terça-feira, 23 de novembro de 2010

O Anjo Destruidor (em III actos)

Parte I (de III)



Mamã, sabes onde está o teu menino? Está lá em cima, no sótão, sozinho a brincar com os brinquedos e sombras esquecidas, emaranhado nas teias e segredos, coberto de pó e de medo, tanto medo que lhe dá vontade de rir.

O teu menino sorri, entre os reflexos gastos do espelho de estanho onde antes te olhavas, enquanto te penteavas e aguardavas pelo príncipe encantado.

O teu menino é puro, pois é com pura maldade que encosta a cara fina de porcelana das tuas bonecas à chama que se contorce, agarrada ao pavio, assustada com o sorriso puro do teu menino.

Mamã, porque não lhe levas um copo de leite, uma bolachinha, alguma coisa, o pobre do menino deve estar com fome. Pois os olhos dele estão famintos, percorrem alfarrábios e buscam conhecimento mortal. Folha a folha, os volumes antigos são lambidos sofregamente pela mente eléctrica e voraz do teu menino. Ele sabe que o segredo está ali, escondido entre estrofes e ensaios, entre heróis e vilões que disputam a alma dos puros, como ele.

Quando ele nasceu baptizaste-o de Raphael, não porque o amasses, mas porque procuravas a cura, o toque suave de Deus, a dissolução da dor. Mas que dor é essa mamã? Porque buscas a cura de teu mal se sabes que, quando gerado, não mais conhece fronteiras do ser e do saber? Porque invocaste o arcanjo quando nomeaste a tua criança? Porque a apontas agora?

Mamã, o teu menino está entre trevas, cego pela sedutora luz da manhã e, dentro da sua mente, desce a espiral, passo a passo, andar a andar, circulo a círculo.

Ele está à procura de algo, alguém, algures…

Mamã, ouves o som de passos, lá em cima?
Ele não está sozinho…


Mas tu estás!

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