segunda-feira, 31 de maio de 2010

Contemplação




No céu escuro havia no ar somente uma bola enorme, dourada, que estava em permanente movimento, mostrando toda sua impressionante beleza e força. Impossível descrever em palavras, pois não se tratava somente de algo majestoso, mas sentia claramente que dela saia uma energia poderosa, incrível. Sabia intuitivamente que tudo o que existia saia de lá, era uma Fonte da vida.
Sentia-me em estado de graça; estava numa posição privilegiada, era uma observadora atenta de cada detalhe desta esfera que realizava movimentos deslumbrantes em sua superfície, exibindo tons e nuances nunca antes vistos, que me deixavam boquiaberta.

A contemplação de tamanha maravilha saciava me o espírito, dava-me alento e passava me somente serenidade, paz e harmonia.
Quando, de repente, começou algo que não podia esperar; da bola saiu um pequeno ponto de luz, que deixava um rasto nítido atrás de si; vinha aproximava se pelo meu lado esquerdo. Era uma criança de poucos anos, que ao passar por mim abriu um lindo sorriso. Senti desconforto, pois reconheci nele algo intrigante: tratava-se de um ex colega com quem tinha deixado de falar. Mas não deu para pensar muito, visto que mais um ponto de luz estava vindo, dessa vez pelo meu lado direito... sempre uma criança, sorrindo: era uma conhecida que tinha sido muito injusta comigo...
e outros vieram, praticamente todos os que eu preferia nunca mais ver na minha frente. Foi quando a meditação ressoou com uma voz pastosa, amorosa, como a de um pai que conforta o filho pequeno que ficou assustado com algo que viu.

As palavras, repetiam, como se, se tratasse de um mantra: Somos Todos Um, Somos Todos Um, Somos Todos Um...
E aquela bola transformava se rapidamente, achatou-se, mudou de cor e na sua superfície apareceram linhas como que marcando os meridianos e paralelos de um mapa No entanto, aquilo continuava,aos meus olhos. Uma linha vertical preta, definitiva, dividia o hemisfério esquerdo do direito; a informação que recebia era que se tratava da linha do tempo. Do agora, do eterno agora. Tudo didáctico, até simples de se compreender.
Em seguida, "A Bola dourada", ou melhor, suas linhas de meridianos começaram a deslocar se da esquerda para a direita. Ao parar, depois de um movimento por vezes demorado e acompanhado com as cores do arco-íris, uma tela saía da linha preta e nela podia ver os pontos principais de uma vida passada. Sem erro.

Em instantes, a transformação inversa ocorreu e a majestosa bola dourada resplandeceu novamente...
Foi quando, em percurso inverso, envelhecidos, carecas ou de cabelos brancos, todos os que tinham passado por mim, sorrindo novamente a olhar me, seguindo aquele cordão de energia, de luz, começaram a retornar ao ponto de origem. Um por um mergulhavam, como pequenos cometas e a cada retorno algo belo acontecia: a esfera tornava se ainda mais bela, luminosa, brilhante. Incrível como algo tão belo pudesse ficar ainda mais bonito!
De repente, após a volta de todos os "desafectos", ocorreu algo muito intenso, inesperado. De simples observador, que boquiaberto e confortavelmente assistia sentado no sofá a um filme de ficção científica, surgiu mais um ponto de luz se deslocando, desta vez, em minha direcção.

Em poucos instantes, percebi que aquela criancinha era eu mesmo, aproximando se veloz mente com um amplo sorriso e de olhos cintilando, o rosto manifestando uma alegria incontida.
Assim ele/eu nos tornamos algo único, uma só vida, uma felicidade verdadeira, completa.

Demorei bastante para retornar à consciência desperta, não queria mesmo sair de lá... Aos poucos, na penumbra do quarto (por volta das sete da noite de um dia da semana), voltei a lembrar me quem era, pensei
impossível e distante demais para ser verdade, voltei a ser aquela criança curiosa, sem preconceitos, sem medo de nada que, com certeza absoluta, e de coração aberto, poderemos ir além, muito além. Nada como termos estas experiências directamente,e em primeira pessoa.

Lembro me que pedi perdão e todo passou a fazer sentido e a transformar para sempre cada momento da minha existência...sigo na contemplação...

domingo, 30 de maio de 2010

Close up




O meu verso sentou-se, cansado, estiraçou as pernas, enrolou-se meio adormecido e olhou o relógio de mocho suspenso na parede em frente.

Esquisito aquele relógio com dois ponteiros - só de horas- um em cada olho. Ambos marcavam 3 horas, só que no olho da direita era sempre de noite e no olho da esquerda era sempre de dia (ou ao contrário, ele nunca tinha a certeza).

Ao meu verso apeteceu-lhe bolinhos (é um pouco louco e desorganizado o meu verso), um banho de abacate com perfume de violetas e cobriu-se depois, todo nu, com um roupão turco e macio cor de vinho forte.

Reclinado, projectou na parede do lado um slide onde se via muito vento (disse ele, vento).

Que chatice de vida, pensou. Se todas as mulheres se apaixonassem por mim, deixaria de haver complicações, angústias, amarguras, ciúmes ou remorsos. Tudo estaria certo e a vida correria feliz.

Mas não era nada disto que acontecia, disse ele subitamente alto, enquanto dava um pontapé num dos bolinhos.

Um pouco enjoado com os bolinhos (que aliás odiava) - é completamente doido já vos disse - o meu verso levantou-se e resolveu ir-se embora na noite.

Quase 4 horas, pensei, olhando o relógio que, em desassossego, parara. 4 da manhã do dia ou da noite? Tanto faz, ele é tempo, espaço e movimento. Embora não entenda nada do assunto.

Olho para um dos cantos da sala e percebo ali um espelho.

Um espelho.

Vou até ele lentamente e vejo um vulto um pouco diferente.

Vejo-me enfim transformada em mim mesma.

Numa perspectiva inesperada.

As lentes da cor



Ao fundo do corredor vive uma janela. Antes do nascer do sol, ele já está encostado à parede que fica no sentido oposto à janela, e aí espera pela luz. Quando a lente escolhida é verde, ele tem vontade de correr.

Correr por aquele prado fechado em direcção ao sol que brilha e ilumina toda aquela via, e que por isso mesmo ofusca os olhos de quem vive na noite.
Quando a lente escolhida é azul, ele tem vontade de nadar.

Nadar por aquele rio fechado em direcção ao sol que brilha e ilumina toda aquela via, e que por isso mesmo…
Quando a lente escolhida é amarela, ele tem vontade de voar.

Voar por aquele céu fechado em direcção ao sol que brilha e ilumina toda aquela…
Quando a lente escolhida é branca, ele tem vontade de saltar.

Saltar por aquelas nuvens fechadas em direcção ao sol que…
Quando a lente escolhida é vermelha, ele tem vontade de rastejar.

Rastejar por aqueles cadáveres fechados em direcção…
Quando a lente escolhida é negra, ele perde a vontade e fica na cama que conhece a sua cegueira de nascença. Fica o resto do dia a ver mexer os dedos dos pés que pertenciam às suas pernas amputadas. Fica o resto do dia a limpar as lentes dos outros óculos com as mãos que pertenciam aos seus braços e que vivem no mesmo sítio das suas pernas.

Nesse dia ele tira folga para dormir por entre os lençóis fechados…

… que ofuscam os olhos de quem vive no dia.

(Hoje, se eu pudesse escolher, queria ter uns óculos sem lentes)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Mancha Negra









É como se uma rédea pudesse travar o raciocínio lógico. E este relinchasse prolongadamente, reverberante, em intervalos regulares.
Como se um chicote ameaçador te castigasse os neurónios.
É como se um torno invisível te apertasse o crânio.
Como se os pulmões fossem mungidos por uma maquina industrial como tetas de vaca.
É a garganta seca como cortiça e apertada por uma entidade alíen que não vês mas pressentes. É o hálito insuportável e os testículos reduzidos a ervilhas. Os pés como tijolos, e as mãos como balões. É como ter vontade de vomitar durante 24 horas, 24 minutos, 24 segundos, 24 centésimos, 24 décimos e 24 milésimos por dia.

E é assim à 40 anos. Diga-me sr. doutor, estarei a morrer.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Não era só um vestido...



Como em tantas outras vezes em que arrumei o meu roupeiro,reparei com algumas peças que não usava a muito , mas que também não tinha coragem de me desfazer delas. Poucas peças... mas o suficiente para ocuparem o lugar de outras que poderiam estar sendo usadas...
Peguei num vestido que adorava e que nem me serve mais... e pensei no motivo de estar tão ligada a ele... por que tantas vezes tentei retira lo e tornava a guardar na esperança de um dia voltar a usar... como se fosse parte de mim.
... no dia seguinte, de manhã, quando de novo o vi e já ia guardar para mais uma temporada no armário, sem uso...caiu inesperadamente um sentimento em mim...
Entendi que o guardava porque, de alguma forma, não acreditava que poderia encontrar outra roupa que me caísse tão bem como aquela... em que me sentisse tão bem como me sentia com ele... outra roupa... outra situação... e senti solidão...

Talvez não haja no universo sentimento mais profundo do que este: solidão interior. Aquela solidão da alma. A constatação fria e inegável de que, não importa o quanto eu esteja cercada de coisas e pessoas, ou o quanto outras criaturas tenham contribuído com a minha caminhada, na minha consciência eu estou sempre só, comigo mesma. Enfim, sós... Eis que, em algum momento da minha existência, minha consciência força me à transformação, à total, profunda e sincera revisão de tudo em que vinha acreditando. Ela faz me olhar novamente para tudo o que fiz, construi e aprendi e, de forma implacável, coloca me frente à frente com tudo que sou, de verdade, e nem sequer imaginava.

Não há fuga possível, não há como ou onde esconder-me. É como se todas as máscaras caíssem ao mesmo tempo e eu fosse obrigada a olhar num espelho vivo e límpido, onde estão reflectidas todas as minhas verdadeiras emoções, ideias, necessidades e tropeços. Meus medos e as minhas carências.

E, ao me deparar com tanto da minha verdadeira essência que eu desconhecia e ignorava, é como se algo se rompesse dentro de mim e criasse um imenso vazio, que me engole e deixa sem chão e sem tecto, flutuando, em completa suspensão. É como se eu vagasse dentro de meu próprio vazio interior.

As referências momentaneamente confundem se, como se, o tempo todo, eu estivesse seguindo um mapa falso, para um tesouro que idealizei, mas nunca existiu.

As crenças parecem diluir-se, como se não passassem de bonecos de açúcar, que criei apenas para me adoçar a existência, enquanto estava ocupada demais sonhando acordada.

As certezas se transformam em dúvidas, como se tudo o que eu sabia não passasse de um enredo destinado apenas a justificar a mim mesma.

O que fazia sentido fica pálido e borrado, como se o meu universo fosse apenas o produto de uma imaginação muito fértil, ou a lembrança de um sonho muito vivido, ou uma alucinação.

E tudo o que tenho é apenas a mim mesma, em toda a minha realidade nua e crua. Nem mais, nem menos. Sou eu me despindo para mim mesma, como nunca havia feito antes...

E, então, vem a dor... A dor de perceber que, talvez, essa solidão seja apenas reflexo de uma escolha, uma postura, uma atitude equivocada. A dor de saber que quem se afastou fui eu mesma, num movimento de defesa infantil e inconsciente, numa fuga assustada por medo de sofrer, ou de perder, ou de ser esquecida. A dor de me dar conta de que, o tempo todo, fugi apenas de mim mesma e que os outros apenas respeitaram a minha fuga, deixando-me fugir.

E a dor, às vezes, é tanta e tão grande, que faltam forças para sair do lugar, falta energia para fase-la parar ou mesmo para olhar para ela. Ela dói no corpo e na alma, dói por dentro e por fora, dói pesado e profundo.

Não pretendo anestesia-la, não pretendo também ignora-la. Não desta vez. Quero experimenta-la até a última gota, se possível, se eu suportar. Quero abraça-la para que ela se transforme em luz, a luz que ainda não tive coragem de buscar para me orientar nos meus caminhos.

Não quero apenas passar por ela, mas passar com ela, caminhar com ela, com partilhar seus segredos, conhecer sua história. A minha história.

No entanto, eu e ela estamos no mundo. E, estando no mundo, caminhamos com outras pessoas. Pessoas que estão em outros momentos, pessoas que têm outras necessidades, pessoas que só conseguem ver em mim o que já conhecem, sem conseguir, nem de leve, suspeitar do que também sou, e elas não conhecem e não conseguem perceber e compreender. E nem mesmo eu conheço bem...

E não há como explicar. Não há como colocar em palavras essa solidão que dói em meio a tanta gente, essa solidão plena que me faz sentir única como nunca me senti, essa solidão que me afasta de tudo e de todos e, ao mesmo tempo, quer desesperadamente estar em meio a outros que possam, ao menos, acolhe la, exactamente como ela é.

Não há como decifrar, não há como abrir o peito e mostrar o que está acontecendo bem ali dentro, onde a dor decidiu se instalar. Não há como mostrar o coração que dói, ao lado daquele que bate, pois só eu o sinto. Só eu sinto o que ele sente...

E, na nossa dor, somos cúmplices um do outro, nessa solidão que é triste, mas não é tristeza. Essa solidão que assusta, mas não é medo. Essa solidão que machuca, mas não deixa ferida. Uma solidão que é mais que estar sozinho, pois é solidão da alma. Entendi que para mim... aquele vestido tinha a ver com algo muito bom que vivi no passado... e que de alguma forma, por memórias equivocadas, não acreditava que poderia viver no presente... e foi com surpresa e alegria que me vi a pegar nele e noutras peças e por fim dei porque já não precisava mais ...

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Taquicardia



Corre olá! Vai de encontro ao tudo bem e diz-lhe que gostei muito de o ver hoje. Podes também dizer o bom dia e esperar que ele responda o igualmente.

Corre cá vamos! Vai de encontro ao é a vida e diz-lhe que amanhã a morte pode vir. Podes também dizer o ele era tão boa pessoa e esperar que ele responda o coitadinho.

Corre está de chuva! Vai de encontro ao já não é tempo dela e diz-lhe que o mundo perdeu o sol. Podes também dizer o já chega de tanta água e esperar que ele responda o isto está mau.

Corre adeus! Vai de encontro ao beijo soprado e diz-lhe o até sempre. Podes também dizer o vou ter saudades tuas e esperar que ele responda o eu conheço-o de algum lado?

Corre amo-te! Vai de encontro ao eu também e diz-lhe que o olá, o cá vamos, o está de chuva, e o adeus, nada valem. Podes também dizer-lhe que o mundo é pequeno e esperar que ele responda o a vida ainda mais.

Corre! Vai de encontro! E diz-lhe! Podes também dizer! E esperar que ele responda!

Pára! É aqui!

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Contradição




Tomem este exemplo, por favor
dissequem-no como Galeno fazia aos cadáveres proibidos
e a demais ditadores não deis ouvidos
pois a palavra é a flecha venenosa
que mata o coração de forma vergonhosa

E se outro vos contar da Desditosa
não lhe tomais atenção, são calúnias
recusai desses abutres as suas pecúnias
ignorai as penas negras da ave agoirenta
que ferem olhos sãos qual negra pimenta

E da voz d’Ela não tomeis conta
são ruídos de animal tomado pela luxúria
não vos deixai levar em tal incúria
e se demais escutardes da Desditosa
preparai vosso coração para morte vergonhosa

Sua pele é ácida como limão
ferrugem e poalha em suas veias
tranças de palha feitas correias
amarram o amante da Venenosa
que lambe a sua pele preciosa

Os meus olhos fechei, perdi a coragem
a meu corpo permiti tal desventura
a violência atroz de sua candura
a luz que cega de forma danosa
deixei-me levar qual mariposa

No limbo todo o Homem perde horizonte
do medo que antes o deixava alerta
do horror iminente da morte incerta
da estultícia do vício tornado banal
da pequena morte do delito carnal

E eu lambi o veneno alarvemente
à medida que sua face se esvanecia
por entre a beleza do acto que então decorria
o corpo terno e quente que antes ardia
gelava em meus braços enquanto morria

E eu focava minha atenção em sua última palavra
tentando fingir algum interesse
no som asfixiado de sua derradeira prece
até que me aborreci de morte
e arranquei o fôlego da minha jovem consorte

O aviso que vos deixo é o seguinte
que tais actos bárbaros sejam jamais permitidos
como os de Galeno com os cadáveres proibidos
e reservai um minuto para reflexão
e descobri-de onde está a maldição

Em poucas palavras, o que é o amor
do desejo ao ódio tudo lhe pertence
da imagem poética de que tudo o amor vence
não será em si mesma uma enorme ilusão?
e o amor em si uma contradição?

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Então adeus




Então adeus, a gente vê-se por aí. Foi assim que se despediram, depois de dias de conversa amena em viagens no mesmo comboio. Ele, extrovertido, conversador, olhos escuros e indolentes. Ela, introvertida, arisca, olhos claros e tristes de quem fixa longamente o horizonte, vivera temporariamente naquela aldeia, por razões só dela conhecidas. Mas chegara a hora de partir.

Ouve-se o som duma música ao longe, acompanhando as palavras profundas, inéditas, pairando no ar seco e húmido da solidão .

O dia tinha o perfume do fim do Verão, o primeiro cheiro da chuva, das ervas, das árvores, das folhas, misturando-se com o odor das algas na areia da praia deserta e no ciclo das marés. Até chovia um pouco.

(......)

Os dois bombeiros eram muito jovens, tal como os dois agentes da PSP. Jovens, correctos, impecáveis.

- Quanto é?

- Não é nada, os nossos serviços são gratuitos.

Fiquei boquiaberta. Não resisti e ofereci-lhes duas garrafas de sumo de maracujá concentrado, F. Faria e Filhos (falta-me a tecla do respectivo símbolo comercial, do "e"), Rua das Maravilhas, n.º 25 CC e 25 D, Funchal, Madeira, que um dos meus irmãos me costuma trazer, em memória dos maracujás que devorámos quando vivíamos a infância nas ilhas.

(......)

Antes da despedida, tinham passado pelo largo da igreja, contornado o pelourinho, passeado na praia ondulante de marés vivas, e finalmente entrado num café, o "Berço do Mar", que cheirava fortemente a sardinhas assadas.

Não foi uma despedida trivial, ou de mero protocolo social. Era assim como que uma rendição, com um desvelo no olhar, como uma fatalidade. Como se a exaltação do primeiro encontro não se tivesse repetido, repetido, repetido, como um relógio que retoma sempre o mesmo prazer do tempo. Assim como se não tivesse havido fascínio, assim como se o olhar não se tivesse cortado no tempo em pequenas fracções de universo, assim como se não houvera tempestade.

Quis fugir. De repente senti-me sobreviver com um cesto de flores na mão, como conta Ovídio nas Metamorfoses, depois de, finalmente, ter conseguido entrar em casa.

Estiveram longo tempo sentados, expectantes, parecendo implorar ao tempo que se virasse do avesso, que não passasse demasiado depressa, que guardasse o calor que vinha deles, do fundo da terra, do centro da terra. Olharam-se, cada um na sua vida passada, nos seus amores passados, nas suas coisas passadas, emoldurados num anel, num livro, numa simples recordação, evitando o espelho em frente que transformava em diamante a pedra bruta.

Quando o táxi chegou, ele ajudou-a gentilmente a arrumar as malas, t-shirt por dentro das calças de ganga, o blusão de tecido de gabardine inclinando-se junto do porta bagagens, ela silenciosa e já sem o sorriso a abrir pequenas covinhas no seu rosto claro, lutando para não desabar, e o vento...(o vento!! já me esquecia do vento) a espalhar poeira em torvelinho na rua molhada á beira mar. Adeus, a gente vê-se por aí.

Ainda voltou atrás, tinha-se esquecido do guarda chuva que comprara na feira quando tinha apenas 7 anos e ainda havia escudos.

Sentei-me a beber um copo de gin tonico e a ler jornais. Um artigo do Vital Moreira no "Público" chamou-me a atenção, seguido de outro sobre o aumento das taxas moderadoras do Serviço Nacional de Saúde.

(.......)

Ainda ouvi o ranger do comboio. Ainda o vi, de calças de flanela, flutuando, a desaparecer no mergulho final.

Caminhei para o sofá, fui fazer festinhas ao meu cão que é também o meu melhor amigo, e ali adormeci sem apagar a luz.

Quando as Coisas do Espírito Falam ao Coração




Há coisas que as palavras não dizem.
Há sentimentos que voam na noite, como setas de fogo...
De coração a coração, iluminando os céus.
De espírito a espírito, por entre os planos da vida e além da mente.

Há coisas que os sentidos não percebem.
Algumas delas, muito boas. Outras, nem tanto.
As boas iluminam a consciência e abrem caminhos...
As outras tapam o discernimento e escurecem o coração.

Há coisas que os homens fazem a si mesmos, sem noção do perigo.
Como deixar o próprio espírito entorpecido e o coração seco.
Como viajar pela vida sem pensar e sem sentir, perdido em suas dores.
Como "viver sem viver", automaticamente, no vazio.

Há coisas que ninguém diz, mas todos sentem, de alguma maneira.
Faixas escuras que apertam o coração angustiado.
Pensamentos intrusos que invadem a mente.
E energias estranhas que chegam, sorrateiramente, e roubam o bom humor.

Há coisas obscuras rondando e muitos sofrem com isso.
No entanto, há aqueles que vêem e sentem o invisível directamente.
E se escoram na Luz, para iluminar a consciência e abrir os caminhos...
Ligam-se ao Alto, em espírito e verdade, para seguir em frente...

Há coisas que a mente não entende, pois transcendem o seu limite.
Mas alguns sabem voar nas asas da prece, para além das estrelas.
Sabem unir seu pequeno coração ao Grande Coração do Eterno.
Sabem que viver não é só viver, é muito mais do que isso.

Há coisas que ninguém explica, mas muitos sentem.
Como caminhar com um grande amor num pequeno coração.
Como valorizar a vida, rir de uma piada e ver o Eterno nisso.
Como se sentir gente, mesmo sendo espírito.

Há coisas que são consideradas do "Além", mas que estão por aqui mesmo.
Elas falam, não com palavras, mas com a força da vida, que jamais acaba na morte.
E há coisas daqui, que, muitas vezes, viajam ao "Além"...
Viagens espirituais, que poucos conhecem, mas muitos fazem, mesmo sem lembrar.

Há coisas que bloqueiam a felicidade e chamam a dor e o vazio.
Como o ódio e o desejo de vingança, que permitem às faixas escuras apertar o coração.
Como perder a própria canção no imenso concerto da vida.
Como entorpecer o espírito com fortes doses de arrogância.

Há coisas que são simples, mas de grande efeito no céu do coração
"De que adianta a uma pessoa ganhar o mundo, se ela perder sua alma?
Que falam de outros planos e estimulam as acções sadias e a valorização da vida.
Elas falam de um Grande Amor que está em tudo!

Há coisas que as palavras não dizem.
Setas de fogo varam a escuridão da noite, por entre os planos da vida...
E os corações se encontram, aqui e além, no Grande Coração do Ancião dos Dias.
Não há morte. E o Todo está em tudo!


O espírito reconhece o espírito. Assim como o Amor reconhece o Amor, e chama a Luz.
Mas, como muitos já sabem, isso não se explica, só se sente...
Às vezes, o Céu fala aos homens por meio de outros homens.
Em outras, directamente ao coração. Ou ainda, pela música, ou pelos sonhos, durante o sono.

E há coisas... vai haver sempre.....

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Ausente



Rezo por mim própria, pois sei que não o posso esconder por muito mais.
Escondo a minha cara envergonhada e transvazo de angústia e pesar. Não há mais nada a negar nem a defender. A desolação esfumou a esperança que se entretinha a assomar por entre as caras dos fantasmas dos meus medos. Agora quem me vai segurar? Não há nada que eu possa fazer que não o tenha já feito, nada que eu possa ver, apenas presenciar enquanto tudo se desmorona. Ninguém para me dizer o que fazer, isto não tem um fim se eu não compreender que não posso retornar a fazê-lo.
Não há palavras que me saiam, não há uma verdade que eu consiga ver. Resta-me deixar isto acabar, sabendo em consciência que não posso refazer o que foi desfeito. Sabendo que não há reinicio. Sabendo que não há nada à minha espera do outro lado.

(...)

Mas o que estou a dizer? Ah, que estupidez, que vontade de rir!... Terminar? Coitada, como se fosses capaz! Ri, sorri, cura. Caminha comigo e canta-me ao ouvido. Sou invisível e não posso desaparecer mais que isto. Se me quiseres abandonar, se me deixares, eu seguirei, sempre. Se ousares caminhar para longe serei o som dos teus passos. Continuarás a tropeçar em cordas invisíveis e a escutar gargalhadas de escárnio e ilusão.

(...)

O mundo é o meu caixote de lixo, a minha poça de lama. A minha banheira transbordante de medo e mentira. Há um sonho dentro de outro sonho que não me deixa dormir quando adormeço. Aqui estou sozinha quando estás comigo. Sou o meu próprio deus, juiz e carrasco.

(...)

Porque não decides por mim? Porque não vens a mim, minha querida? Deixa-te enlear pelos meus braços, beijar pela minha boca, tocar pelos meus cabelos e embalar pela minha voz. Dorme bebé, estás a salvo aqui, dentro do círculo de luz, dentro do Sol que amanhece, dentro da minha infinita piedade e dormência. Dentro de toda a demência. Lento, ainda mais lento, o meu coração relaxa e inunda o frágil corpo de morfina e ...

(...)

Mas será que não há verdadeiro silêncio neste mundo? Será que só me restam os ensurdecedores silêncios abafados de átrio de hospital, de uma imensidão de estranhos que se reúne ao acaso para ver este paranóico espectáculo? Antes queria estar só... porque não me deixam estar só!!!...


- Doutor, venha depressa. Ela está outra vez a revirar os olhos e com convulsões!

- Enfermeira, mostre-me a ficha da paciente por favor... Humm, aumentem a dose de Diazepam em 5 mg. Mantenha-me informado do seu estado.

- Sim Doutor, assim farei, fique descansado...








(...)

Vogo num mar sem ondas, apenas uma ligeira brisa na minha face rosada pelo pálido luar. A noite engole-me e leva-me com ela para longe, para o outro lado da Lua. Escuto o som do mar e do espaço que me envolve. Sinto a água a respingar nos meus dedos à medida que os arrasto pela superfície. Porque estou aqui? Tão distante de mim mesma, o meu coração está tão triste... O que faço aqui? Porque me sinto tão abandonada..? Porque me ardem as lágrimas que escorrem dos meus olhos feridos? O que faço aqui?

(...)

Um poder maior saberá o que foi e o que será de mim. Espero pacientemente e reflicto no que isto significa para mim. Nunca ninguém saberá de mim, só eu sei o que é estar tão só. O fim estará próximo ou a uma eternidade de distância?.... aaahhh.... abandona-me por favor, agora…

(...)

Lembro-me de ti, antes do dia que me marcou. Sonho contigo a ser criança e a brincar, a andar descalça pela relva e a apanhar as borboletas com o teu chapéu. Sonho que sorrias para mim e me enviavas beijos pelo ar. Sonho que eras linda e eu era feliz.

(...)

Não o faças, por favor. Não fiques assim triste e doente. Não olhes para mim com os olhos vazios de fé e vontade de viver. E dar-te-ei a fé e a razão, farei com que te sintas mais brilhante do que o Sol. Lembrar-te-ei que és especial, que és única e valiosa. Não me deixes aqui sozinha, fica comigo ou leva-me contigo.

(...)

Tu nunca nasceste e eu amei-te mais do que a mim própria. Lembrar-me-ei sempre da tua cara que nunca vi, da tua pele que nunca senti, do teu amor que me enchia de força e vontade de viver... para sempre! Amo-te meu bebé, amo-te tanto que jamais conseguirei voltar a sentir seja o que for, a não ser dor e eterna saudade. Nada mais há para mim, nada mais me prende. Quero ir para junto de ti e ficar contigo, de mãos dadas a vogar no infinito…






(...)

Galderia, cala-te e para de choramingar! Quem te oiça até vai dizer que não gostaste do que fizeste. Adoraste cada instante, cada momento. Tu sabias que estavas irresistível, apetecível, a caminhar sorridente e deslumbrante, a gozar com os homens que deixavas para trás, exibindo-te despudoradamente. Foste uma ordinária, estavas tanto a pedi-las... Nem o fruto em teu ventre te fez travar a vaidade. Foste tu, ordinária, tu que o atraíste, tu que tens a culpa! Tu é que tiveste a culpa!!!



- Doutor, tem que vir já! As convulsões estão cada vez piores e os gritos são de enloquecer. Acho que ela está a morrer de desespero!

- Pobre coitada. Os casos de violação são sempre complicadíssimos. Ter perdido o bebé deixou-a profundamente traumatizada... Aumentou a dose de Diazepam como lhe disse?

domingo, 9 de maio de 2010

Degraus de madeira



Na manhã em que ele caiu pelas escadas, recebeu um forte aplauso de todos aqueles que acham que a queda só traz tristeza. A queda… e um novo acordar. A queda… e uma nova subida.

Na tarde em que ele pôs o pé esquerdo no primeiro degrau, ainda lhe doía o direito mas, mesmo assim lembrou-se da cara de todos aqueles que batem palma com palma ao mesmo tempo que acham que a queda só guarda mágoa. Recordou-se ainda de como é bom sentir a planta do pé a empurrar a planta que forra o degrau.

Na noite em que ele pôs o pé direito no segundo degrau, o pé esquerdo já morria de ansiedade para poder abusar da força da perna direita e redescobrir o terceiro. Suave toque, forte peso, grande vontade e “vamos a mais um degrau? ”

Na manhã em que ele caiu, ele sabia que cair só ia ser triste enquanto a queda durasse, porque à tarde já ia estar a iniciar a subida, e à noite já se ia lembrar sem grande esforço, como pôr um pé à frente do outro, acima do outro.

Já lá em cima, olhou para baixo, viu todos aqueles que acham que a queda só aspira melancolia e pensou “quantas vezes terei de cair pelas escadas para que eles percebam que após sacudir o pó da palma das mãos, a planta dos pés tem de ir agarrar mais madeira?”

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...