terça-feira, 1 de março de 2011
Era uma vez
Era a primeira vez que Dê andava de avião, estava feliz, e suspirou de prazer no momento da descolagem e nesse exacto momento Agá pariu um filho no táxi parado no trânsito da A5, o motorista ainda chamou o 112 mas teve que suar as estopinhas para enfrentar aquele imprevisto, ele com 22 anos , novato na vida e na profissão, o táxi era do pai e nele fazia uns biscates para ajudar o curso de Direito. Quando o momento chegou viu uma criatura com uma aragem de cabelo preto espigado que nascera aos gritos nos seus braços, parecia saudável pensou ele tão feliz ficou com o suor colado nas costas, nunca julguei que isto me iria acontecer e ela é tão bonita. No hospital foi muito bem tratado, sentia-se uma espécie de herói, pancadas nas costas, sorrisos, você vai ser o padrinho era o que a mãe dizia, vai ter o seu nome, chama-se Francisco não é, ela vai chamar-se Francisca, eu até gosto muito do nome, ele sentiu o calor empapar-se no corpo, pegue na sua afilhada, sou muito desajeitado, vá, segure-a assim uma mão aqui a outra ali, não custa nada, vou tentar, é linda e parece estar a olhar para mim, se calhar está, quem sabe se ela sabe, há mistérios que ultrapassam a mente humana.
Em tudo isto pensava Francisco, à janela da casa na Graça, um rés do chão daqueles mesmo rentes à rua onde vivia sozinho, desistira do curso, adoecera, era velho de pensão mínima boa tarde senhor Francisco, está melhor? Estou mas é velho, resmungava, mau feitio, tinha um pequeno jardim nas traseiras com duas árvores que nem sabia o que eram, sentava-se às vezes num banco do largo a ver os turistas.
Dê voltou seis meses depois, o negócio correra bem, ainda pensou no que teria sido feito de Agá, mas entretanto conhecera uma mulata com quem casara e lhe tratava da casa.
Agá nunca mais procurou Dê, Agá empregou-se numa lavandaria no centro de Lisboa, o negócio prosperou, ela tinha jeito para os negócios, mais tarde comprou o estabelecimento, abriu uma loja de roupa, vivia bem, a Francisca casou-se com um motorista de táxi, um homem bom que lhe deu 3 filhos lindos, todos rapazes com cabelo preto e espigado como ela.
Agá procurou Francisco , tinha mudado de casa, perdera-lhe o rasto, contava ao marido, ele encolhia os ombros, olha, passou, passou, não te atormentes, tens razão, tens razão, mas há coisas que a gente conserva na memória.
Francisco estava à janela, vendo passar os eléctricos com turistas, sentava-se no banco do largo da Graça com as mãos entrelaçadas, voltava a casa e observava aquelas árvores estranhas e a luz e a sombra que faziam desenhos estranhos e o Tejo que ao fundo lhe dava uma tirinha de água, e os sons de gaivotas que ele ouvia com os seus sonhos.
Agá deve estar velhota e eu nunca a esqueci talvez por isso nunca tenha casado com a Ermelinda, talvez tivesse nascido ali há tanto tempo naquele táxi um amor sem razão por uma coisa tão simples ,como uma coisa qualquer, que terá sido feito da Francisca. A ternura faiscava-lhe nos olhos baços, sentia aquele calor e os olhos dela olhando para ele, tinha a certeza que olhou para ele.
Isto tudo pertenceu ao passado, ou nem ao passado pertenceu, terá acontecido, ou não aconteceu? Será assim, terá sido assim?
Agá sempre viu em Francisco o homem subitamente amado,nem se entende porquê, Francisca viu o pai que nunca tivera, a mãe contara-lhe tudo porque se apaixonara por ele, acabou por afeiçoar-se-lhe e casaram-se numa festa de Santo António por graça, Agá trabalhou numa lavandaria e expandiu o negócio, Francisco terminou o curso de Direito, e foi um advogado de êxito. Francisca teve 3 filhos de um homem bom e que era motorista.
Os filhos de Francisca adoram o avô. Ele é um homem alto e grisalho e muito sábio, são uma família que vive numa casa antiga na Graça, cheia de afectos.
Não há elevador, o que não interessa para coisa nenhuma.
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Lazuli, um "Era uma vez" que é: éme, u, i, tê, ó :)
ResponderEliminarComo um afago terno, acompanhado de um sorriso doce, este texto. Gosto muito.
ResponderEliminarGostei tanto, Lazuli! Adoro finais que não interessam para coisa nenhuma ;)
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=5Euj9f3gdyM
ResponderEliminarse puderes responde daqui
ResponderEliminarahahahah
http://www.youtube.com/watch?v=Bm5iA4Zupek
enjoy
Texto doce. Com um toque de tão real, quanto o elevador que não existe no prédio...
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