quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Os velhos


De certeza que foi um velho que me pegou isto. É por isso que não gosto de sair de casa… sei que me vou cruzar com os velhos do 1º direito.

Há dois dias comecei a usar fralda, a não controlar essas vontades básicas. Se antes não era assim, de certeza que foram os velhos, só de respirar o mesmo ar, o mesmo espaço.

Depois reparei em como está diferente a minha mobilidade, a minha quase-praticamente independência de movimento. Agora sou uma alface, flácida, que só mexe os membros por pequenos impulsos. Fazem-me tudo, inválido, eu. Sim, eu.

E alguém percebe o que digo? Escapam-me sons estranhos aos dos mortais não doentes, letras soltas, sons ocos, guincharia… e tudo isto acompanhado de muita baba a escorrer pelo canto da boca.  

(Acabou de sair-me um cocó agora)

Ainda hoje queria apanhar um bocadinho de sol, isso a que chamam passeio, e tive que ir numa cadeira de rodas. A empurrarem-me, a depender da misericórdia de alguém que faz um frete e assim conquista o seu lugar no céu.

Porquê a mim? (cliché, cliché, je sais!) Mas nunca precisei disto, tanta gente que se cruza com os velhos e não os vejo a ficar assim. O meu sistema imunitário deve ser muito fraquinho… ou começou a ser. Claro, claríssimo e mais uma vez a causa deve ser o contágio. 

(Se não berrar agora, fico com o rabo todo vermelho, já sinto a pastosidade a subir-me pelas costas, a transbordar a fralda de velhos. Berrar! Porque nem cú consigo dizer).

E o comer, custa-me engolir. Só líquidos e mesmo assim engasgo-me, fico roxo e dão-me palmadinhas nas costas. “Tão? Já passou? Ai, ai, o glutão!”

Devo morrer em breve e choro a noite toda por isso. Espero conseguir ir à minha primeira consulta de saúde-infantil. Talvez isto tenha cura, se os meus pais pagarem a um bom pediatra, talvez ele me cure.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Pétalas de mármore






são lírios do campo estas letras com que te espero sentada na penumbra do teu canto bordado a línguas de fogo com que me gravas claves de sol nas noites de lua cheia de ti e das saudades que desprezas mesmo quando a fruta se espalha sobre a mesa num quadro recorrente de incompreensões sem data.

são rosas meu amor, de espinhos cravados nos dedos quando te sei rei, dum condado inventado pela memória com que construímos o passado num amanhã debruado a ouro sobre o azul do teu olhar.

são cravos de paixão pela liberdade que  conquistamos cada vez que respiramos num assombro de dança, tango em ri(s)os virgens de flores decapitadas.
são pétalas de mármore, cristalizadas pelo suor do teu corpo no meu, quando ainda não éramos nós...

Somos nós, para sempre.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Cieiro



Depois de pôr o batom do cieiro nos lábios, a menina com chuva olhou-se ao espelho.

Deitou um pacote de açúcar na cama e despejou-se em cima. Hoje não tem vontade de sentir-se bem.

Chama-se menina com chuva àquela que por coincidência ou super poder leva chuva para onde vai. Certa terra em dia de Verão leva com chuva se essa menina para lá for. Certa terra em dia de Inverno fica sem chuva se essa menina de lá partir.

Levantou-se pegajosa, vestiu-se e foi correr. Os poros vomitavam suor salgado que nauseadamente escoriam no meio de tanto doce. Olhou para o céu… “se ao menos a água que cai fosse exsudado das lesões por humidade que as nuvens têm.” Chorou. Muito.
Já em casa e de olhos inchados, usou bolinhas de algodão embebidas em lixívia e passou suavemente pelas pálpebras. Aclarar as ideias. Sentou-se no sofá e esperou pelo sol. Esperou e quando chegou ao “u” fartou-se e foi fazer bolachinhas. Amassou, enformou e pôs canela por cima. Esperou pelo tempo com mais paciência, tirou as bolachas do forno e comeu quantas o estômago permitiu para que depois as pudesse obrigar a sair pelo caminho inverso.

A campainha tocou e a menina com chuva não ouviu.

Tinha acabado de entalar um dedo na porta do armário e olhava a unha estalada. Fez o curativo com álcool (na verdade foram 20 minutos com o dedo mergulhado).
À noite jantou cubos e gelo. Guardou os bocadinhos de dentes que cederam dentro do saleiro e pensou ir deitar-se. Pegou no saco do lixo, encheu-o até metade com água da chuva. Já no interior da arca frigorífica, meteu-se dentro do saco. Em posição quase fetal e só com um braço de fora, esticou-o e com a ponta dos dedos conseguiu fechar a arca.

Adormeceu com alguma facilidade. Ainda bem. 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Jantar



Isto sabe-me tão bem como sal nas aftas.

Andava o cloreto de sódio preso na toalha da mesa.

E depois soube que tinhas trauteado músicas com a cabeça dos dedos nessa toalha. E pronto, isso bastou para cair de lábios nesse lugar. Era só um beijo, o mais próximo de ti que se conseguia. Mas ardia muito. De lacrimejar.

Varri com a mão as migalhas do pão mais aquelas que se colaram à toalha e que por isso deixaram nódoas. Segui com o dedo a marca redonda do copo tinto. Sei que brincaste nervosamente com a ponta do guardanapo e por isso fiz dele bolo alimentar só para saber o paladar da tua inquietação. Era descartável.

Raspei o prato onde comeste para dentro do meu e os restos prenderam-se nos dentes do garfo. O som dele a bater no prato era como se num casamento pedissem pelo nosso beijo. Outro.

Lavei à mão, com espuma de limonada entre os dedos de cada vez que os apertava para reanimar a esponja.

Não varri o chão. Não tenho atenção suficiente para desfazer as tuas pegadas debaixo da mesa, da cadeira. Aquilo que me garante que o teu peso em sola esteve ali. Quero deitar-me e pensar à noite que irei tomar o pequeno-almoço na marca dos teus pés. No colo delas.

Nessa manhã, já com a loiça seca no escorredor, sem a tua saliva (ou resto dela) passei o dedo com força no teu prato e obriguei-o a cantar tudo aquilo que as tuas garfadas lá deixaram. Senti-me tão má, tão de ânimo tremido. Débil.

Depois. A faca da manteiga arranca bem as vistas. Escrevi o amo-te na manteiga e raspei por cima para comer-te em torradas. 

Quanto aos vestígios oculares e porque aqui tinha de terminar de forma não original, fui buscar a esfregona e numa banda sonora digna de Hitchcock vi todos os meus devaneios a cair entre o espremedor. Bateram todos no fundo do balde.


quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Afterglow



hoje senti saudades tuas.

a chuva subiu pelas narinas provocando geada nos pés. encolhidos os dedos, a chuva continuou agora neve, nos cabelos curtos e mais ralos de ferrugem onde a fuligem dos comboios a vapor pincela telas de luz morta, ou apenas moribunda, dependendo da gravidade da água que agora desce para voltar a subir pelas pernas escolhidas pelos dedos encolhidos.
o senhor da farmácia fez uma careta à ingestão dos dois comprimidos, para que a dor parasse. a dor amenizou o corpo que buscava descanso e nem sequer toldou o pensamento, apenas fez esquecer a dor e é tão bom parar a dor, que do seu esquecimento apenas fica um suave mau-estar sem odor, porque se a dor fosse perfumada, nem morta me esquecia dela.

por vezes tenho saudades dos dias em que me passeavas, sem dores, pelos jardins da minha infância e da tua maturidade de homem imponente pela altura e pelo carácter.
a minha mão na tua, esmagada pelo anel de ouro com uma pedra azul. e eu perguntava-te porque não usavas aliança, se a mãe tinha. tu devias responder, mas algo sem importância, porque eu não voltava a perguntar e nunca percebi porquê. mas havia muitas senhoras que passeavam connosco, desconhecidas que ficavam a conversar contigo, sentadas no banco do jardim, enquanto eu me baloiçava, escorregava ou me rebolava na relva limpa sem dejectos de cães ou gatos, apenas joaninhas e lagartas pequeninas, alguns aranhiços e minhocas que eu encontrava quando tentava chegar, sem saber, ao outro lado do mundo. ou que se passeavam contigo e ficava eu no banco quieta, para não me perderes de vista.
parecias um actor de cinema e eras tão alto e elegante nos teus fatos sempre de alfaiate, nesse gesto de bater o cigarro na cigarreira de prata (que guardo entre tantas outras coisas) de acenderes o cigarro muito longo às senhoras desconhecidas (soube depois que usavam boquilha) esse gesto de me repreenderes com um olhar paralisante, sem precisares de dizer nada (e tanto que conversavas com as senhoras que a mãe denominava flausinas).
hoje lembrei-me de ti. e das festas que essas senhoras me faziam, eu a pensar que gostavam das minhas tranças até à cintura, ou do meu sorriso, mas tentavam apenas agradar-te, e tanto que o faziam, que por vezes te esquecias de mim e das horas e voltávamos à pressa para casa, tu no teu passo de homem alto, eu em pequenas corridas para te acompanhar, quase sem ter brincado nada.

os pés de neve derretem agora um pouco. e é salgada a chuva que me salta dos olhos, em pequenas gotas, sem subir nem deslizar, apenas em gotas que não me deixam ver-te.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

o quase-homem



O quase-homem quando nasceu
Não chorou, estremeceu e quase-soluçou
Enrolou-se na luz branca da primeira manhã
E quase-sentiu o beijo quente da sua mãe
Envolto num quase-suspiro de felicidade

Quando cresceu quase-aprendeu
Entre dores, esquecimento e ilusão perdido
Sobre o centro do universo e o amor quase-correspondido
Quase-ferido, totalmente despojado
De sentir, querer e quase-desolado

Quase-certo de suas decisões avançava
Por entre escolhas quase-pensadas pensava
Escolhia entre murmúrios e o eco inconstante
O quase-instante da satisfação, errante
Num quase-fóssil de luz guardada
Como um coração sem peito para bater, cuidada
Pulsante, como a quase-memória de um sentimento

Fez de sua casa um quase-lar
Onde quase-nada à mesa lhe poderia faltar
Desde a quase-tristeza ao poema por escrever
Tudo por fazer em tempo de vida, alheado
Quase-sonhava por uma rosa ser quase-beijado
Nunca colhida, quase-desejada e para sempre perdida

Num quase-momento de lucidez e quase-escolha
Pegou em livros e ligou-se ao mundo que sentia a chamar
Perdeu-se a navegar, trabalhar e pensar
E num quase-sufoco esmoreceu inquieto
Num espaço aberto, perdido entre milhares
Dos tais murmúrios, sussurros e apelos similares
Quase-distantes, interligados e sedentos
De propriedade de um quase-ser que quase-nada de si sabia
Apenas a quase-certeza de que lugar-nenhum ali teria

E em quase-solene meia vida decorrida
Entre espadas, parede, mar e quase-fantasia
Deixou escorrer uma quase-vontade que mais não cabia
Fora do eixo, sobre um ponto quase-fixo imaginário
Decide ser quase-altura de abraçar o seu calvário
E num quase-sonho embarcar legionário

Contempla então a quase-libertação
Entre o sólido chão e o fino ar, a encoberto
De uma quase-linha ao pescoço enrolada, não mais incerto
Destino escolhido, quase-perto por fim
Deu um salto de quase-fé, convicto de si
Num voo desenhado em final alegoria
Teve a desejada sorte, quase-sobrevivia

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Fonte


 Corre a água pela Fonte,
Barulhando perto ao longe,
Triste e pálido mato meio sem Graça.

Sequiosa, a boca, comanda-se emudecida
Pelo calor da fachada
Que esconde o estro ingénito
Que acende e apaga a luz do meu ser.

Temos todas as razões para viver,
Mas falta-nos sempre uma razão para reparar o mundo.
Porque o mundo é ingente e pequeno,
Vê-se sempre perto de longe.

Brotam-se ideias e pensamentos,
Mas é certo que nunca se exuma como deve ser.
(Estará o solo insalubre?)

A água, pura, esvai-se
Pelo desejo ávido
Que mescla cada pedaço de mim.

Já nem me acho,
Deslustradas, as fotos
Que me pediram.
(Pena, os traços do rosto que se espelham na água)

O gesto inócuo nunca me há-de dar a conhecer o incognoscível.

Fosse, talvez, o mundo feito de insipidez
E fossem os dias resumidos a flores, sol e Primavera.
Fosse eu a tua sede e água da Fonte a tua boca,
Porque assim, num gesto vão, estaríamos conchavados.

O (nosso) mundo não é a fachada que pintamos.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Através de ti (Parte III de III)

Parte III – Leite com mel e hortelã

 



- Olá, posso oferecer-lhe uma pastilha? São de lima-limão, as minhas favoritas.

Num ligeiro sobressalto, Elianor vira-se para a sua esquerda e dá de caras com o jovem simpático que partilha consigo a paragem de autocarro juntamente com duas mulheres de meia-idade que tagarelavam incessantemente. Ele sorri e aponta-lhe a caixa de pastilhas enquanto acena gentilmente com a cabeça. Elianor tenta sorrir de volta mas não consegue. Não faz mal, os seus olhos sorriram por ela.

- Vá, não se assuste, é só uma pastilha para ajudar a passar o tempo de espera. Já agora, posso sentar-me ao seu lado?

- Sim, claro, é um espaço público… -

Chega-se para a ponta e olha para as senhoras que matraqueiam alegremente como se estivessem completamente sós. Seria de esperar que, dado o sobrepeso e as varizes, fossem elas as detentoras do direito ao assento, mas não, pareciam duas adolescentes histéricas à porta de um concerto, até soltavam risos e um ou outro gritinho.

- Sabe, vejo-a muitas vezes por aqui, mas ainda não tinha conseguido meter conversa consigo… parece-me tão reservada, distante. Aposto que nunca deu por mim!

E não, Elianor nunca tinha dado por ele. Estranho, um jovem muito bem parecido, vinte e poucos, alto, atlético, face limpa e perfumada, olhar penetrante e galanteador. Nunca o tinha visto mas ele dizia que a conhecia. Elianor vacilava entre o receio e alguma irritação, afinal de contas, sentia-se observada para além dos seus desejos. Bem, se calhar não estava a considerar todos os tipos de desejos.

- Olhe, fique sabendo que não sou de grandes conversas e não tenho a certeza de onde quer chegar por isso fiquemos pelo bom-dia-como-vai cordial e guarde as suas pastilhas.

-oh, lamento se a incomodei, não era minha intenção. As minhas sinceras desculpas e não me leve a mal, não me pode censurar por tentar meter conversa com uma jovem linda e encantadora.

- vá, deixe-se de coisas, também não é nenhum drama… afinal de contas você parece-me simpático, mas eu não gosto de lima-limão, percebe, não é o meu estilo.

- ah, entendo. Posso tentar novamente amanhã? O que prefere, caramelo? Mentol? Vê, afinal também sabe sorrir…!

E sorria, abanava a cabeça como quem tenta negar as evidências esmagadoras e inconvenientes.

O autocarro chegou e lá foram os dois. Possivelmente partilharam um banco, pastilhas e algo mais. É assim que nascem as coisas boas da vida, de forma espontânea e discreta, até se tornarem exuberantes e…

- Oh, Oh menina, não é assim que me lembro dessa história!!




Elianor, sentada à mesa, bebe o seu leite com mel e hortelã, mergulha um biscoito seco.

- Mas era assim que deveria ter sido… era assim que deveria ter sido…

- Chamas-me monstro Elianor, perverso e bruto. Sim, a mim não mentes, como poderias tu fazê-lo? Somos um, nasci contigo e de ti me alimento. E tu de mim, não é meu anjo? Então não nos queres lembrar como foi? Tu até tens jeito para contar histórias, estavas a ir tão bem. Vá, tenta lá outra vez. Estava um idiota a fazer-se a ti na paragem de autocarro, deste-lhe para trás e ele ficou todo contente, andaste nisto quê… seis, sete dias? Não contando com o fim de semana, é claro!

Elianor levanta-se, dirige-se até à janela virada para este e contempla a noite que reina sobre as almas até ao resgate da luz solar. Suspira e massaja o pescoço com a mão esquerda enquanto sobe a caneca até aos lábios para mais dois goles.

- E depois, como foi? Começaram a combinar encontros, primeiro, um café de misericórdia, certo? É Assim que funciona o jogo da sedução, um café, um jantar, um cinema e um dia, um convite. Não queres entrar para tomar um leite com mel e hortelã?

Elianor, vira-se, pousa a caneca na mesa e dirige-se ao espelho da casa de banho. Olha-se longamente e decide lavar o rosto. Vai até ao quarto e pega no seu pequeno frasco de perfume. Põe gentilmente uma gota atrás de cada orelha, como fazem as senhoras de bem.

- Ah,  esse teu perfume deixa-me louco. Já só restam algumas gotas, incrível como o tempo passa… parece que foi ontem que começámos este nosso ritual. O que eu sofri para te ensinar rapariga, o que tu choraste, gritaste, até tentaste fugir… de mim? Não minha querida, eu não me posso separar de ti, nem que muito quisesse, pois tu nunca me deixarás. Tu e eu, certo? Tu e eu…



O rapaz estava deitado na sua cama, adormecido, cansado de fazer amor com aquela bela, frágil e suave criatura.

Elianor fecha os olhos, inclina a cabeça para trás e estremece profundamente.

- Obrigado, minha querida, eu agora tomo conta do recado. Tu já estás satisfeita, agora é a minha vez. Através de ti me sacio, vivo e respiro. Obrigado, minha querida, por me teres trazido mais um presente.



Na manhã seguinte, Elianor apanha o autocarro. Hoje segue só.

domingo, 22 de julho de 2012

Através de ti (Parte II de III)

Parte II – Sequência






“Mostra-me, mostra-me o que tens, do que te estas a esconder. Eu conheço-te, sei quem tu és, partilhamos o mesmo coração, o mesmo pensamento, o mesmo sonho. E quando tudo flui, tu vogas comigo, somos mar e navio, mastro e vela, maré e maresia, somos pedaços da mesma fantasia e delírio onírico do mesmo arquétipo adormecido. Mostra-te, vê dentro de ti, não tenho segredos para ti, não há palavras por dizer ou redigir, sou o livro que conta a tua história em parágrafos de existência intermitente e pontuação cuidada. Somos canto e estrofe, nascemos gémeos na garganta do poeta que um dia quis contar a história da luz, aquela pequena luz que nos comove e tem cativos, a luz dos teus olhos, por onde eu contemplo o horizonte perdido das horas em que não me sinto em ti. Não te martirizes, nada há para esconder, eu sei o que tens.”

Seria de esperar que estivesse assustada, apavorada pelo terrível sonho que a despertou a meio da madrugada. Mas Elianor simplesmente abriu os olhos e assim ficou, estática e fria, estendida na sua cama com lençóis de flanela com desenhos. A hora da adivinhação marcava os ponteiros do relógio, encaixado entre bonequinhas de porcelana e livros de contos infantis. Faltava tanto para o nascer do sol mas uma luz brilhava pálida e ondulante, projectando as sombras longas contra a parede do quarto da menina. Elianor tenta dizer algo, mas de sua boca não saiu um único som, sentia que o vento forte que uivava lá fora lhe tinha arrastado a fala e deixado no seu lugar uma outra voz, que ela ouvira claramente dentro de si. A luz perdura, arrasta-se pelas paredes como uma canção que não nos sai da cabeça e congela a menina num instante que parece durar toda a eternidade. Elianor está presa entre o terror e a solenidade do momento e sente-se a esvaziar lentamente. Até que chega a luz da manhã e o pesadelo termina.

Com o passar dos anos, a memória daquela noite foi-se diluindo, mas manteve-se sempre presente, como uma infecção com a qual nos habituamos a lidar. Esporadicamente voltava a sonhar com a voz, que lhe sussurrava. Sei de ti, tanto quanto me sentes a mim. Podiam passar-se muitos dias, semanas, meses até, sem sonhar com a voz, ou acordar a meio da noite com a luz mórbida e fria. Mas Elianor sabia, era apenas uma questão de tempo. Dizia-lhe a voz, não precisas de te esconder, porque onde estiveres, lá me encontrarás a viver entre as linhas da tua história.
Elianor crescia, 7 anos depois era uma adolescente exemplar, excelente aluna, metódica e dedicada, um pouco calada e não muito alegre, aliás, era conhecida pela ‘menina dos olhos tristes’ e não se lhe conheciam grandes amigos. Talvez alguns colegas mais simpáticos lhe dirigissem palavra por piedade, outros para pedirem os cadernos escrupulosamente organizados e detalhados da jovem brilhante que a tantos fazia um tanto ou quanto de inveja.

Tudo normal num mundo de padrões e texturas normalizadas, onde a popularidade de uns é a inspiração de outros e a solidão de poucos a ignorância de tantos. Mas até a mais pequena flor num imenso prado pode ser da preferência de um insecto mais excêntrico ou aventureiro que ouse sair da colmeia dos eleitos e desejados. A cena é simples e fácil de descrever. Elianor sentada, só, num banco de madeira, a roer uma maçã e a rabiscar a carvão o seu caderno. O esquisso parecia um anjo que se elevava por entre rochas e arvoredo. De súbito, ele senta-se a seu lado e pergunta se ela quer um pouco do seu sumo. Estranha, Elianor afasta-se um pouco do rapaz e sorri apenas com metade da boca, enquanto se agarra ao seu mundo abstracto e monocromático. Ele diz-lhe, não tenhas medo de mim, só queria conhecer-te, gosto muito de te ver a escrever e desenhar. Ela olhou para ele e anuiu gentilmente. Também já te tinha visto por ai, sentado a ler. Qual é o livro que tanto admiras?

Caiam as folhas aos castanheiros quando eles se conheceram. No seu aniversário ele deu-lhe um pequeno frasco de perfume, ela ensinou-o a fazer bolachas. O inverno aproximou-os ainda mais e a primavera deu cor ao seu primeiro beijo. Nessa noite, a doce e leve sonhadora enfiou-se na sua cama mais apaixonada que nunca e embalada pelo sonho doce de um amor juvenil que a embalava em versos e melodias.

“Como pudeste fazer-nos isso, Elianor? Quem te disse que sim, que eras livre e que poderias sair do meu coração, viver fora do meu pensamento, quebrar o meu sonho que por ti vive e em ti para sempre viverá? Onde estiveste tu, Elianor, amarada nos braços de quem, embalada nos lábios de quem? Quem julgas que és Elianor? A mim nada podes esconder, porque nada há para esconder a quem vive dentro de ti. Pobre Elianor, pobre de ti, ai de mim. Só me resta fazer algo por ti, algo por nós. Farás o que te peço, não farás minha querida? Sim. É isso mesmo. No fundo, é isso que queres fazer. Os teus beijos pertencem-nos”
Subitamente desperta e muito, muito aflita. Sente os lábios quentes e molhados. Acende a luz e precipita-se para o espelho da casa de banho. Tem marcas de dentes no pescoço e o rosto e arranhões que sangram. Sente uma dor no peito e puxa a gola da camisa de noite e repara que tem enormes nódoas negras sobre os seios. O medo devora-a e tenta gritar, mas a garganta emudece por completo. Sente que o coração vai explodir e desmaia.

Na manhã seguinte finge estar engripada e pede à mãe que avise a escola, irá faltar 3 dias e não quer receber nenhum telefonema. Mas o telefone toca, uma e outra vez. A mãe justifica-se. Acredita que alguém fez mal à sua menina, já viu muitos gozarem-na e crê que ela foi vítima da agressão de algum idiota e faz queixa ao director de turma. Há um rapaz que é posto de castigo e mandado para a cantina onde a sua tarefa será ajudar nas limpezas durante uma semana. Reclama injustiça e diz que ama Elianor, mas a mãe dela contou uma versão diferente ao director e o castigo é mesmo aplicado. Sete, foi o número de mortos no terrível e inexplicável incêndio que deflagrou na copa da cantina nessa manhã de Primavera, duas auxiliares, três cozinheiros, um guarda e um jovem que estava a cumprir castigo.
“Somos um, tu e eu, em eterno enleio, poema gravado em pedra, almas lavadas em fogo”. Desta vez estava bem acordada, quando ouviu a voz. “Para sempre, Elianor, por toda a eternidade”.

A mãe entra em pânico pelo quarto adentro, sem se anunciar. É da escola, são notícias horríveis minha querida, ainda bem que estavas em casa”.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Par de botas



Era uma vez um cordel de pião que servia como atacador na bota número 39. Tinha como rotina diária espartilhar o pé e aconchegar-se num laço perfeito, tão perfeito que só podia ser feito por alguém com um único pé para calçar. Mas os vícios são como as crianças na idade dos porquês e cada vez que o cordel pensava porque não tinha pião para girar a senhora era impulsionada num rodopio de calcâneo. Sucediam-se as náuseas e os vómitos e com um estômago prostrado a cama foi a melhor forma de suavizar os estragos. A cama e um chinelo. 

Na casa do bicho papão, a bota palmilhava palavras interrogadas ao cordel: "Não és feliz aqui?” O cordel desentrelaçava: "Não sei." 
Um dia, e porque todas as estórias têm "um dia" a má circulação apaixonou-se pelo pé e a bota deixou de ser bota, foi promovida a técnica de cotão com part time em berço para o bebé do bicho papão. O cordel começou a servir de fio de pesca para meninos e meninas com ponta de narizes curiosos por "debaixo da cama" uma vez que o bebé era roliço e andava sempre com fome. 
O cordel agora já era mais feliz, porque enquanto os meninos e as meninas não eram deglutidos pelo bebé papão, ele podia brincar por entre os seus dedos pequeninos e recordar-se de como era enrolado à volta do pião. 

Mas passaram-se anos e a senhora morreu. Passaram-se anos e os meninos e as meninas deixaram de acreditar no bicho papão e nunca mais os narizes foram parar debaixo da cama. 
Recentemente o cordel encheu-se de nós e dentro dele deixou de circular a vontade de girar piões. 

Era uma vez um pião que servia como fio-de-prumo na construção de casas de bonecas. Escusado será dizer que aquelas casas eram as mais aprumadas de todas, de uma verticalidade verdadeiramente vertiginosa. Apesar de toda esta perfeição, trabalhar com o pião não era fácil, ao se sentir pendurado por um fio a sua única vontade era enrolar-se nele. 
O fio não passava de um atacador antigo de botas perdidas mas desempenhava a sua função com distinção. Mas naquele momento prender um pião descompensado enchia-o de suspiros depressivos e as bonecas já reclamavam. 
O atacador atado de palavras enlaçava: “Porque não páras quieto?” O pião girava: “Não sei.” 
Tanto se mexeu que acabou por se soltar e caiu literalmente redondo no chão. Sem função o atacador enrolou-se amuado em novelo. 
O pião agora era mais infeliz, deitado no chão, a sua barriga rodopiava preguiçosamente e só lhe valiam os pontapés de uma senhora distraída que o faziam deslizar pelo chão. Farta de tanto pontapeá-lo a senhora pegou nele e colocou dentro de uma bota que já não usava há muito tempo porque simplesmente não tinha como o fazer. Ficou fechado dentro de uma bota, preso dentro de um armário. 

Mas passaram-se anos e a senhora morreu. Passaram-se anos e aquele armário nunca mais foi aberto. 
Há poucos dias o pião sentiu-se cheio de nós de madeira e não percebeu o que aconteceu.

Impossibilidades

É onde a cabeça de uma sweet little sixteen cai, frequentemente. Rola, desespero abaixo e, pum, estilhaça-se no vazio. Foge, acelerada, do...