segunda-feira, 23 de maio de 2011

Incubadora



Maria tem o olhar a atravessar a fechadura, porque foi à fechadura que reparou pela primeira vez que o nada se movia lá fora. Franziu a orelha. Como um ponto de carvão numa folha parada, o tempo não se movia, nem se chovia, nem se fazia em vento de cada vez que ela olhava para fora da casa sem porta.

Uma casa triangular, mesmo sem vestígios de porta mas com um minúsculo buraco da fechadura na parede que aponta a sul. Foi nessa mesma parede que Maria nasceu. Com os pés encostados à parede e o tronco no chão, ao fim da décima nona força saiu de uma mulher, Maria. Não foi fácil. Com as pernas de recém-menina a baloiçar e a cortar a meta em primeiro lugar, a cabeça explodiu em raiva por não ter sido ela a mais velha do corpo. Entre lágrimas e sorrisos da mãe anjo, Maria viu-a ir para o vértice norte da casa, lugar céu, número estrela para nunca mais de lá sair… recém-orfã, antes de conseguir ser menina.
Parada no seu corpo, hoje passados muitos anos, olhou pela fechadura e reparou pela primeira vez que o nada se movia lá fora.

Na parede noroeste, através da rachadura, ela esmaga os olhos e repara que lá fora, o tudo não se mexe. Franziu as pestanas. Ana nasceu aqui. Com as costas e a parede coladas e os pés a rachar o chão, ao fim da vigésima terceira força saiu de uma mãe, Ana. Pela ordem natural, a cabeça ganhou o orgulho e quando se preparava para gracejar com Maria reparou que ao sair as pernas tinham ficado lá dentro, e o lá dentro é quando a gestação come a carne e o osso e da gula resultam cotos redondinhos e brilhantes. Entre lágrimas e sorrisos de mãe-demónio, Ana viu-a ir para o vértice este da casa, lugar roda, número enjeitados para nunca mais de lá sair… recém-enojada antes de conseguir ser filha.
Agitada no seu corpo, hoje passados muitos anos, olhou pela rachadura e reparou pela primeira vez que o tudo não se mexe lá fora.

Pendurada na parede nordeste que se arrasta todos os dias num sul e num noroeste, está a fotografia emoldurada de Mariana e, através da mesma, ela vê uma paisagem morta no tudo do nada…Assim, sem razão ou emoção, franziu a ponta do nariz e não se lembra de como nasceu. Na casa triângulo sabe que o único vértice livre, o oeste, está vazio, sem mãe, sem útero, placenta, cordão umbilical, parto, sangue… Apática no seu corpo, olha para as outras duas paredes e ri de tristeza. Talvez tenha nascido da geração espontânea entre o pó atrás da moldura e a cal da parede, num namoro que acabou em veias e pele agarradas a estacas. Olhou para a paisagem pela última vez com as órbitas oculares e reparou que em alguns dias a cabeça chora a idade. Nos outros dias, arrasta-se pelo chão com as mãos a palpar caminho para o tronco que nos sonhos vê umas pernas a tracejado, como se fosse possível fazê-las existir com o carvão do lápis.

Lá fora o nada e o tudo sonham com os habitantes da casa em bico. Esperam parados, na ansiedade de sentir saudades de quem não conhecem.

sexta-feira, 20 de maio de 2011



"Nunca estive naquele páteo. Só sei que olhando a bola a saltitar de lá para acolá, resvalando nas paredes porosas; escutando os gritinhos mecanicos e treinados das raparigas e relembrando os meus próprios pés diagonais e disformes, o sistema solar parece acabar na curva ao fundo da rua. Parece que consigo ver-me encolhido contra aquela parede ao fundo, a tentar manter-me como uma mínima camada concava da mesma. E a ser atingido em cheio pelos estilhaços de uma explosão de leite com chocolate, logo a seguir. Os olhos no chão asfaltado e o caminho triste até ao escuro e longo tunel que ladeia o ginásio da escola, mordendo o lábio quase carnívoramente.

Que longo, longo túnel, em que vejo a luz ao fundo, mas que não mais parece acabar...

Mas não, nunca estive ali."

sobre mim e para mim




Porque gosto de sorrir e de fazer sorrir, porque gosto de ser assim, porque sou mesmo assim...eu sou eu.
Menina num corpo de mulher, forte como o titanio que tenho dentro de mim, frágil como a porcelana que que tb faz parte de mim...
Menina Mulher com cicatrizes visíveis outras nem por isso, mas com vontade de ser apenas e só, feliz!
As cicatrizes ficam, apesar dos cremes utilizados, e lembram-me aquilo que já fui, aquilo que sou e aquilo que quero ser...mas sempre fiel a mim e aos meus princípios, sempre!
Eu sou assim...
Há quem diga que sou lamechas, abencoadas lágrimas pois não quero voltar à frieza de outros tempos.
Passei a chorar, por tristeza ou por alegria, mas as lágrimas já saiem e acreditem, faz tão bem lavar a alma.
Sim choro a ver o mar, choro quando alcanço mais um objectivo, chorei porque consegui dançar (as saudades que tinha de dançar) e choro sempre que algo "me toca" no coração...mas volto a repetir, abençoadas lágrimas.
Lágrimas quentes, sentidas e com um sabor agridoce, mas que me dizem que estou viva!!!!
Eu sou assim, demasiado doce talvez...mas se me sinto bem assim, assim continuarei!
É bom estar vivo!!!!!!!!!!!!!!!!
...apesar de tudo, é bom ser eu!

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O Poder de Acreditar - Acto II



Acredito em mim
(mentiras sem fim)

Uma bela manhã de Sol banha-me a face
(odeio a luz, doem-me os olhos)

os pássaros chilreiam ao chapinhar no fontanário
(criaturas malditas, racham-me os tímpanos com tanto alarido)


as flores desabrocham e presenteiam toda a gente com mil aromas e um festival de cor
(venha a seca, a geada, o ardiloso inverno, e leve estes abortos da natureza para longe de mim)


Sinto a relva com os meus pés descalços
(não sou gente, não sou ninguém, não sou nada)


e alegro-me com o toque molhado dos restos do orvalho
(não sou gente, não sou ninguém, não sou nada)


e deixo que a brisa me acaricie a face
(...nada...)


vejo as crianças que jogam à apanhada
(rio-me dos seus corpos frágeis, ...tão frágeis...)

os cães que deliciam os seus donos com joviais brincadeiras e corridinhas
(obedeceaodono obedeceaodono obedeceaodono obedeceaodono obedeceaodono obedeceaodono obedeceaodono obedec...)

os jovens casais, trocam beijos e carícias, envergonhados ou sorrindo maliciosamente
(fornicai como porcos que sois, procriai e enchei o palco com as vossas larvas)

vejo meninas que volteiam nas suas bicicletas, cheias de fitas que ondulam ao vento
(todas as mulheres são patéticas, ridículas, execráveis e umas grandes cabras)

enquanto os garotos se entretem a jogar à bola
(nunca me convidaram, nunca me deixaram jogar, nunca me deixaram sequer aproximar...)


conheci outros como eles, à tantos anos atrás, lá no antigo bairro
(um dia verei também os vossos cadáveres)

como eles, miudos e miudas, andavamos todos no primeiro ano de escola
(anormal, atrasado, monga, monstro, anormal, aborto, anormal, ...)

enquanto durante a hora de lição a professora nos ensinava a dança das palavras e o ritmo dos números
(D. Isaura, tenho medo do anormal! D. Isaura, ele cheira mal e é feio! D. Isaura, não quero ficar ao lado do monga...)

ficava para a mágica altura do recreio a troca de brinquedos, toques e afectos, coisas simples entre as crianças
(não mexas ai não fales comigo não me toques sai daqui isso não é teu apanhas nos cornos se não desapareces!!!)


agora me lembro, das horas felizes
(não sou gente, não sou ninguém, não sou nada)

agora me lembro de como era o grupo
(não sou gente, não sou ninguém, não sou nada)


e de tudo quanto vivi com eles
(...nada...)

e deixo as memórias vogarem como barcos ao vento
(leva a mão ao bolso, obedeceaodono)

enquanto o conforto das recordações me afaga a alma
(já, faz o que te digo anormal!!)

entrelaço a melancolia de viver com a esperança de um novo dia
(já a sentes, na tua mão?)

e deixo que o beijo quente do Sol me conforte
(ouviste o click? Está engatilhada...)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Desperta




Desperta não chegam às farpas da crítica e nem as seduções dos elogios. O dragão do ego não mora ali.
A consciência desperta sabe o que faz, pois caminha sob o comando do discernimento.
É serena é doce, e sua acção é constante.
Trabalha por amor, age sem temor, luta por mundos melhores e é dedicada ao serviço que lhe foi confiado.
É compaixão sem pieguices. É puro sentimento sem drama.

Suas acções não são afectadas pelas marés emocionais e nem pelas circunstâncias.
Sua luz não agride as trevas, apenas esclarece e transforma.
Comunga com todos os seres e convive bem com os homens da Terra.
Não há divisão em suas atitudes. É firme, mas, ao mesmo tempo, é generosa e suave.
Sua ternura encanta e inspira... E ela caminha com segurança.

A consciência desperta já passou por várias etapas por isso, sabe atravessar as camadas densas...
Sabe o rumo do seu serviço, e não vacila. Ensina, mas não cobra crescimento de ninguém! Sabe que o tempo fará tudo acontecer.
Exorta os homens a seguirem as trilhas da Luz, mas não força ninguém a segui-la.
É pura ética cósmica, pois não condena ser algum.

Os seus olhos brilham tanto... E suas mãos emanam calor de amor suave.
Ela é Luz que inspira as nobres virtudes!
Amar é intensificar a vida!

domingo, 1 de maio de 2011

The Scent of Love











Um piano.
O sol tenta aquecer
a minha solidão,
uma musica
diferente
toca-me.

Algo estala dentro de mim,
uma
suavidade terna
solta-se do céu
e
espalha-se pela manhã...

Água nos espelhos
lágrimas escondidas
o nó
na voz,
a garganta que dói...

A musica continua
doce adormecer de sorrisos
lilases orvalhados
um gostar submerso,
confusão,
esquecer.

O dia parece luminoso.

C



a




i





a transparência
do céu,





a




z




u




l





até doer.

sábado, 30 de abril de 2011

Outros



Quando estava capaz de ler fazia renda
as agulhas segredavam-lhe beijos tilintantes nas mãos
e a linha nunca dava nós nem a levava para muito longe da estação.
Nas noites em que escorria lua cheia pelas paredes
talhava vestidos com fios de fibra pôr-do-sol que cegavam no seu sorriso de cal
apertado em fitas de trapo silenciosas à volta dos pés de pedra.
Da porta da rua nunca se chamou nem a chamavam.
Da janela, os outros injectavam o olhar linguareiro pelos espaços vazios dos cortinados
e este morria sempre na luz negra que circulava dentro de casa.
Ela, com íris que reflectiam as rosetas da barra do vestido amargo
sentia a secura da pele a raspar na suavidade do esfregão de aço com que limpava as agulhas do tempo ao mesmo tempo que no outro tempo fazia chuva enevoada de fugida.
O frio já lhe tinha partido os ossos há muitas mãos cheias pelo que estar sentada era a felicidade da ráfia encadeirada ainda não ter sido comida pelos bichos melosos do pequeno-alomoço.
Com abraços de braços perdidos ou imaginados
lembrou-se do dia em que deixou de ler e analfabetizou as voltas apertadas das linhas.
Tantas voltas para se amar e enterrar dentro do vestido pôr-de-sol cheio em quarto minguante.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Flores e Jóias




Ensinei te tudo o que eu sei. Não fiques triste com a minha partida.Tu bem sabes que o traço característico da existência terrestre é a impermanência.
Vivemos sob os auspícios da Mãe Terra apenas por um tempo.

Vim para a Terra, vivi a experiência humana, trabalhei as emoções, quebrei o ego e equilibrei-me na consciência serena. Agora, volto para a natureza nas ondas luminosas do Amor Supremo.

Quando te lembrares da minha passagem pela Terra, não faças nada em minha homenagem. Vai até ao jardim mais próximo e vê as flores a abrir. Elas são minhas irmãs. Observando-as, transformarás a tua saudade em alegria.

Perceberás que também me abri na vida terrestre e espalhei entre os homens beleza, perfume e cores espirituais.
Não te esqueças do nosso ensinamento mais importante:ergue a mente além das ilusões dos sentidos e abre o teu coração em agradecimento ao Amor que é a Luz de todos nós. Quando agradecemos com sinceridade, quebramos o ego e ficamos plenos de alegria.
Se querida flor e abre as pétalas de luz do teu coração entre os homens.

A seguir, deslizou a consciência até o meio interno do peito e visualizou uma flor em botão. Suavemente, começou a abri-la com pensamentos de paz e amor.
Camada por camada, as pétalas foram se abrindo...

Para sua surpresa surgiu, bem no centro da flor aberta, uma brilhante jóia. Usando o coração como veículo, ele comunicou-se com ela, pela via das percepções do espírito, e disse-lhe:
Agora que me achaste no teu próprio peito, para a busca externa e a alegria.
Sempre estarei aqui. Quando quiseres, é só fazer a flor abrir que surgirei bem no centro dela. E, seguindo as intuições que te dou, tu será uma linda flor entre os homens. Eles não perceberão o nosso brilho, mas espalharemos juntos a beleza, o perfume e as cores.

No devido tempo, iremos juntos aos belos jardins, além das luzes da Terra. E aí, minha querida, brilharemos mais, e para sempre...
Desse momento em diante, iluminou-se e tornou-se o mestre das flores.

E quando alguém perguntava qual era a origem do brilho de seus olhos e de seu sorriso, ela apenas dizia: "É que mora uma jóia dentro do meu coração que me ensinou sempre a agradecer ao Amor Maior e a ser uma flor entre os homens.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O Poder de Acreditar



Sabes, quanto mais penso nisso, mais sentido acho que faz. Se não, repara bem e diz que estou errado.

De tanto acreditar que é indestrutível, o mancebo ergue a bandeira e desfila entre rugidos de artilharia e assobios de metal incandescente, desafia o perigo e arremata toda a razão com um novo volteio da haste de ferro, ondula o estandarte e marca o seu nome na história. Assim pensa, entre o casco impenetrável da sua arrogância juvenil, envolto no kevlar da doutrina militar, imunizado pelo rito do exorcista. Acredita o bravo soldado, acredita piamente que é um herói, enquanto tomba mártir, vítima de fogo amigo, a doze mil quilómetros de casa de sua mãe…

Por acreditar que nada vale, ela afunda-se no negro olhar que a fita do outro lado do espelho. Imersa, voga durante horas, dias, semanas, anos… perde-se para sempre no vazio asfixiante de si mesma, em busca de significância, à procura de si mesma, num labirinto infestado de demónios e santos que a desprezam, por ser tão, tão … nada. Por tanto acreditar que não vale a pena acreditar, quebra finalmente o espelho e faz mais um corte na face interior da coxa, acredita que alivia a dor. Por acreditar que é nada e por em nada acreditar, finca profundamente o pedaço de vidro e corta a artéria femoral…

Em nome da sua crença profunda no Ente Superior que nos guia, o Pastor incita-nos a louvar o Divino. Pede-nos que cantemos confiantes, que ergamos as nossas vozes como fachos de luz na noite escura e que entoemos o nome do Senhor. Diz-nos o Pastor para aceitarmos o mistério da fé, para abrirmos os nossos corações à eterna benesse, para unirmos as nossas mãos em fervor devoto. Pede-nos o Pastor que ergamos a nossa taça e bebamos o sangue do Cordeiro e comunguemos sob a palavra da Salvação. Acredita o rebanho que a absolvição é guardada aos que nunca ousam questionar, hesitar um momento, negar nunca, a purificante e benfazeja união com o sangue de Cristo. Acreditam que é esta a vontade de Deus, mesmo quando vêm seus irmãos e irmãs mais débeis a serem os primeiros a tombarem sob o efeito do poderoso veneno diluído no vinho da Missa, o sangue sagrado que o Pastor assegura ser a chave do Paraíso…

Por acreditar na fragilidade do seu ser, por querer acreditar que ele é o seu protector, a donzela entrega-se para deixar de o ser, acredita que se vai desvendar o maior segredo da sua débil existência, deseja acreditar que o desejo que ele manifesta é por amor, por ele estar ciente de que ela é a tal. Ela sorri e despe-se. Ele sorri e despe-a. Ela acredita em contos de fadas, príncipes encantados, bailes de fantasias. E por isso se entrega de alma e, sobretudo, corpo. E à medida que ele perde o controla e deixa as suas mãos apertarem demasiado forte em volta do frágil e delicado pescoço dela, ela desmaia, e à medida que desvanece, prefere acreditar no “felizes para sempre”…


É por isso que eu te peço, fecha os olhos e respira fundo.

Vem comigo ver o que há do outro lado do espelho, vamos atravessar este campo de
batalha de peito aberto, sente comigo o chamamento da devoção e amor infinito, liberta o coração, e nada de mal te pode acontecer.



Acreditas em mim?

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Quando




Quando o chão vira céu estrelado...
E os corações parecem pequenos sóis.

Quando as lágrimas saem dos olhos espontâneamente...
E escorrem pelo rosto como pérolas.
Enquanto a rosa floresce no coração...

Quando o tempo e o espaço viram pura Luz branca...
E nós nos dilui mos nela.
Enquanto a mente se apequena diante dele...

Quando as palavras somem na imensidão...
E, mesmo assim, o coração nos chama...
E diz: "É só o Amor que nos leva".

Quando nós escuta mos o canto dos astros...
E senti mos o infinito nas palmas das mãos.
E quer dar passes espirituais em todo mundo.

Quando os nossos olhos também se tornam estrelas...
E vêem a vida renovando se...
Ah, só se sente gratidão.

Quando nós nos sentimos iguais a crianças
E o nosso coração diz: "SOMOS TODOS UM!"

É quando o Amor desce aqui...

domingo, 10 de abril de 2011

Ecolalia



Alivia-me o barulho que o mastigar faz dentro da minha cabeça. Olho para as migalhas de bolachas na camisa ao mesmo tempo que oiço os teus gemidos vindos do quarto. O som ecoa na vertical com a cama e usa-se como fumo até à sala. Na verdade não sei há quantos anos passo noites inteiras a ouvir os teus monossílabos vasculares cerebrais acidentados… só sei que o raio da noite amplifica tudo o que me queres dizer e eu não percebo.
Já sem fome, faço por não me lembrar de te perguntar se também queres comer qualquer coisa… enjoa-me ver o que comes a deslizar por um tubo que afunda-se no teu vazio ausente.
Na véspera daquele dia tínhamos ido fazer um piquenique e pelos teus sorrisos encaracolados ao canto dos lábios sabia que íamos ser felizes, ver-te bastava para ter essa certeza. “Queres também uma uva, amor?”
Do campo salpicado de primavera para um corredor salpicado de macas foi um bater de pestanas para ti. Para mim foi um espirrar de dedos vincados na cara e lágrimas de criança molestada.
Tens noção que não consigo sequer dormir ao teu lado? Tens o teu cadáver vegetal cravado no colchão que te acaricia as escaras e em cada buraco que tens fervilha o meu abismo.
Eu não merecia isto! Se pudesse não te tocava, lavar-te faz-me vomitar o meu egoísmo e ignorância, o teu cheiro passa para o meu e eu sinto todos os poros a arder. Porque me fazes isto? Não há água que tire o teu cheiro de mim, o teu hálito, a tua voz, o teu olhar de xisto, o teu toque suado e viscoso.
As pessoas têm mais pena de mim do que de ti. És a filha da mãe que arruinou a minha reputação de homem capaz de tudo, os outros invejavam-me, sabias? Queriam ser iguais a mim. Agora ligam-me a perguntar se estás melhor. Ligam-me mas não me vêm ver, não querem entrar nesta casa de mofo humano e eu não quero sair dela com vergonha que me venham perguntar como estou. Como estou? Tiraste-me tudo. Deste-me tudo para depois no teu egocentrismo me tirares até o que não tinha.
Gostava que te tivesses preocupado um bocadinho com a minha vida, com a nossa vida.
Na véspera daquele dia, coloquei-te uma flor atrás da orelha e derreti-me a ver as tuas cócegas de menina corada. “Gosto muito de ti, amor.”
Tudo em ti me fazia bem, era mais forte por olhares para mim. Prometeste que ias sempre olhar para mim… e eu acreditei. Traíste-me com outro estado de espírito, fizeste-me escravo de ti, sabias que nunca te ia abandonar e aposto que por detrás dessa cara embaciada ris-te de mim, gozas comigo, desfrutas disto para alimentares essa tua carcaça que nunca mais morr…
Quero mesmo que morras, desejo-o com todas as minhas forças, se soubesse que ia ser assim, na véspera daquele dia devias ter sufocado com as bagas de uvas que tanto gostas, devia ter-te arrancado os olhos de cada vez que dizias que os tinhas só para mim, devia ter-te cortado cirurgicamente o sorriso e enrolando-o na toalha aos quadrados brancos e vermelhos. Se soubesse que ias ser tão nefasta para mim, nunca te tinha roubado aquele beijo, nunca tinha adorado o brilho dos teus olhos, nunca tinha…
Porque não morres já, amor? Por favor…peço-te. Morre. Faz isso por mim. Ainda me amas?

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...