sábado, 31 de julho de 2010

O sorriso do rei



O esqueleto que passeia pelo campo de concentração, tem olhos, tinha olhos que viam acima e por cima das montanhas que existiam no seu dedo mindinho do pé esquerdo. Dói ter de transportar tantas rochas, terra, plantas, animais, poluição, em cima de um só dedo.
O esqueleto coxo que caminha pelo campo de concentração, tinha na mão direita e preso ao dedo anelar um iô-iô que subia e descia e marcava o ritmo dos seus ciclos respiratórios, os que sobraram dos seus pulmões fantasma, mas que ainda respiravam porque há coisas que nos atormentam para o resto da vida mesmo depois de já não fazerem parte dela fisicamente.

O esqueleto que deambula pelo campo de concentração adora bolas de sabão e gostava de as tomar ao pequeno-almoço acompanhadas por algodão doce barrado com as letras dos cartazes que anunciavam que o circo vinha a chegar à aldeia.
O esqueleto trapezista que sofre de aerofobia, gostava de jogar xadrez nas pedras da calçada que estavam no chão da biblioteca e era aí que via a dama a fugir da torre com o bispo a cavalo, deixando o rei amargurado a comer os peões e a beber sumo aos quadradinhos pretos e brancos.

O esqueleto coxo, trapezista e rei tem o sonho de ser aquático para nadar em mares de prata e desta forma sentir que os ossos já não pesam tanto, nem as montanhas, nem o iô-iô. Talvez amanhã haja uma grande precipitação atmosférica e a chuva ácida encha as paredes que terminam em arame farpado. Talvez amanhã o esqueleto esteja a tomar o pequeno-almoço debaixo de água no campo de concentração ao mesmo tempo que se concentra naquela palavra esquecida. Aquela palavra que o rei sentia pela dama. Aquela palavra que nasce naquele órgão que ele já não tem, mas que em silêncio ainda se ouvem os seus batimentos. Nos dias em que recorda a palavra quer chorar mas, o esqueleto que vagueia pelo campo de concentração, reparou que está sempre a sorrir. É o pior preço que se pode pagar por ser esqueleto… sorrir para toda a eternidade sem poder deixar cair uma única lágrima.
Ele sorri para mostrar o desgosto que sente por a ter perdido. Ele não chora para poder dizer que a ama.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

O homem descarnado



Perdeu-se no deserto e apareceram miragens dele, primeiro era só um depois dezenas dele e centenas e milhares dele todos com a mesma cara e todo o corpo igual ao dele e aproximavam-se dele e rodeavam-no até taparem o sol. Afastavam-se todos em sintonia como uma orquestra desaparecendo em nuvens brancas e brilhantes, restavam o silêncio da noite gelada, das estrelas puras e da mansidão de dunas paradas e de horizontes invisíveis, era à noite que tinha forças para rastejar, quem sabe alguém me descobre, no deserto passam caravanas de beduínos e berberes. Segundo sei o Atlas fica próximo mas não tenho a certeza por isso vou rastejando na noite à procura do Eden, ou de outro sítio onde possa viver, foi por isso que me meti nesta aventura, vim procurar o Eden fora de mim, todos os meus companheiros desistiram, vi os seus corpos enterrados com as bocas cheias de areia e os olhos em forma de cacto, e depois foram-se enterrando ainda mais, só um pé ficou de fora, arranquei-o e comi-o todo, chupei os ossos dos dedos, procurei os sacos de água, resta-me um que vou bebendo com sabor a conhaque, só às vezes, está menos de meio, ao longe o fogo aproxima-se, não sei o que são dias ou noites.
Aparecem todos, eles que sou eu, riem-se de mim e fazem caretas como palhaços, estão vestidos com o meu fato de executivo numa empresa de sucesso e grito-lhes, e peço-lhes que desistam, que vistam a minha roupa, levem-me daqui mas eu não faço nada, quer dizer eles não fazem nada e desisti de os olhar nos olhos brilhantes que ferem os meus, já não tenho água, o sol, o sol, neste deserto, neste deserto, rastejo de mãos enclavinhadas de sangue o tronco move-se como um lagarto moribundo.
Quem sou eu? Lembro-me vagamente do perfume, dos restaurantes, da casa confortável, de caras, sorrisos, pessoas apertando-me a mão, vagamente, e o sol, o sol o sol martela, não há água, a boca é um buraco pequeno lambendo areia, o Eden? Será uma ficção? O Eden, deve existir, força, anda, rasteja, procura, eles vêm aí, iguais a mim, são cruéis, maus, rodeiam-me, vão-se, noite, noite gelada e o sol ardente, ardente, come-me as entranhas, água, água, sou um tronco de ossos descarnado, sinto um som profundo é o fogo a comer-me, a sugar-me, um raio de sol zumbe como um enxame de abelhas entrando nos ouvidos, está cá dentro o sol, rebolo no sol, a duna desliza sobre mim, mais além vejo finalmente o Eden e ergo finalmente os ossos dos braços quando me aparece a luz suave que me leva e me liberta.

“Foram encontrados no deserto os restos mortais do famoso empresário X que empreendeu com um reduzido grupo de amigos uma viagem a Nenhures, ignorando-se as causas exactas da morte. Os restantes elementos encontram-se bem, manifestando-se estupefactos com o acontecimento, para o qual não encontram qualquer justificação”.

sábado, 24 de julho de 2010

Sílabas

(estava a arrumar a 'casa' e reencontrei este texto já com 4 anos, mas como continua a ser um dos meus favoritos, aqui vai uma 'reedição'. Hope you like it!)



Que mundo mesquinho. Estou farta de os aturar...

Sirvo-os à mesa, todos os dias, neste café de beira de estrada, farto de brutos e ‘meninas da vida’, de penduras, pelintras e pedintes, de cretinos, descrentes e credores em viagem. E cabe-me a mim, no meio deste inferno, aturar toda esta canalha. Dar-lhes de beber, de comer, e se eu os deixasse, de f.....

Ninguém diz nada que valha a escuta, que preencha o vazio, que alegre o dia, que me eleve a alma, que me conforte a dor, que me faça sentir humana, pessoa, útil, amada! Nada, apenas a rudeza dos gestos e o lixo da palavra de rua, suja e bruta como todos são, do patrão à colega mais nova, da velha da caixa ao puto do posto de serviço, do miúdo que me olha para o decote com vergonha ao porco do Mercedes que devora o rabo com os olhos e saliva nos cantos da boca.

Não consigo ser mãe, mulher, esposa, prazer, nem delito nem deleite, sou apenas a ‘tipa’ do café da beira da estrada, aqui para vos servir, aqui ontem, aqui hoje, ... e amanhã?....

Não oiço uma única expressão que mereça ser ouvida, vivo dentro de um mundo onde não se usam palavras com mais de três sílabas. Ninguém as usa, ninguém as diz. Três sílabas, é o limite do meu espaço, do meu ser, da gentalha que se move entre as mesas já gastas pelos anos, gastas pelo meu esfregar constante do pano húmido e fedendo a pop limão. Não usam mais de três sílabas para escrever nas portas da retrete: “faço bicos”, “vivó benfica”, “jovem solteiro”, “no cagar é que está o ganho”, e são essas merdas que eu tenho que aturar quando me calha a vez de limpar...

Uma. Duas. Três. É o máximo. Não existem palavras com mais de três silabas no meu mundo. Não tenho mais letras para o horror e depressão em que vivo. Não conheço fim deste limite para descrever os dias que passo entre os pedidos de hamburgers, de coca colas, de batatas fritas, de massa com molho de tomate, de carne de porco frita, de rissóis, empadas, sopas, cafés, bagaços, tabaco, trocos para a máquina de jogos, mais água por favor, traga o ketchup, a pimenta, azeite, vinagre, sal. Todo o sal que me resta está nestas lágrimas que me escorrem da face, que deslizam para a minha boca, que sorvo com tremuras, que uso como tempero de mim própria, como final amargor da minha vida vazia por entre as mesas e o balcão, por entre as mãos sujas que me deixam meia dúzia de trocos e os olhos vazios de quem não me vê nem nunca verá...


Hoje mudo tudo.

Ergo-me ainda mais cedo e vou até à cozinha. Hoje aumento os limites do meu mundo, uma nova dimensão, a quatro sílabas. No vinho a granel, no azeite de prato e no café moído está o meu tributo para todos vós.

Cianeto.

Dona Morte



O mundo está cheio de sonâmbulos.
Sim, isso mesmo!
É que são tantos semiconsciente andando por aí, não é brincadeira.
E o pior é que eles pensam que estão acordados.
A quantidade de gente hipnotizada é enorme.
É gente que não pensa e apenas gravita em torno das percepções limitadas que os seus sentidos físicos lhes proporcionam.
E isso é um problema, pois, quando a Dona Morte chega e bate...ficam perdidos nas brumas de seus condicionamentos e limites.
A Dona Morte não é brincadeira, não!
Quem vive na carne, que se cuide.
Viver não é só comer, beber, dormir, amar, e um dia, finalmente, morrer...
Viver é muito mais e não cabe numa só vida.
E é triste só descobrir isso após a chegada da Dona Morte.
Despertar é preciso!
Quem está desperto (e esperto), valoriza a consciência limpa.
E a velha senhora dizia isto de uma forma clara e doce...nunca mais a vi nem ouvi...
Penso nela muitas vezes, principalmente quando estou na minha varanda ao fim do dia
E as cerejeiras começam a dar flor.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Ap ne ia



Menina canta ao som das pancadas que sofreu no passado e daquelas que se anunciam à medida que a sua voz se espalha ao ritmo do fumo e assim menina desenha as notas musicais de tudo aquilo que não sabe ouvir e por isso espera que o medo a venha obrigar a fugir ou a permanecer naquele lugar que sonha e vê mas não parece real porque menina sabe que os olhos choram e rasgam a face sempre em direcção ao chão que não faz barulho à sua passagem mas mesmo assim menina quer tocar e sentir que tem cócegas nos pés plantados ao som das pancadas que sofreu num futuro que fez o fumo desaparecer e deixar menina sem ritmo suficiente para fugir e por isso tem de permanecer naquele lugar que fala e lhe segreda ao nariz que neste momento não tem fôlego para continuar a sonhar e por isso menina sorri amargurada ao mesmo tempo que sente o toque dos seus fios de cabelo a acariciarem a face cicatrizada pelo ácido ocular que dói que dói muito pelo que menina resolve pôr-se em pontas e olhar para as nuvens brancas às riscas pretas desenhadas com aquele lápis que todos trazemos atrás da orelha mas que só alguns o sabem usar porque nem todos conhecem o sítio do afia-angústias que a vida oferece e a morte favorece pelo menos enquanto as gotas de areia nos preenchem a alma e marcam a ferros tudo aquilo que menina já sabe e sempre soube ser mágico e sem tempo contado e que pelo menos uma vez em toda a história aquilo fez sentido e menina arrisca a ter medo arrisca a sentir o seu cabelo colado ao pescoço pelas lágrimas de suor que neutralizam o ácido respirado e amado para sempre um sempre que agora faz menina juntar as pestanas de cima com as pestanas de baixo e formar com os lábios uma meia-lua voltada para cima e nunca voltada para baixo e é aqui só aqui que menina respira fundo e recupera o fôlego. Menina canta ao som das pancadas que sofre.

domingo, 18 de julho de 2010

Devia ser assim...



Os melhores curadores são discretos.
Eles calam o ego e deixam o coração fluir o amor sereno...
O toque de suas mãos é gentil e generoso.
Eles têm mãos de Luz!

Pelo alto de suas cabeças desce a sabedoria celeste.
Ao mesmo tempo, a vitalidade da terra beija seus pés.
Enquanto isso, as pétalas dos lótus dos seus corações abrem se...
E eles tornam se templos vivos da Luz que cura!

Não carregam posturas arrogantes; são simples e alegres.
Transitam pela existência sem julgar ninguém.
Eles são da Luz serena!

Eles são curadores, dos outros e de si mesmos.
Não se magoam com coisa alguma,são felizes.
Os seus actos são lúcidos!

Ah, esses curadores,belos e tranquilos, que fazem voos na luz!
São estrelas na carne, agindo em nome do Alto.
Muitas vezes, quietinhos, eles abraçam a humanidade.
Eles nada esperam, só abraçam a alma do mundo.

Eles estão no mundo igualmente com todos, mas há colunas de luz sobre os seus caminhos.
Muitas vezes, eles sentem a dor do mundo, em si mesmos.
Nesses momentos, eles se recolhem na prece e juntam forças no Alto.
E vibram as mãos cheias de luz, sob o comando do coração.

Não há orgulho no seu rumo, só satisfação serena.
Não há contendas nem competições nos seus caminhos, só cura.
E, eles sempre dizem, contentes: "Senhor, nada é meu, tudo é Teu. Inclusive eu!

sábado, 17 de julho de 2010

Estranho(s)



É importante para mim
Que depois do dia venha a escuridão
Que a cegueira não nos tire a visão
Que o mundo seja feito de ilusão
Até que descubro por fim
No meio de tanta inquietação
É só mais um dia, enfim

É tão importante para mim
Compreender porque temos que viver
Arrumados em caixas, a enlouquecer
Presos a detalhes, sem nunca saber
Que tudo se dilui no dia de morrer
Entender porque me sinto assim
Tão ansioso por conhecer
O que causa o frenesim

É então que descubro, em mim
O estranho que sempre procurei
Mas que nunca encontrei
Até me encontrar, por fim
Um sentimento de infinita plenitude
Por reconhecer no estranho em ti
Outro igual a mim

segunda-feira, 12 de julho de 2010

na noite



A criança já dormia a sono solto mas o velho continuava junto à cabeceira dela.
A história não tinha acabado; raramente chegava ao fim porque ela adormecia durante.
Já não se lembrava de si na sua meninice, não se recordava se o mais importante eram as histórias que ouvia ou se a voz e presença de quem lhas contava. O dar a mão era fundamental. Sim, disso lembrava-se.
Também ela entrelaçava os dedos nos seus e iam perdendo força à medida que o sono vinha. Até que a mão ficava ali, perdida na sua.
O silêncio do quarto apenas era interrompido pela respiração suave mas profunda dela. Nesse sono, nessa respiração e no abandono à sua presença a criança respondia àquilo que o velho nunca lhe tinha dito porque não era necessário: dorme. Estarei cá e vigiar-te-ei o sono.

Quantas vezes as mais belas coisas são aquelas que não precisam ser ditas?

domingo, 11 de julho de 2010

Fica aqui



Que sorte a minha ter te aqui na minha frente.
Enquanto teus olhos percorrem estas linhas e palavras, eu consigo sentir os ruídos do teu coração e do seu corpo.
O coração ameaça sangrar de tantas dores que traz, mas o teu corpo abranda este sofrimento quando ouve a voz... dizendo palavras de coragem e fé.
Este é um raro momento... evita olhar para os lados,Fica aqui...

Tu és uma alma bela! O Universo fez os contornos do seu corpo com mãos de luz...
O teu semblante foi esculpido num singular momento de prazer de duas pessoas que se amaram naquele instante.
Sabes, tu és uma fruta deliciosa que a vida guarda no pomar da terra.
E há muitas criaturas e seres da natureza que se deliciam com teu cheiro e sabor.
Os que passam pela tua vida são como abelhas que pousam na tua alma, bebendo o que há de melhor no teu ser...
Não! Em hipótese alguma, te sintas seca, consumida.

E se algum dia, as lágrimas forem o teu único instrumento, deixa as cair no peito e rega o teu coração para que nele nasçam novas sementes e flores.
Que sorte a minha ter te aqui e agora, emprestando me os teus olhos e ouvidos...
Porque tudo o que tu lês e sentes, neste minuto, esta sendo gravado nas estrelas, para que essa luz do teu coração possa iluminar e oferecer oportunidades para mais alguém.
Fica aqui assim. Sente o pulsar do teu coração.
É um som divino ele ressoa no teu corpo e irradia bem-estar para todos...da o teu coração, mas não o deixes a guarda do outro porque só a mão da vida o pode guardar descansa agora na razão e actua na paixão...Deixa te ficar por aqui...

sábado, 10 de julho de 2010

Janela das três e onze



Aquilo que se sente quando… a olhar pela janela, sei que vai acontecer. Fixo as linhas brancas da passadeira e imagino palavras, palavras e palavras, que sabem porque saem, mas estão totalmente vazias de texto. Sabem que são palavras mas não sabem como conseguiram juntar as letras. Sabem que dia é hoje mas já se perderam no passado que futuramente vai trazer mais palavras que nem sabiam que existiam. Depois de atravessar a rua chego ao passeio e este é outra longa linha onde desfilam mais palavras, de mãos dadas, ou com o peso dos sacos das compras, ou ainda de mochila às costas. Mas as minhas preferidas são aquelas que vêm a mascar pastilha elástica e a fazerem balões de dióxido de carbono com letras misturadas. Quando esses balões rebentam, milhares de palavras são formadas com as letras que se soltam. Sustenho a respiração. Volto para trás. Entro em casa e regresso à janela. Imagino sons, sons e sons, que sabem porque saem, mas estão totalmente vazios de música e de… palavras. Neste momento prefiro ouvir o som do coração, porque sei que um dia, ele estará a tentar juntar letras para formar palavras que ainda não conheço e nem vou conhecer. Nesse mesmo dia, alguém no passeio irá estar a fumar um cigarro e a fazer argolas de fumo com letras penduradas à volta. Nesse dia, mas só nesse dia, saberei que afinal só depois do som é que vem a palavra, e que o melhor era ter ficado a escutar os meus pulmões a inspirar enquanto as letras ainda andavam à solta. Expiro o ar vazio. Aquilo que se sente quando… se volta para casa sem letras suficientes sequer para formar a palavra “janela”.

domingo, 4 de julho de 2010

Artesanato



“Pára quieta com a mão! Menina insolente… assim não consigo cortar a direito. Pronto, já está. Dez dedinhos. Toma cão, já tens jantar para hoje.
Raios! Pára de me berrar aos ouvidos… bela medricas me saíste. Já aqui estive melhores do que tu.”

Na cabana, ao fundo do bosque, vive ele, o homem que tem como forma de vida a arte da morte. Não uma morte pelo simples prazer de ser morte, mas uma morte que tem sempre um propósito. Chama-lhe morte útil, e para ele é uma simples forma de expressão.

Ata uma corda à volta dos tornozelos e deixa-a pendurada de cabeça para baixo. Dez canais jorram para o chão até que ficam só a conta gotas. Chão vermelho, a chão vermelho escuro, a simples nódoa… Corta a corda com um só golpe e ela cai. Ouve-se um estalar e ele pensa “raios, é mesmo frágil, já partiu o pescoço, que má caçada, nem luta deu.”
Arranca os olhos das órbitas, nunca gostou de sentir olhares fixos nele, nem mesmo daqueles que davam tudo para nunca ter tido o azar de olhar para ele. Litros de ácido são injectados pela boca e pelas narinas para o interior do corpo. Não quer o corpo desventrado. Espera. Enquanto isso, abre a porta e deixa o cão sair para a rua. Uma lufada de ar frio entra. De novo pendurada de cabeça para baixo, os órgãos que derreteram vão saindo aos poucos. Com a ajuda de um ferro tenta raspar ao máximo o interior do corpo. Flores. Flores que nascem no bosque, flores de todas as cores e de vários perfumes são empurradas para dentro do corpo e as duas mais bonitas são colocadas nas órbitas oculares “Menina perfumada, de olhar florido, gosto do teu olhar doce.” Os lábios são cosidos, ponto cruzado, perfeito. Herdou esse jeito da mãe costureira.
Braços e pernas amputados e assim há jantar para a vara de porcos que tem nas traseiras da cabana. Os cotos levam o mesmo ponto cruzado e ficam com uma bainha muito bem rematada. Trabalho finalizado. Abre a porta, o cão entra. A noite traz novamente aquela brisa gelada do bosque, que se mistura com o aroma a sangue e flores. É esse o objectivo. Gosta de trabalhos manuais e este é o seu preferido. “Menina, meu saquinho de renda perfumado.” Sorri. Sorri novamente e começa a lavar o chão.

Pega no cão ao colo e faz-me festinhas na cabeça. “Nenhum animal no mundo deveria sofrer, muito menos ser maltratado com propósito.” Respira fundo para apagar esta imagem da cabeça, quase lhe escorrem lágrimas de cada vez que pensa nisso. “Nunca vou deixar ninguém fazer-te mal. Vou dar-te sempre o melhor lar. Amanhã terás um tapete para te deitares e dormires quentinho ao pé da lareira.”

Ele, que vive na cabana ao fundo do bosque, sabe que encontrar matéria-prima é muito fácil. A inocência é sua aliada e neste momento…
Ela abre os olhos. Acorda pela última vez e daqui a poucas horas vai estar a atravessar o bosque para conseguir chegar ao rio.

Amanhã, a esta mesma hora, vai ser um bonito tapete entrançado, com um excelente acabamento.

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...