. As histórias de amor, melhor, de paixão, são tão boas de ler/ver quando tão bem (d)escritas...quero mais, Bichinho :)
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